REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Segurança contra quem? - Carlos Vogt
Reportagens
Lei sobre crimes de informática voltará ao debate
Rodrigo Cunha
Não morda a isca!
Flávia Gouveia
A liberdade vigiada do Orkut
Cauê Nunes
Códigos a(r)mados, códigos desa(r)mados
Yurij Castelfranchi
Governos e mercado impulsionam censura na Internet
Germana Barata
Artigos
Certificação e identidade digital: ICP-Brasil
Renato Martini
A robotização do controle
Diego Saravia
DRM: Defectis Repleta Machina
Alexandre Oliva e Fernanda G. Weiden
Ferramentas de segurança alinhadas à realidade brasileira
Luiz Fernando Rust da Costa Carmo
Hackers, monopólios e instituições panópticas
Sergio Amadeu da Silveira
Resenha
Reconhecimento de padrões
Marta Kanashiro
Entrevista
Pedro Rezende
Entrevistado por por Rafael Evangelista
Poema
Guerra solidária
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
A liberdade vigiada do Orkut
Por Cauê Nunes
10/12/2006

Após toda a polêmica entre o Google do Brasil e o Ministério Público Federal, a empresa decidiu cooperar e vai liberar uma ferramenta que ajuda a Polícia Federal no combate aos crimes cometidos no site de relacionamentos Orkut. O objetivo é agilizar as solicitações feitas pela Polícia, mas os dados pessoais dos usuários continuam sendo liberados somente via ordem judicial. Isso quer dizer que as páginas com conteúdos criminosos podem ser retiradas mais rapidamente, mas o acesso aos dados dos criminosos precisa ser autorizado pela Justiça. As informações foram publicadas no site IDG Now, no dia 28 de novembro. A assessoria de imprensa do Google do Brasil disse que só vai passar informações quando a ferramenta for disponibilizada.

Retomando o caso: em agosto deste ano, a Procuradoria da República no estado de São Paulo ajuizou uma ação civil pública solicitando que a Justiça Federal obrigue o Google do Brasil a quebrar os sigilos de dados de internautas que cometem crimes via Orkut. O autor da ação, o procurador Sérgio Gardengui Suiama, pediu uma indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 130 milhões, além de multas diárias para cada decisão judicial não cumprida. A empresa não atendeu nenhum dos 38 pedidos de quebras de sigilo que foram deferidos pela Justiça Federal, sob a alegação de que somente a matriz Google Inc, sediada nos Estados Unidos, possui as informações.

Segundo o presidente da ONG Safernet, Thiago Tavares, a alegação do Google do Brasil não tem procedência, já que a empresa liberou os dados cadastrais dos criadores de uma comunidade ofensiva à honra da socialite Yara Baumgart. “Se a empresa teve acesso e disponibilizou os dados desse caso, não faz sentido dizer que não possui o acesso”, diz. Tavares lembra que os casos de crimes de pedofilia e ódio racial que estão sendo investigados pela PF são tão ou mais graves que a ofensa à honra do caso da socialite. “Se é assim, não há uma explicação razoável para cooperar em um caso e nos outros não”, diz.

A disponibilização da ferramenta não muda quase nada o caso ainda em andamento. A informação mais recente (do dia 30 de novembro) é que a empresa teve uma vitória parcial e conseguiu suspender a decisão judicial que previa o pagamento de multa de R$ 50 mil por dia pelo atraso do repasse das informações solicitadas pela Justiça Federal. De acordo com a assessoria de imprensa do procurador do Google no Brasil, o advogado Durval Goyos de Noronha Jr., “o desembargador federal relator do caso, Dr. Fábio Prieto de Souza, entendeu que não cabe à Justiça Cível estabelecer prazos para o cumprimento das ordens judiciais expedidas pela Justiça Criminal e, menos ainda, determinar se o cumprimento de tais ordens é ou não satisfatório”. Confira a evolução cronológica do caso no site Safernet.

Mas mesmo com todas as justificativas apresentadas, fica a pergunta: por que o Google não coopera? O Ministério Público diz não acusar a empresa de nada, quer apenas que ela colabore com as investigações de crimes cometidos na Internet. Uma possível resposta para essa questão vai além do caso Google e diz respeito à Internet como um todo.

O Leviatã

De acordo com o professor do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da COOPE/UFRJ, Henrique Cukierman, uma das principais discussões sobre a rede de computadores é a questão da governança, entendida como um conjunto de fatores que compreende as tradições, as instituições, os artefatos e processos que concorrem pelo poder que é exercido na rede. Em outras palavras, a questão é: quem governa a Internet?

“O senso comum diz que a Internet é anárquica, que não existem leis e que lá é um espaço da liberdade e até mesmo de impunidade”, diz Cukierman. “Isso não é verdade”, completa. Mesmo que não existam regras claras e muito menos leis que estabeleçam normas, Cukierman diz que a própria arquitetura da rede impõe regras. Entendida como o conjunto de programas (software), máquinas (hardware) e instituições (provedores de acesso, prestadoras de serviços etc), a arquitetura foi concebida por um conjunto de pessoas, que possuem uma visão política, econômica, social e assim por diante. “Portanto, nada é puramente técnico e a arquitetura da Internet precisa ser pensada pelo ponto de vista sócio-tecnológico”, diz. “Todo artefato tecnológico possui uma configuração de mundo, ou seja, está inserida ali a forma de mundo de quem concebeu aquilo”. Isso vale não só para a Internet, mas para celulares, carros etc. Um exemplo disso seria o protocolo de navegação da Internet, o TCP/IP que, para transportar um pacote de informações exige um endereço temporário de origem e destino (o número de IP), e quem distribui esses números de endereçamento são as instituições que comandam parte da arquitetura da Internet.

“Nesse sentido, o caso do Orkut vai no cerne do problema. Só eles (Google) possuem os protocolos daquele ambiente. Então quem desenvolve e detém os códigos acaba possuindo a soberania da Internet”, diz. É importante deixar claro que o Google só possui os protocolos dos serviços que eles prestam, mas como a empresa cresce muito e compra sites e serviços que estão fazendo sucesso (caso do site de vídeos YouTube), o poder da empresa tende a crescer.

Cukierman afirma que a recusa do Google em passar as informações solicitadas pela Justiça Federal passa pela questão da soberania. “Quanto mais regras surgirem para frear ou limitar as regras já estabelecidas pela arquitetura, pior para as empresas detentoras do poder”, diz. “Quanto mais gente utilizando os serviços, mais poder a empresa tem, tanto que o tema inclusão digital deixou de ser um objetivo somente de ONGs e poder público, as empresas serão as grandes interessadas nisso”.

As leis

Cukierman ressalta que existe uma tentativa de aplicar as leis do “mundo real” no “mundo virtual”, que é exatamente o caso entre a justiça brasileira e o Google. “O poder judiciário está sempre correndo atrás e tentendo se adequar a essa nova realidade”, afirma.

O advogado Guilherme de Almeida, sócio da KCP Advogados e pesquisador da Diplo Foundation, diz que o fato da lei “estar atrás” não é necessariamente ruim, já que as leis representam algo que já está consolidado na sociedade. “A tentativa de antecipar a lei pode gerar conflitos, já que a realidade que ela regula não está completamente configurada”, diz Almeida. Ele ressalta que as leis precisam se adequar às novas realidades, mas nunca se antecipar. Sobre o caso do Google, Almeida diz que do ponto de vista legal existem dois pontos a serem considerados: o primeiro diz respeito ao artigo 5 da Constituição, que prevê o direito e a garantia à privacidade, princípio que garante o não fornecimento dos dados cadastrais de usuários do Orkut. O segundo ponto diz respeito ao Código Penal, que estabelece punições para quem comete crimes. Quando um crime é cometido, a justiça pode solicitar a suspensão do direito à privacidade dos envolvidos para a polícia poder investigar. O caso clássico é a quebra de sigilos telefônicos e bancários que vemos nos noticiários sobre escândalos políticos. No caso do Google, foi solicitada a quebra do sigilo na Internet.

Almeida diz que no caso Google ainda há um tempero extra: a questão intenacional. Como o Orkut é um serviço prestado por uma empresa norte-americana e o servidor fica lá, a empresa Google também está submetida às leis americanas, fato que cria uma série de confusões. “Não existe um consenso entre países na maneira como os dados pessoais devem ser tratados. Cada país possui suas leis e regras”, afirma Almeida. “Como a Internet não se enquadra em limites territoriais, o problema ganha proporções internacionais”, completa.

O advogado aponta que existem tentativas de soluções para essas questões. Almeida participou este ano do primeiro Fórum de Governança da Internet, que aconteceu na Grécia. O Fórum vai acontecer durante cinco anos (o ano que vem será no Brasil) e no final vai produzir um documento de recomendações para a governança da Internet. “Participam do evento governos, empresas, ONGs e representantes da sociedade civil, todos buscando uma solução para os problemas colocados pela Internet”, diz. O Fórum, ressalta, não terá poder normativo, apenas recomendativo.

Googando sua vida

Todo mundo que pensa sobre essas questões já deve ter se perguntado: mas como o Google ganha dinheiro? Com você, usuário do Orkut, Gmail, YouTube e do buscador mais popular do mundo. De acordo com Thiago Tavares, da Safernet, o grande patrimônio do Google é a sua base de dados sobre a população. Somente o site Orkut possui aproximadamente 8 milhões de usuários no Brasil (corresponde a 75% de todo os membros do site). “Cruzando as informações dos usuários de todos os serviços prestados pelo Google, pode se criar uma base de dados bem detalhada sobre os hábitos da população usuária”, afirma Tavares. Uma pessoa pode, por exemplo, ter um perfil no Orkut que diga quais são suas preferências culinárias, artísticas, sexuais, profissionais etc. Além disso, se essa pessoa utilizar o buscador, o Google (a partir do endereço IP) saberá o que essa pessoa busca na Internet, quais contatos faz, o que gosta e, se essa mesma pessoa usar o YouTube, a empresa saberá quais são os vídeos de sua preferência.

Acessando os termos de uso do e-mail Gmail vemos a seguinte cláusula, chamada Anúncio: “Em consideração pelo uso do Serviço, você concorda e reconhece que o Google exibirá anúncios e outras informações adjacentes e relacionadas ao conteúdo (grifo nosso) de seu e-mail. O Gmail veicula os anúncios relevantes usando um processo completamente automatizado que permite ao Google direcionar efetivamente conteúdo de alteração dinâmica, como e-mail. Nenhuma pessoa lerá o conteúdo de seu e-mail para direcionar esses anúncios ou outras informações sem seu consentimento, e nenhum conteúdo de e-mail ou outras informações de identificação pessoal serão fornecidos para anunciantes como parte do Serviço”. “Mesmo que seja um robô lidando com os dados, eu não me sinto à vontade sabendo que estão tendo acesso ao conteúdo dos meus e-mails”, diz Tavares.

Já na cláusula chamada Privacidade lê-se: “As informações pessoais coletadas pelo Google podem ser armazenadas e processadas nos Estados Unidos ou em qualquer país em que a Google Inc. ou seus agentes mantenham instalações. Ao usar o Gmail, você concorda com qualquer dessas transferências de informações que ocorra para fora de seu país”.

“Nós ainda temos muitos problemas no Brasil com a proteção dos dados pessoais; já na Europa existe uma procupação maior em proteger os dados dos seus cidadãos”, diz Tavares. Segundo o presidente da Safernet, o Google usa sua base de dados para vender anúncios direcionados de acordo com o perfil de cada pessoa. “O Orkut já vende anúncios nos Estados Unidos e na Índia, o Brasil pode ser o próximo”, afirma. O Gmail e o buscador já contêm esse tipo de publicidade. “Toda vez que você loga o Google, o Google loga se liga a sua vida”, finaliza.