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Novo ciclo do Proálcool: problemas derivados do aumento da produção do etanol
Por Alceu de Arruda Veiga Filho
10/04/2007

As notícias sobre o etanol estão pipocando na mídia. É o presidente dos Estados Unidos da América que vem ao Brasil e propõe a “Opep do Etanol”, são os países da UE que pretendem aumentar o uso para misturar à gasolina, como forma de reduzir os problemas da poluição atmosférica. É o Japão que se interessa pelo assunto e também outros países já demandando etanol como Venezuela, Paraguai, Peru, Colômbia, Canadá, Califórnia/EUA, etc. Esse interesse pelo produto é visível no aumento das exportações de etanol pelo Brasil, que em 2001 foi de 343 milhões de litros e em 2006 de 3,42 bilhões.

Enfim, são os consumidores aparecendo. E que consumidores! O tamanho deles impressiona: somente a demanda de etanol derivada do protocolo de Quioto está estimada entre 24 a 64 bilhões de litros até 2010, dependendo do percentual de 5% ou 10% de mistura à gasolina. O programa norte-americano de substituição da gasolina em 20%, até 2017, estima produzir 132 bilhões de litros.

No Brasil a demanda de álcool deverá crescer bastante, dado o aumento nas vendas de veículos leves flex fuel, que alcançou em 2006, participação acima de 70%, e em função da substituição da frota atual (conforme aponta um estudo, a perspectiva é de haver um consumo de 25 bilhões de litros no total de seis milhões de veículos até 2010).

A produção mundial de etanol é atualmente de 50 bilhões de litros, sendo que o Brasil produz 17,4 bilhões e os EUA produzem 18,5 bilhões, representando juntos 72% do total. Assim, comparando com a atual produção brasileira e estadunidense, que são os principais produtores mundiais de etanol, podemos ver como esse mercado poderá crescer.
Outro sintoma das possibilidades de obter lucros com a produção, venda e exportação de etanol é mostrada pela entrada de capital estrangeiro comprando usinas e ou associando-se aos grupos usineiros nacionais, assim como, recentemente, fundos europeus foram captados para investir na compra de usinas no país, conforme se noticiou na imprensa.

Para atender esse mercado crescente, incluindo uma participação maior do Brasil no mercado mundial de açúcar, o volume de matéria-prima deverá ser 670 milhões de toneladas em 2010, contra a produção atual de 380 milhões, isto é, crescimento de 76% em poucos anos. A nova área total a ser ocupada ficaria acima de oito milhões de hectares, e como a participação de São Paulo deverá ficar igual, em torno de 60%, isso significaria utilizar cinco milhões de ha com a cana-de-açúcar, representando acréscimo de 1,3 milhões de ha, sendo neste estado da federação que nos deteremos em analisar as conseqüências desse crescimento.

Muitos acham esse acréscimo pequeno, pois São Paulo ocupa 19 milhões de ha em atividades agrícolas, compostas por culturas anuais (feijão, milho, soja, hortaliças), perenes (citros, frutas, seringueira), semiperenes (cana-de-açúcar, banana), produção animal (carne, leite, mel), e reflorestamento (pinus, eucalipto), e a área de cinco milhões significaria ocupar 26% do total, em comparação aos 20% atuais. Mas, deve-se alertar que não há mais área agricultável inexplorada a ser incorporada, e o crescimento de algumas delas será sempre por substituição de outras.

Quais serão os impactos desse crescimento? Selecionamos duas ordens de problemas, sendo uma derivada desse padrão de crescimento, no que diz respeito à substituição de atividades, e uma segunda ordem como conseqüência do tamanho dos empreendimentos em termos de área e do fato de ser monocultura, sendo relativos aos problemas de concentração de terras, impactos ambientais e problemas nas relações de trabalho.

Desde 1980, quando se iniciaram estudos sobre os impactos do crescimento da cana em São Paulo, em função do Proálcool, até recentemente, constatou-se, em primeiro lugar a estabilidade da escala do sistema agropecuário, no patamar de 19 bilhões de ha, e, em segundo lugar, que a cana-de-açúcar havia crescido em área, substituindo, na seguinte ordem, pastagem natural (pecuária de corte e leite), culturas anuais de baixo valor unitário, e por último, culturas perenes de característica exportadora, como café e citros; embora tenham crescido atividades de alto valor agregado como fruticultura e hortaliças, que são intensivas em área, pastagem cultivada, e dependendo de ciclos expansionistas do mercado interno e externo retomaram crescimento o milho e a mandioca, alavancados pela demanda de alimentação animal e pela demanda da indústria de amido, a soja em função dos mais altos preços do mercado externo, e reflorestamento derivado da demanda externa e interna de celulose.

Muito embora esse processo seja natural na agricultura paulista, por este setor ter elevado dinamismo, verificou-se que o crescimento da cana ocorreu em detrimento de outras atividades. O problema a destacar não é relativo à redução da produção substituída, que pode ser explorada em outras regiões, ou ser compensada por aumentos de produtividade, mas ressaltar a redução da diversidade produtiva regional, que é danosa face à instabilidade decorrente da predominância de uma atividade. Um impacto relevante é referente às repercussões na circulação da renda local, expressa no fato de que a renda gerada naquelas atividades exploradas anteriormente circulava localmente, revitalizando periodicamente o comércio municipal, e que com a entrada da cana e substituição de atividades, a renda passa a circular em outros níveis, não mais locais.

Com relação à segunda ordem de problemas, sabemos que a característica principal de instalação de usinas é através da incorporação de terras próprias ou arrendadas, para garantir o abastecimento da matéria-prima. A área média de usinas na década de 1970 era de oito mil ha, e atualmente é de 12 mil ha, contra a área média de fornecedores independentes, que se mantém igual ao longo desses últimos 30 anos, entre 12 a 45 ha nas regiões de Piracicaba e Ribeirão Preto.

Ao estudarmos a distribuição de área de usinas por estrato de tamanho, entre períodos, verificaremos que houve redução de área para os menores estratos e aumento nos estratos maiores. A média do último estrato é de 38 mil hectares, contendo muitas unidades produtoras de açúcar e álcool de 40 ou 50 mil hectares (de 400 a 500 km2).

Esta é a forma de concentração que está ocorrendo nas novas áreas de expansão, na região oeste do estado, sob a forma de arrendamento e compras de terras. Uma conseqüência é o rompimento do tecido social e produtivo, com as atividades de menor expressão em nível de macro-região, mas importantes em nível local, sendo desarticuladas. Pequenas associações produtivas, longamente construídas, e que solidificaram relações sócio-econômicas locais com características de sustentabilidade, podem ser rompidas pelo impacto da cana.

Outro resultado é a homogeneização da paisagem, redesenhada pelos desflorestamentos de campos e de pequenos bosques, remodelamento de estradas e de cercas (estão sendo todas retiradas), e demolição de construções, para dar lugar aos extensos plantios de cana, manejados para obter economias de escala. Os pequenos produtores que arrendam ou vendem suas terras dificilmente voltam à atividade agrícola, pois normalmente vendem suas máquinas e equipamentos e migram para as cidades para viver da receita obtida. Isso já ocorreu durante a vigência do Proálcool no período de implantação, idos de 1970 e 1980, transformando produtores agrícolas, ativos e partícipes na criação da riqueza nacional, em meros rentistas, socialmente improdutivos.

A questão ambiental passa pelo enfrentamento dos problemas das queimadas, da recuperação das matas ciliares, da proteção dos mananciais, e do regramento do uso e manejo correto da vinhaça, dos agrotóxicos e de seus impactos. Em relação às queimadas sabe-se que há prejuízos sobre os microorganismos do solo submetidos ao calor extremo, causa morte de animais, causa enorme desperdício de energia contida na palha da cana, proporciona perdas de açúcar pela exudação dos colmos queimados, aumenta a poluição atmosférica justamente no inverno, com impactos na saúde humana, aumenta o consumo de água nas áreas urbanas para efetuar-se a limpeza do resíduo da queima, o chamado carvãozinho, que se deposita nas casas, quintais e áreas de serviço, e, por fim, aumenta a poluição atmosférica pela emissão de gases que contribuem para o efeito estufa.

Em relação às matas ciliares e proteção dos mananciais, apesar da legislação vigente, ainda há muito a avançar. Por exemplo, levantamentos oficiais da década de 1970, comparados com os atuais, demonstram o aterramento de minas de água para viabilizar o cultivo agrícola, ressalte-se, não somente da cana-de-açúcar. Sobre as matas ciliares não há comprovações, a não ser pontuais, de recuperação em dimensões representativas nas regiões canavieiras do estado. A regulamentação do uso da vinhaça, norma da Cetesb, de 2005, para uso nas áreas próximas às usinas e já comprovadamente saturadas é demonstração de que embora a vinhaça seja subproduto orgânico e que contém água e nutrientes minerais, seu uso precisa ser controlado porque pode ocasionar a salinização dos lençóis freáticos pela lixiviação desses elementos, como também causar nitrificação do solo e contaminar as águas dos lençóis freáticos, sendo origem de graves doenças nos seres humanos. Ademais, um outro perigo de contaminação nos aquíferos, que são reservas subterrâneas de água doce, está relacionado ao uso de herbicidas, pesticidas e adubos minerais. Neste caso, a preocupação se refere ao fato da cana-de-açúcar ser explorada nas áreas de recarga do aqüífero Guarani, na região de Ribeirão Preto, importante reserva de água doce para o sul-sudeste do Brasil, e que precisa ser monitorada com aparelhagem que proporcione informações sobre contaminação para análise e providências dos órgãos fiscalizadores.

Por último, porém não menos importante, mencione-se a questão das relações de trabalho. Se há avanços relativos à formalização de contratos e à extinção do trabalho infantil, resta refletir e estudar o problema do cumprimento da NR 31 (sobre segurança e saúde), e do pagamento por produção na colheita da cana, este responsável pela superexploração do trabalho, e que trouxe como conseqüência extrema a suspeita de mortes por exaustão, conforme denúncias divulgadas na imprensa e diligenciadas pela Procuradoria do Trabalho. É um problema de difícil solução, pois mesmo que se consiga legislar coibindo essa forma de remuneração, sempre haverá maneiras de se conseguir aumentos de produção e de se estabelecer metas de produção, o que de imediato remete à necessidade de haver monitoramento pelos sindicatos dos trabalhadores e fiscalização dos órgãos oficiais.

Todos esses problemas não podem ser relegados a segundo plano esperando que se bem contra-argumentados serão aceitos como resolvidos. Não só a sociedade brasileira faz-se cada vez mais presente nesse debate, como acabarão por se tornar elementos a compor barreiras à exportação de açúcar e de álcool, se não forem resolvidos e devidamente credenciados por consultores ou empresas, reconhecidamente competentes para fornecer selos de sustentabilidade.

 

Alceu de Arruda Veiga Filho é pesquisador científico da APTA/Pólo Regional Centro Sul/Piracicaba, Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.