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Artigo
Ecologia, economia e ética
Por Jean-Pierre Leroy
10/11/2006

A primeira dificuldade com a qual nos deparamos é na tentativa de ordenamento dessas palavras. O ecologista começaria com a palavra ecologia; o economista com a palavra economia e o moralista com a ética. Dá a impressão que tudo se equivale. Perde-se o senso da totalidade e da complexidade em que determinada ordem dada às coisas estabelece certas conexões dialéticas e não outras. Como construir um projeto para o futuro se tudo se equivale?

Começarei lembrando esse estado de crise no qual nos instalamos numa angústia, numa depressão ou numa tensão que não parece ter fim. Depois, na tentativa de esboçar respostas, ou melhor, traçar trilhas incertas ainda, mas que esperamos acabem desenhando caminhos, proponho que enfrentemos a perspectiva de uma ética da responsabilidade, a partir de um prisma no qual tempo e espaço encolhem e tornam próximo os que estão "longe". Isso me leva a afirmar e ensaiar demonstrar que a perspectiva ecológica, abordada com radicalidade, é renovadora da ética. Visão idílica de uma improvável sociedade harmônica? Gostaria de mostrar, por fim, que a sociedade sustentável e democrática que almejamos não é tirada de um futuro imaginado na virtualidade absoluta dos nossos sonhos, mas já está sendo preparado, vivido. A população da Amazônia brasileira, na sua grande diversidade, nos guia, ao meu ver, nesse caminho.

Crises e rupturas

Gilbert Rist, professor do Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento, de Genebra, no seu livro Le développement. Histoire d´une croyance ocidental, ressalta como, historicamente, a oposição colonizador/colonizado foi substituída pelo binômio desenvolvido/subdesenvolvido; à diferença radical, à ruptura, sucede uma unidade, um contínuo, pois pode-se passar de um estado a outro.

O economista Walt W. Rostow, em As etapas do crescimento econômico, publicado em Cambridge em 1963, consagrará essa ideologia do progresso, escrevendo: “A considerar o grau de desenvolvimento da economia, pode-se dizer que todas as sociedades passam por uma das cinco fases seguintes: a sociedade tradicional, as condições preliminares à partida, a partida, o progresso em direção à maturidade, a era de consumo de massa”.

É preciso reconhecer que as análises teóricas desenvolvidas desde os anos 40, a começar pela Cepal, complexificaram essa visão linear. Mesmo assim, na sua quase totalidade, os governos dos países do Sul, sejam os diretamente subordinados a alguma potência ocidental, sejam, no passado, os não-alinhados, reunidos pela primeira vez em Bandung, na Indonésia, em 1955, ou os alinhados com o bloco soviético, seja hoje a coorte de países conduzida pelo FMI e o Banco Mundial, todos aceitaram e continuam a aceitar essa ideologia do progresso, reclamando, desde Bandung até a Rio 92, cooperação econômica, tecnologia e recursos financeiros para chegar lá.

Os esforços para se opor a essa ideologia e ao avassalador domínio econômico do Norte não foram bem sucedidos, como todos sabemos. A busca concreta de um outro desenvolvimento, seja, no passado, de um país como a Tanzânia de Julius Nyereré, ou, hoje, de um país como a Índia, sempre encontra resistências ferrenhas que o inviabilizam, enquanto iniciativas menores, tais como as hoje experimentadas por estados como o Amapá e o Acre, ou, ainda, por milhares de entidades locais, ainda suscita apenas ternura e comiseração, no melhor dos casos.

No plano teórico e político, vale lembrar o Relatório Dag Hammarskjöld, publicado em 1975 para uma sessão da ONU, que queria propor “um outro desenvolvimento fundado sobre a satisfação das necessidades, a self reliance, a harmonia com a natureza e as mudanças estruturais” (Rist, 1995, 255). Esse documento conheceu o destino reservado às propostas generosas: o esquecimento. Suas idéias, porém, sobrevivem palidamente no relatório anual sobre o desenvolvimento humano, do PNUD, que inspira tão somente as rituais manchetes anuais da mídia.

Com a queda do muro de Berlim, a economia dominante, até então parcialmente represada, pôde se expandir de modo devastador. Economia devoradora, fagócita de conceitos, ideais, realidades, aspirações e cuspindo os caroços: do desenvolvimento, sobra a selvagem lei do mercado; da sustentabilidade, retêm-se a tentativa dos Estados Unidos, de alguns países sócios menores e das classes dominantes e países do Sul de usar de todas as formas de pressão e de regulação forçada para perenizar a riqueza de poucos; do meio ambiente, sobra um setor a mais para colocar sob a lei far-west do capital; da ciência, a tecnociência em tresloucada carreira ao serviço da realização do maior lucro do capital; da ética pública, um espantalho para enganar os incautos que somos; do que chamávamos de valores, algo de reduzido à esfera da vida privada e à relatividade cultural. Não preciso insistir sobre as conseqüências perversas dessa situação, sobretudo as sociais e ambientais. Se fôssemos descrevê-las, dariam inequivocamente bases para o que muitos estimam ser uma grave crise civilizacional de múltiplas facetas: político-ideológica, cultural, epistemológica e ética.

É possível superar essa crise tentando influenciar por dentro os rumos da economia, moderando os seus apetites, introduzindo as noções de eficiência (máximo de produção com o mínimo de recursos) e de limites (levar em conta na produção que os recursos são finitos)? O apelo à solidariedade para com as gerações futuras é suficiente para sustentar essas noções? Giordano Bruno, frente a instituições esclerosadas, já perguntava como seria possível aos donos do poder reformar o poder, e Lampeduza colocava na boca do seu personagem Tancredi, em seu romance O Leopardo, a máxima segundo a qual “se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”. A reforma não é possível porque as instituições anônimas atrás das quais se abrigam os donos do poder econômico e acionistas são insensíveis a quaisquer considerações outras que não seus interesses imediatos. Porque estão em vias de domesticar a democracia e o poder político. Mas também porque é o conjunto da humanidade que parece ter perdido o rumo do seu futuro.

Tornou-se banal dizer que momentos de crise são momentos propícios para rupturas, rupturas que possam provocar o surgimento do novo. Destacaria três rupturas que parecem se impor para sairmos da paradoxal pasmaceira que nos invade na hora em que estamos frente a esse desafio: a ruptura política com um modelo de democracia representativa cristalizada no Estado-nação; a ruptura epistemológica com um modelo de conhecimento que separa o objeto do sujeito e só percebe a realidade fragmentada e com o seu corolário atual, a tecnociência; e a ruptura ética. A minha pretensão aqui é tão somente iniciar – eu e talvez alguns leitores – uma reflexão sobre a relação entre ética e meio ambiente.

Por uma ética da responsabilidade

Preliminarmente é bom dizer, mesmo que sumariamente, de que ética estou falando e o que, a meu ver, caracteriza a crise da ética hoje.

Somos seres éticos: temos a capacidade de nos comportar e agir em conformidade com juízos de valores sobre o que é bom e sobre o que é mal no nosso agir individual e social, na relação com os outros e o mundo. Mas quem decide sobre o que é o bem e sobre o que é o mal? Sabemos mais ou menos o que é bom para nós: ser alimentados, ser respeitados e amados, etc. e estamos dispostos a retribuir esse bem para os que nos são próximos. Mas e os mais distantes? Aqueles e aquelas para os quais não há aparentemente laços de reciprocidade e de retribuição possível?

A postura ética surge no reconhecimento com que pai e mãe, olhando e acariciando o recém-nascido, se sentem, espontaneamente, sem precisar de análises filosóficas, de preceitos religiosos ou morais, responsáveis por essa criança e por seu futuro. Os pais não têm a obrigação de fazer seus filhos felizes, mas têm a obrigação de cuidar para que o máximo possível, dentro de suas possibilidades, das condições para tanto sejam reunidas. O filósofo e moralista Hans Jonas enuncia que “a obrigação para com a posteridade... é o arquétipo de todo agir responsável...que a natureza implantou poderosamente em nós (pelo menos na parte da humanidade procriadora)” (Jonas, 1995, 88). Ao abraçar essa criança, os pais, de um certo modo, abraçam o mundo, firmando compromisso de responsabilidade para com esse mundo que será dela.

Apesar de todas as tentativas racistas de classificar radicalmente a humanidade em raças e culturas superiores e inferiores, a antropologia e a biologia, em particular a genética, afirmam, cada vez mais, com maior fundamentação, a unidade do gênero humano. Mais se apontam diferenças, mais aparece, ao mesmo tempo, a unidade. As diferenças não são fragmentação e hierarquização, mas, pelo contrário, manifestações da riqueza da unidade fundamental do ser humano. Não são somente as ciências que nos levam a fazer essa afirmação. Quem se aproximou de uma outra cultura, de um outro povo com o coração e a mente abertos se reconhecerá nessas linhas de Edgar Morin: “O importante é que a diferença racial tenha alterado tão pouco a unidade cerebral do homo sapiens. Alterou igualmente muito pouco a unidade afetiva. A despeito da diáspora etno-cultural, todos os seres humanos se expressam fundamentalmente pelo sorriso, o riso, as lágrimas. Dispõem, não só dos mesmos meios de expressão, mas expressam uma mesma natureza afetiva e isso a despeito dos adornos, variações, estereótipos, codificações, ritualizações que as culturas trouxeram ao sorriso, ao riso e às lágrimas” (Morin, 1973, 224)

Talvez possamos perceber algo que nos une além desta “unidade afetiva”. Em qualquer sociedade, mesmo nas mais rígidas e reprimidas, existem, em estado latente, valores que formam o substrato de uma sociedade, que na tradição ocidental chamaríamos de democrática, tais como vontade de liberdade e de autonomia aliados ao senso da fraternidade e da solidariedade, reconhecimento da possibilidade de igualdade entre os seres humanos. Aparecem ou voltam a se manifestar logo que algum acontecimento pessoal ou coletivo, que caracterize uma desestabilização cultural e um choque intercultural, o permite.

Então, se a ética é um dado, como se fosse, de um certo modo, parte do nosso patrimônio genético, como podemos falar de crises? Não se afirma aqui que somos herdeiros de valores imutáveis. Sobre um fundo comum de humanidade, a ética se constrói através do tempo, das sociedades e das civilizações como fato cultural pela interpenetração das culturas, das visões religiosas e dos sistemas ideológicos e políticos, pela maior ou menor influência de uns sobre outros. Progressivamente, ao longo da história, constitui-se um referencial comum de valores acima dos particularismos.

Talvez a minha reflexão aponte para uma certa visão ingênua da humanidade. Definitivamente não somos iguais. É verdade, mas a crise da ética é a dualização radical do mundo: o mundo real, do poder, da economia e da tecnociência, e o virtual, dos valores éticos; o mundo dos incluídos e o dos excluídos; o mundo do hedonismo individualista e o outro, da responsabilidade; o bem e o mal. Mas as fronteiras traçadas entre dois mundos não demarcam duas porções da humanidade. Elas atravessam países, povos, classes e, em definitivo, cada ser humano. E, ao atravessá-los, elas se diluem tanto que se torna difícil distinguir onde está o bem e o mal. Até onde, por exemplo, a justa satisfação das minhas necessidades me faz participar da irresponsabilidade da sociedade dominante frente ao direito dos outros de satisfazer as suas?

A humanidade sente que a sua unidade ontológica encontra-se com a possibilidade de uma humanidade contemporânea unida por valores, ao mesmo tempo, comuns e expressos de mil formas. E é justamente esta possibilidade que está em crise. Parte da humanidade recusa dar conseqüência a essa unidade original e aceitar essa possibilidade. E temos a sensação assombrosa que essa parte está crescendo assustadoramente, o que dificulta enormemente uma revolução civilizacional. E, enquanto temos dificuldade em distinguir o bem do mal, nos obstinamos a nomeá-lo e apontá-lo, contribuindo para fazer das diferenças e das contradições irremediáveis divisões e fragmentações.

K.O. Apel, filósofo alemão da Escola de Frankfurt, distingue três “esferas” da moralidade (Apel, 1987, 46 e ss.). Chama a primeira de “microesfera”, a das relações de intimidade e de proximidade. Cuidar dos filhos, dos pais ou do companheiro ou da companheira é bom. Essa responsabilidade cria deveres para com eles e eles passam a ter direitos sobre mim. Nesse nível, a ação ética fica restrita aos que estão próximos a mim, seja pelos laços de sangue, de amizade, de classe ou de vizinhança.

A segunda é a “mesosfera”, das relações que se formam no quadro da nação. Com a modernidade iniciada com o Renascimento e consagrada com as revoluções do século XVIII, o domínio da ética amplia-se: ao próximo, como diz François Ost, sobrepõe-se o cidadão. Liberdade, igualdade, fraternidade passam a ser os valores fundamentais, que definem a boa nação democrática e servem de referências para a ação do Estado, de um lado, e do cidadão, do outro.

Não cabe aqui mencionar as múltiplas tensões e contradições subjacentes a esse modelo ideal. De qualquer modo, mesmo com todas as hipocrisias e as opressões individuais e coletivas, as guerras civis e lutas de classe, com todos os conflitos, abertos ou velados, a escravidão e o colonialismo colocando em cheque esse modelo, mesmo com tudo isso, as pessoas, nos países ocidentais, tiveram a sensação de viver inseridas durante longos períodos em estruturas institucionais (societárias, religiosas, jurídicas, culturais e jurídicas) que asseguravam um grau de respeito a deveres e direitos recíprocos suficiente para garantir a convivência dos cidadãos e a coesão da nação.

Hoje, essas duas esferas da ética estão em crise. Num mundo urbanizado e individualista, atravessado por múltiplas influências culturais e ideológicas e progressivamente sufocado pela mão de ferro do mercado, dilui-se a noção de próximo. No plano da mesosfera, mal começávamos, ainda saindo da ditadura, a inventar a cidadania e esta já definhava. Depois do grande mutirão cívico que representou a elaboração da “Constituição cidadã” de 1988, tivemos dificuldade em exercer a nossa cidadania plena, pois a discussão democrática do futuro nos é demasiadamente subtraída. Tornou-se domínio quase que absoluto das tecnoburocracias nacionais e internacionais a serviço de um capitalismo sem rosto. Ficou para nós a periferia da ação política: as políticas compensatórias e o meio ambiente. Numa sociedade em que o Estado não viabiliza os direitos dos cidadãos e não favorece a participação cidadã na ação político-social, perde-se em contrapartida a noção dos deveres e da responsabilidade, a noção de cidadania.

O ideário da cidadania desmorona de vez com as alterações sofridas pelas relações interpessoais e com as fraturas que aparecem no sentido coletivo do pertencimento a uma nação um território, uma história e uma sociedade. Pertencimento colocado em xeque pelos detentores da riqueza e do poder, profundamente internacionalizados e que, freqüentemente, só enchem a boca de patriotismo para manter, até a seus próprios olhos, uma ilusão de virtude, necessária à manutenção da relação dominador-dominado. Também na massa da população, submetida ao rolo compressor da influência cultural norte-americana, ponta de lança de um novo ciclo de dominação de um capitalismo tentacular e que adquire múltiplas formas, esse pertencimento é debilitado.

Como conclui o mexicano Canclini, “nas novas gerações, as identidades se organizam menos em torno dos símbolos histórico-territoriais, os da memória-pátria, do que em torno dos de Hollywood, Televisa ou Benetton” (Canclini, 1996, 380). Talvez esta observação aponte para um dos motivos que fez com que parte da humanidade tenha sentido tanto o atentado que atingiu Manhattan, tão familiar a nosso imaginário. E é nessa época de crises e de rupturas que se afirma uma terceira esfera da ética, a “macro-esfera”, representando a idéia de cidadania universal.

Grandes riscos já afetam e podem afetar ainda mais a humanidade no seu conjunto: riscos ambientais, embora ainda um pouco imprecisos; riscos econômicos, com a sua capacidade de varrer do mapa economias emergentes e de expandir dramaticamente a pobreza e a exclusão; riscos políticos, que nos deixam entre a perspectiva de submissão total à hegemonia norte-americana e a de conflitos de baixa ou média intensidade; riscos tecnológicos.

Estes riscos são em boa parte manifestações de “três desequilíbrios maiores: entre o Norte e o Sul do planeta; entre os ricos e os pobres no seio de cada sociedade; entre os seres humanos e a natureza” (Aliança 1996) . Eles nos falam da grande atualidade dessa macro-esfera e da premência de formular princípios éticos globais amplamente aceitos. Estamos longe disso! É nessa hora que uma perspectiva ecológica, sem dúvida, aporta algo a uma ética contemporânea que nos prepare para o futuro.

A perspectiva ecológica renovadora da ética

Tornou-se já comum afirmar que a reflexão sobre o meio ambiente nos leva a acabar com a separação radical entre o ser humano e a natureza, consagrada em termos filosóficos por Descartes, que fez do homem pensante o mestre e possuidor da natureza, matéria a transformar e re-fabricar. A ecologia, nota François Ost, registra na história do universo um continuum marcado por dois saltos qualitativos: o surgimento da vida e o do sentido (a hominização), o que o faz afirmar: “Não há mais, de um lado, o ser humano e a natureza do outro; é no seio de cada ente que passa doravante a diferença: o homem é, ao mesmo tempo, matéria, vida e ciência, capaz de significação, natureza e cultura.” (Ost. 1995, 255) Edgar Morin, ao introduzir o leitor ao pensamento complexo, por sua vez escreve: “Assim, o mundo está em nossa mente nosso espírito, a qual está no interior do mundo”. (Morin, 1990, 60) Cada ser humano é assim herdeiro do passado, nos seus genes e na sua cultura, e responsável por fazer frutificar para os seus descendentes essa herança.

Poderíamos dizer que o passado do mundo e da humanidade está em cada um de nós. Que somos cada um como um condensado do mundo. Nos situamos na história da humanidade, que vai além do tempo histórico que ela constrói e se estende desde antes do surgimento da vida. Entende-se assim a humanidade não somente como herdeira de um patrimônio cultural expresso nas religiões e filosofias, nas línguas, nas artes etc, mas herdeira também de uma natureza da qual emergiu e à qual pertence.

Modificado pela natureza, o ser humano, por sua vez, a transformou profundamente. Na sua dominação da natureza, o ser humano, até o século passado, embora fosse capaz de marcar profundamente vastas regiões, não as modificava em geral de modo irreversível. Ou, quando isso aconteceu, como foi o caso de regiões do hoje Próximo Oriente, essas modificações ficavam circunscritas e não afetavam o conjunto do planeta. Isso mudou. Basta olhar a diferença entre a ocupação do cerrado pela pecuária até os anos 70, de fraco impacto ambiental, e a expansão da soja hoje, que afeta em profundidade e por um longuíssimo tempo o ambiente. É aterrador o contraste entre a ocupação tradicional das florestas tropicais e as frentes de desmatamento da pecuária extensiva e da exploração madeireira, produzindo catástrofes desde já incontroláveis, como as que ocorreram em 1997 nas ilhas do sudeste asiático e, em 2000, em Roraima. O desaparecimento de espécies vegetais e animais, relativamente lento até os anos 50, tende a uma aceleração em progressão geométrica. A velocidade com que se processam essas mudanças radicais e o seu alcance se dão em conformidade com a nossa época em que tempo e espaço se comprimem. O futuro e o outro lado do mundo nunca mais serão distantes porque já estão sendo impactados pela ação e as decisões humanas, aqui e agora.

A humanidade, além de não conseguir preservar o patrimônio que recebeu para repassá-lo adiante, o dilapida em pouquíssimas gerações e menospreza o fato de que nosso oikos, nosso habitat, estende-se às dimensões do mundo e constitui uma moradia única que se passa de geração em geração.

Hans Jonas enuncia as conseqüências éticas dessa nova situação da humanidade nos seguintes termos: “Hoje, a ética tem a ver com atos que têm um alcance causal incomparável em direção ao futuro, e que são acompanhados de um saber de previsão que, independentemente do seu caráter incompleto, vai muito além, ele também, do que se conhecia antigamente. É preciso acrescentar à simples ordem de grandeza das ações a longo termo, freqüentemente a sua irreversibilidade. Tudo isso coloca a responsabilidade no centro da ética, inclusive os horizontes de espaço e tempo que correspondem aos das ações” (Jonas, 1995,17).

Está se falando aqui da responsabilidade para com a humanidade futura. François Ost, por sua vez, fala de “responsabilidade-projeto, mobilizada pelos desafios do futuro, de preferência a uma responsabilidade-imputação, presa às culpas do passado. Seus beneficiários são as gerações futuras e não a natureza enquanto tal.” (Ost, 1995, 296).

Vê-se que, entre as três esferas da moralidade que guiaram essa reflexão, não existe uma hierarquia ou alguma solução de continuidade. A dilatação da responsabilidade a dimensões espaciais e temporais que escapam ao alcance da nossa experiência individual faz com que o “próximo” seja meu familiar, meu vizinho e, ao mesmo tempo, meu semelhante que nunca encontrarei e sempre desconhecerei. Esta reflexão vai de encontro ao que declarava o populista russo Petrachewski: “Não encontrando para mim nada que seja digno do meu apego, nem entre os homens, nem entre as mulheres, me consagro ao serviço da humanidade” (citado por Nicolas Baerdieff in Sources e sens du communisme russe).

A percepção das ligações existentes entre as três dimensões da ética propostas aqui é fundamental para fugir de duas armadilhas:

A primeira é a da “deep ecology” (ecologia profunda), pouco difundida entre nós. Simplificando, poder-se-ia dizer que, ao se pensar a Terra como sistema vivo e ver como está sendo agredida pela humanidade, no afã de preservá-la, acaba-se afirmando a supremacia da vida em si sobre todo projeto da humanidade. O antropocentrismo, que afirma que o ser humano é a medida de todas as coisas, deveria ser substituído pelo ecocentrismo, em que a Terra como sistema vivo se torna o centro das preocupações humanas. Sem ter condições de desenvolver uma reflexão mais aprofundada sobre essa corrente ambientalista, contento-me em observar que a “macro-esfera” da ética aqui apresentada sublinha a responsabilidade do ser humano sobre o destino da Terra, porém como seu habitat e parte intrínseca dele-mesmo. Se o ser humano é capaz de responsabilidade para com seu habitat é porque nele, no seu “próximo”, nesse território que ele chama de pátria, ele é capaz de reconhecer o mundo. Portanto, nem antropocentrismo nem ecocentrismo, mas uma totalidade complexa feita de complementaridades e de contradições, de dissonâncias e de harmonias. Essa totalidade somente adquire existência porque existe o pensamento humano que lhe dá sentido, para o bem e para o mal. O homem descentra a sua perspectiva sobre o mundo: ele-mesmo não é mais o centro absoluto; muda de lugar, em combinações múltiplas com a natureza e a Terra, e isso é fundamental.

Não é menos fundamental afirmar que, apesar de deslocá-la, o ser humano continua tendo uma perspectiva. É sujeito chamado à responsabilidade. Quanto mais se fala de natureza e de meio ambiente, mais se enfatiza a cultura e a humanidade. Correríamos o risco de antropomorfismo se disséssemos que a natureza tem direitos e deveres. Mas o direito e a necessidade de cada ser humano a um ambiente sadio e a um futuro digno, o direito que tem a vida futura de desabrochar o obrigam a respeitar e conservar essa natureza, a assumir para com ela uma “responsabilidade assimétrica”, como disse Hans Jonas. Assimétrica, pois não há reciprocidade moral; não há contrato entre duas partes.

A segunda armadilha seria a de tomar como referência dessa nova ética uma humanidade abstrata, como coletivo indiferenciado, ao qual seria atribuída a responsabilidade para com o futuro, esquecendo-se o presente e as profundas clivagens que a atravessam. Sabemos e vivenciamos a profunda desigualdade na distribuição e na apropriação dos recursos naturais e do meio ambiente, o que evidencia a enorme diferença existente nos graus de responsabilidade de cada um. Vemos como, e isso é particularmente visível na cidade, às manifestações de exclusão social, acrescenta-se a exclusão e mesmo uma certa apartação ambientais. O Rio de Janeiro pobre é, geralmente, mais distante das praias e, quando se abre uma Linha Amarela que encurta as distâncias e o aproxima da Barra da classe média, o murmúrio dessa classe média contra os invasores torna ainda mais visível esse apartheid sócio-ambiental. Nesse plano, a perspectiva ecológica alarga a nossa percepção dos valores que sustentam a democracia e dá novas formas a certos conflitos sociais, que passam a se chamar de “conflitos sócio-ambientais”. Ao dar concretude à nossa humanidade universal, ela revigora o sentido da “mesosfera” da cidadania que se constrói na escala da nação.

A Constituição de 1988 legitima essa visão quando declara que o meio ambiente é “bem de uso comum do povo”. E é baseado nesse princípio que Henri Acselrad reflete sobre o sentido dos conflitos ambientais no Brasil: “Essas lutas têm por objetivo geral introduzir princípios democráticos nas relações sociais mediadas pela natureza: a igualdade no usufruto dos recursos naturais e na distribuição dos custos ambientais do desenvolvimento; a liberdade de acesso aos recursos naturais, respeitados os limites físicos e biológicos da capacidade de suporte da natureza; a solidariedade entre as populações que compartilham o meio ambiente comum; o respeito à diversidade da natureza e aos diferentes tipos de relação que as populações com ela estabeleçam; a participação da sociedade no controle das relações entre os homens e a natureza” (Acselrad, 1992, 19).

Muitos problemas ambientais hoje colocam a impossibilidade de tratar as poluições, a degradação do meio ambiente e o esgotamento dos recursos naturais como uma questão privada. O fato de que a maioria das agressões afeta a outros, próximos ou distantes, hoje ou no futuro, fundamenta a indivisibilidade do patrimônio natural, proclamada na Constituição, e coloca limites à propriedade privada. A derrubada da mata na propriedade afeta, multiplicada por milhares de derrubadas e queimadas, clima, regime e perenidade das águas, biodiversidade, saúde, etc. O uso de pesticidas sobre as culturas afeta não só a saúde do produtor mas a dos consumidores, a qualidade do solo e sua capacidade futura de produzir, a resistência das plantas, a segurança alimentar no futuro, etc. As opções por uma grande barragem hidroelétrica ou por uma usina termoelétrica, por uma BR que corte a Amazônia ou por uma hidrovia como a Paraguai-Paraná ou a Araguaia-Tocantins são tão importantes que é muito pouco realizar Rimas Relatórios de Impacto Ambiental e burocráticas audiências públicas antes de implantar essas obras. Deveriam ser exigidos grandes debates na sociedade que as examinassem sob a ótica da responsabilidade-projeto e da solidariedade para com os brasileiros de amanhã e para com as populações atingidas, que, por serem em geral índios, pequenos produtores, pescadores e extrativistas, não pesam tanto nas decisões quanto os acionistas dos bancos financiadores, grandes consumidores industriais de energia, exportadores de soja e empreiteiros.

A consolidação do capitalismo associada ao desenvolvimento das idéias liberais fez com que o indivíduo se tornasse centro da ética, e a liberdade individual o seu valor mais precioso. Se o capitalismo de cada dia mostra a que aberrações leva o individualismo absoluto, a derrota do socialismo soviético provou que de fato não se pode construir uma sociedade sem levar em conta os indivíduos com seus interesses e seus desejos. O futuro parece estar na reconciliação do coletivo e do individual, da solidariedade e da liberdade, da igualdade e da diferenciação. Ao recapitular o que se constitui no melhor do que somos, pergunto-me por qual monstruosidade chegamos a ter como categoria essencial do pensamento comum a economia, e ainda por cima maquilada de “desenvolvimento sustentável”? Sem medo de ser chamado de dinossauro, penso que o momento atual deveria ser de reafirmação do valor central da solidariedade, valor assentado sobre o senso do dever e sobre a esperança, aquela que pode nos levar a assumir a “responsabilidade-projeto” para com o futuro da humanidade e do planeta.

Uma ética renovada da democracia fundadora de uma sociedade sustentável. O exemplo amazônico brasileiro

O uso do conceito de “desenvolvimento sustentável” como perpetuação da ilusão do progresso não deve nos levar a concluir que está na hora de abandonar o conceito e o terreno aos abutres, embora prefiramos falar de “sociedade sustentável”. Propõe-se aqui, à luz de flashes amazônicos, mostrar como o que chamei precariamente de “ética renovada” é vivido de um certo modo na Amazônia e pode dar elementos para pensar uma sociedade sustentável na Amazônia.

Formada muito recentemente, à escala dos processos geológicos e naturais, a existência da floresta amazônica faz refletir sobre a fragilidade do nosso futuro. A floresta tem uma importância inegável como sorvedouro de CO2, umidificadora e amenizadora do clima, conservadora viva da variedade da vida. Mas demonstra agora uma fragilidade patente no balanço produção/consumo de CO2, ameaçado pela queima crescente da mata e dos campos; nos equilíbrios climáticos cujos periódicos desajustes vêm se multiplicando pela intervenção dos aprendizes de feiticeiro que somos; na biodiversidade aparentemente inesgotável mas cuja erosão pode chegar a um crescimento geométrico; nas suas águas, visível no volume e no regime dos afluentes da margem direita do Amazonas e na tendência a menor umidade de grandes áreas de florestas. Por isso, a população amazônica se vê investida de uma missão de conservação do que seria “patrimônio da humanidade”.

Os setores econômicos e políticos dominantes consideram a Amazônia como a última fronteira a abrir ao seu voraz apetite de lucro, e, por isso, não hesitam em instalar no congresso uma CPI das ONGs, sem nexo nem foco, e pressionar por todos os meios por mudanças catastróficas do Código Florestal. Por que então não escutar sua população? A conservação da Amazônia é ou, mais exatamente, era o projeto de futuro dos povos indígenas e dos caboclos ribeirinhos, freqüentemente obrigados hoje, por condições de sobrevivência, a liquidar com os seus recursos. Estas populações colocavam limites culturais e religiosos à exploração da floresta. Limites acionados unicamente em função das necessidades de reprodução individual e coletiva, não só das famílias e comunidades de hoje, mas das do futuro. A natureza, fonte de espiritualidade e de vida, não é algo que se quer dominar. Negocia-se com ela, que é temida, respeitada, manejada, assegurando que ela vai continuar a dar fartura e sustento.

Freqüentemente, certos grupos sociais amazônicos, semi-extrativistas semi-produtores, foram apressadamente apresentados como vivendo em regime de subsistência, distantes do mercado. Não é verdade, mas a inserção de muitos deles no mercado dava-se, e ainda se dá, nos marcos dessa reprodução familiar e não do lucro capitalista; portanto colocavam-se limites à exploração. Quanto à extração da borracha nativa, as condições mesmo da sua exploração, depois da primeira fase de dizimação total dos seringais do baixo Amazonas, exigiam que fosse preservado o ambiente natural.

Se essas estratégias de sobrevivência aparecem hoje mais merecedoras de registro etnográfico do que de incentivo econômico, as grandes questões ambientais nos fazem descobrir como esses povos e grupos sociais estão inseridos num projeto ético que liga a sua realidade à macro-esfera da ética. Sua existência de sacrifício e de teimosia lembra que não se pode construir desenvolvimento a custo da insustentabilidade e do desaparecimento de sociedades, pois, com eles, desaparece a possibilidade de um mundo humanizado, quer dizer um mundo onde o ser humano possa viver como gente. Lembra a continuidade e a coerência existentes entre a forma como se gera o quotidiano e a gestão do futuro da humanidade. Recorda, enfim, que existe a possibilidade de um outro mercado, a serviço da vida e não do lucro.

Não se trata de voltar ao passado e de isolar num ambiente anacrônico povos indígenas ou de restituir a extrativistas um mítico paraíso que nunca tiveram. A Amazônia quer hoje encontrar novos caminhos para um genuíno desenvolvimento sustentável. Duvido que estes caminhos possam ser encontrados pelos grupos econômicos e políticos que investem, depois do pasto, da mineração e da metalurgia bruta, na segunda onda, da madeira e do alumínio, ou já na terceira, dos grãos, em especial da soja. Pois continua a perspectiva de enclaves, da Zona Franca e Carajás até o Brasil em Ação, cujos projetos de infra-estrutura atravessam a Amazônia como um corredor obrigatório para exportação. Falta o debate com a sociedade amazônica no seu conjunto. Falta a percepção que a população da região deve ser a base e o motor do futuro da região. Falta cultura no sentido de uma visão do mundo fundada sobre os valores mencionados aqui. Falta ética.

O que falta às classes dominantes encontra-se nas classes trabalhadoras e “povos da floresta”. Organizações indígenas, movimento sindical no campo, movimento dos seringueiros, dos colonos da Transamazônica, dos pescadores artesanais, das cortadoras de babaçu, movimentos urbanos, fóruns de entidades, ONGs, setores políticos, pessoas de boa vontade... uma multiplicidade de pessoas e grupos colocam ou começam a colocar em prática a “responsabilidade-projeto” construtora do futuro. Em centenas de experiências, de projetos e de propostas, estão esboçando um outro tipo de desenvolvimento para a região.

Se o poder – qualquer poder não se auto reforma, a construção do futuro exige, portanto, mudanças no poder. Mas como um novo poder pode evitar reproduzir automaticamente os vícios do antigo poder? Como pode se levantar sem ser preso ao chão do imediato pelo peso do quotidiano e ao círculo estreito de uma moral da reciprocidade para com a sua clientela? A ética da responsabilidade-projeto para com o futuro pode ser o impulso que coloque em movimento a constituição de um novo poder e o ajude a levantar vôo.


Jean-Pierre Leroy é educador, assessor da Área de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Fase e membro da Coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.


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