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Reportagem
O piercing e a cruz: a dor que não se evita
Por Yurij Castelfranchi
10/05/2007

Sábado Santo em Nocera Terinese, aldeia de cinco mil pessoas no sul da Itália. A banda toca, enquanto passa a procissão. Os homens carregam uma estátua antiga representando a Piedade. De repente, tudo pára. Na frente da estátua aparece um flagelante. De joelhos, esfrega e bate as pernas para estimular a circulação sangüínea. Depois, com uma “rosa” feita de rolha cheia de cacos de vidros, se golpeia nas coxas, nas canelas. O ruído das batidas se ouve de longe. O sangue flui abundante, deixando na rua um rastro vermelho e marrom. Ao lado do flagelante, dois acompanhantes. O primeiro derrama vinho nas feridas para impedir sua coagulação. No peito nu do segundo, o flagelante, molhando o dedo em seu próprio sangue, desenha uma cruz vermelha. Prova de fé impressionante, e extrema. Mas não única. Algo parecido, variando a quantidade de sangue, o número de cacos de vidro, as máscaras ou capuzes dos flagelantes, acontece em outras cidades da Itália e da Espanha. E manifestações análogas, em que as pessoas decidem submeter-se à dor ou marcar seu corpo com práticas dolorosas, existem em quase todas as culturas.

Sofrer para Deus

Para a religião católica, evitar o sofrimento nem sempre é bom. Pelo contrário, a dor pode ser bendita e glorificada. A renúncia aos prazeres mundanos, ou até a busca de sofrimento físico, são considerados louváveis se vistos como forma de se entregar a Deus. Papa Bento XVI, quando ainda era o cardeal Ratzinger, afirmou no livro-entrevista God and the World que o sofrimento é o processo por meio do qual amadurecemos. Quem aceita o sofrimento, declarou o teólogo alemão, “torna-se mais maduro, mais capaz de entender os outros, mais humano. Quem sempre evitou sofrer não entende os outros; torna-se duro e egoísta”. Antes dele, João Paulo II havia escrito uma Carta Apostólica, sobre o “sofrimento que salva”. Cristo, comentava o papa, não escondia aos seus ouvintes a necessidade do sofrimento. Pelo contrário, dizia-lhes: “se alguém quer vir após mim... Tome a sua cruz todos os dias”. Wojtyla citava São Paulo apóstolo: “completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo”. E afirmava que “mais do que qualquer outra coisa, o sofrimento é aquilo que abre caminho à graça”. Na luta entre as forças do bem e as do mal, continuava o Papa, “os sofrimentos humanos, unidos ao sofrimento redentor de Cristo, constituem um apoio particular às forças do bem”.

De fato, a mortificação da carne é importante na religião católica. Alguns fiéis se abstêm de prazeres físicos (comidas, bebida, sexo). Muitos santos são famosos pelo sofrimento auto-infligido e pela alegria com que recebiam os estigmas. Alguns praticavam jejum no deserto, outros batiam-se, cortavam-se, perfuravam sua carne ou se flagelavam até sangrar. São Francisco de Assis praticava a auto-flagelação e usava o cilício, como fazem ainda hoje alguns membros da Opus Dei. Em alguns casos, há práticas radicais que a Igreja Católica vê com embaraço. Como o espetáculo da Paixão de Cristo que acontece em San Petro Cutud, nas ilhas Filipinas, onde há homens causando-se ferimentos com chicotes e alguns que chegam a ser crucificados com pregos. No entanto, em aceitar o sofrimento ou buscá-lo como meio para o fortalecimento ou a elevação, os católicos não estão sozinhos. Seja nos países do G7, no Sahara ou na Amazônia, há momentos em que a provação, o sofrimento físico e psíquico são importantes.

Quando a dor faz parte do caminho

Durante uma terapia psicanalítica, por exemplo, a dor não pode nem deve ser evitada. “Na experiência de uma análise”, comenta Isabel Fortes, psicanalista, “o paciente tem que necessariamente fazer uma travessia das suas dores, pois é da dor de cada um que uma análise vai tratar”. O analista, diz Fortes que é professora colaboradora na Universidade Federal do Rio de Janeiro, deve fazer “um contra-movimento à tendência dos pacientes em evitar a dor, em fugir do conflito e do problema, causadores de angústia e de dor. Não há crescimento sem uma certa dose de dor”. De fato, continua a terapeuta, “a idéia de que existe prazer sem dor vem do utilitarismo que marcou o século XIX”. Uma idéia que fez com que passasse a ser visto como positivo “buscar o prazer incessantemente e evitar a dor a qualquer custo”. Para a psicanalista, vivemos hoje numa cultura hedonista sob o signo do “imperativo do gozo”. O preço disso, acredita ela, “é o uso que se faz do outro, usa-se e abusa-se do outro se isso for para o bel-prazer do eu, do ego. Há, assim, um incremento da violência”. Entretanto, continua Fortes, buscar a dor junto com o prazer nem sempre é patológico. “No erotismo”, afirma, “não há separação entre o prazer e a dor. Os dois caminham juntos”. Freud, explica a psicanalista, compreende o masoquismo de dois modos. “Um é negativo: o masoquismo moral, o masoquismo daquele sujeito que se entrega à dor para se tornar uma vítima do outro, uma vítima do mundo. É o masoquismo do sujeito servil, que se humilha para angariar benesses, benefícios”. Mas Freud também enxerga uma positividade do masoquismo, na idéia do que ele chama de “masoquismo erógeno”. Que significa, explica Fortes, “que pode existir prazer junto com a dor, e não somente o prazer do alívio, o prazer que quer fugir da dor. O masoquismo erógeno é o prazer da intensidade, o prazer do erotismo, o prazer que não se quer sem dor”. Embora haja debates sobre onde se encontre a fronteira do patológico nas práticas masoquistas, Fortes acredita que, para a psicanálise, “masoquismo patológico é aquele em que o sujeito se fixa na dor como forma de culpabilidade, de vitimização e, desta forma, se enrijece com a dor. O sujeito se congelar na dor é patológico. A dor é positiva quando é uma travessia para a alegria de viver”.

Psicanálise à parte e desejos eróticos à parte, a dor vista como parte integrante dos caminhos da vida, é bagagem comum a muitas culturas. Muitos ritos de passagem, que marcam a entrada numa nova fase de vida, são caracterizados por práticas assustadoras ou dolorosas em que se marca, de alguma forma, o corpo. Na Amazônia brasileira, uma das provas que os jovens Sateré-Maué devem encarar para tornar-se adultos é a de enfiar repetidamente a mão numa luva contendo dezenas de formigas tocandiras. As meninas Rikbaktsa furam o nariz, enquanto, no cerrado, os adolescentes Xavantes têm suas orelhas perfuradas durante o rito de passagem. Em geral, tatuagens, escarificação (cortar, incidir ou lixar a pele para produzir um desenho de cicatrizes permanentes) perfurações ou mutilações nos lábios, lóbulos, genitálias, compõem o repertório de rituais do mundo inteiro. Na década de 1950, nos EUA, Roland Loomis, mais conhecido como Fakir Musafar, experimentava e reinventava tais práticas de alteração do corpo. Com o slogan de “o corpo é seu, brinque com ele”, Musafar praticou em si mesmo perfurações na genitália, branding (marcar a pele com objetos incandescentes), escarificação. E a famigerada suspensão do corpo por meio de anzóis e piercings fincados na pele, inspirada na cerimonia do O-kee-pa dos Sioux (tornada célebre pelo filme Um homem chamado Cavalo). Musafar inventou assim o movimento dos “primitivos modernos”: pessoas que praticam rituais de modificação do corpo e de passagem, tanto por razões espirituais como estéticas ou filosóficas. Hoje no mundo inteiro há pessoas que decidem alterar seu corpo por meio de cortes, queimaduras, piercings, alargadores (que aumentam gradativamente os furos no lóbulo da orelha, no mamilo etc.) e implantes (objetos de aço ou silicone inseridos abaixo da pele para formar o efeito de escamas, chifres e assim por diante). Alguns exemplos famosos? O americano Erik Sprague (que tem língua bifurcada e está se tornando um homem-lagarto), Katzen (a mulher-tigre), Enigma (um homem-puzzle) ou artistas como Stelarc (famosos por declarar que o corpo humano é obsoleto) e Franko B. (que em suas performances se machuca e sangra até desmaiar).

Corpos modificados, corpos marcados

Bruna Guedes e Filipe Espíndola são performers do Studio Nômade, em Campinas (SP). Espíndola é body piercer. Pratica em seus clientes alargamentos e perfurações (nos lóbulos, mamilos, lábios, genitália). Bruna, designer gráfica, olhar alegre num corpo caprichado em modificações, o acompanha nesse caminho. A body modification, explica o casal, pode proporcionar “uma melhoria na aparência e consequentemente na auto-estima”. Mas além da estética, a modificação pode ter objetivos “filosóficos ou espirituais, à medida que provoca sensações em quem a pratica ou a observa, além de servir como marco definitivo para algum evento”. Ambos acham que a dor, embora não seja o objetivo central da modificação, não deve ser evitada. Isso porque ela pode representar “o limite a ser transposto, o fator de mudança entre dois estágios antagônicos”. A dor, explicam, é “o portal a ser atravessado como símbolo de inserção em um novo mundo ou estágio da vida”. Para Espíndola, que já praticou com Bruna a suspensão do corpo, “a dor é elemento constitutivo e indissociável do ritual de passagem, sendo o corpo o objeto simbólico de registro de uma transformação. A dor não é o objetivo (como nas práticas sado-masoquistas), mas não deve ser ignorada ou maculada através de anestesias. Deve estar presente, mesmo que em escala mínima, para determinar a capacidade do indivíduo de transpor um obstáculo, vencendo a dor e renascendo”. Assim como acontece na poda: “quando podamos uma planta, damos a ela nova chance de renovar-se, pois ela se considera ameaçada e prepara-se para se fortalecer”.

Para Beatriz Ferreira Pires, arquiteta e artista plástica, os primitivos modernos nos lembram que a dor é necessária “para que haja vida, crescimento, amadurecimento”. Pires estudou as práticas de modificação do corpo em seu mestrado (em artes) e doutorado (em educação), e continua hoje sua investigação no Centro Universitário Senac (SP). Existe, afirma a artista, “uma dor necessária, que é cada vez mais evitada” e que em muitas culturas era um requisito para os rituais de passagem. “O ritual de passagem deve necessariamente ser uma coisa física, causar dor, verter sangue - ou pelo menos estar na eminência de fazê-lo –, e, preferivelmente, deixar uma marca no corpo. Essa marca será o registro da passagem, a lembrança física que fará o indivíduo ter sempre em mente a sua nova condição”. Além disso, continua Pires, que escreveu um livro sobre o tema (O corpo como suporte da arte – Piercing, implante, escarificação, tatuagem, Senac 2005), para os adeptos da body mod a dor física não se torna insuportável. A ausência de uma dor insuportável, acredita a artista, “só é possível devido à capacidade de atingir um estado alterado de consciência”. Durante tais práticas, continua Pires, “esses indivíduos deixam de sentir a dor e passam a observá-la”.

Camilo Albuquerque de Braz, antropólogo, doutorando em ciências sociais pela Unicamp, concorda. Para os adeptos da modificação corporal, a dor faz parte de um aprendizado. “Uma das representações freqüentes acerca da dor na body modification”, explica, “lhe atribui o significado de superação de limites, de marcar um momento de ruptura ou clivagem”. Em alguns casos, afirma, há também uma “associação entre a capacidade de superação da dor e uma certa concepção de coragem, de força, de resistência. A pessoa deve gradualmente acostumar o próprio corpo a cada uma das técnicas existentes, até chegar ao ponto máximo de resistência à dor, que seria o chamado ritual de suspensão.” Embora para Albuquerque, que dedicou seu trabalho de mestrado ao mundo da body modification em São Paulo, seja delicado definir o que significa dor, os adeptos da modificação do corpo nos mostram um lado importante. “Para muitos filósofos e filósofas, a dor é inefável. A dor em si não pode ser dita, mas sim os significados a ela atribuídos”. Em muitos casos, a dor “aparece como algo a ser anulado. Como na medicina ocidental, que se dedicou a desenvolver mecanismos sofisticados de se evitar a dor”. De acordo com o antropólogo, nos anos ‘80 e ’90 tatuagens e piercings “eram algo inusitado, permitindo aos adeptos se destacarem na multidão”. Hoje em dia, mesmo tendo sido em parte banalizadas, essas práticas não deixam de manter uma potencialidade subversiva e contestadora. O que está em jogo é “a utilização do corpo como mecanismo para a construção e a administração da identidade”. Inspirando-se nos conceitos da filósofa norte-americana Judith Butler (que afirma que nossa identidade corpórea e nosso gênero sexual não são coisas fixas, mas algo que atualizamos e experimentamos ao longo da vida por meio de “performances repetidas”), Albuquerque declara: “a reiteração de atos corporais como a costura de bocas e outros orifícios, objetos implantados na pele, partes do corpo sendo perfuradas por ganchos de metal e assim por diante, faz deles atos, de uma perspectiva performativa, potencialmente subversivos”. E se nossa identidade e corpo não são coisas fixas com as quais nascemos, mas são construídos ao longo da vida, a dor que os adeptos da body modification experimentam é importante: é um pedaço do que somos e conhecemos.

Além disso, pelo menos em algumas dessas práticas, há uma relação com o erotismo. Os piercings em locais como língua, genitais e mamilos, explica Albuquerque, são “às vezes associados ao aumento da performance sexual e da capacidade de dar e receber prazer”. Muitos adeptos e adeptas “se reportam ao fato de que seus parceiros se sentem mais excitados com a presença de uma jóia nesses locais do corpo. Ou mesmo afirmam que a sensação de possuir tal modificação lhes dava maior prazer durante as relações sexuais. Não estou dizendo que os adeptos da body modification são sadomasoquistas. O que estou dizendo é que a idéia de sentir prazer na dor, ou de que a experiência da dor possa ser algo positivo, não é restrita ao que se chama de sadomasoquismo. Se faz presente na body modification e possivelmente em vários outros contextos, inclusive religiosos”.

Por um lado, nossa sociedade parece “analgésica” - o Brasil é um dos maiores consumidores do mundo de remédios contra a dor. Apagamos, recalcamos a dor, física ou psíquica. Em algumas situações pode ser vergonhoso sofrer. Mas há momentos em que sabemos encarar a dor. E queremos. Para cumprir uma promessa ou marcar uma passagem, para nos fortalecermos, para alcançar objetivos espirituais ou para viver um desejo erótico. Entre 1895 e 1897, Oscar Wilde viveu preso na prisão de Reading. Lá, escreveu De profundis, uma longa carta para seu amante. “Onde há sofrimento”, decretou o poeta, “lá solo é sagrado”.

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Imagem dos flagelantes. foto: eoghanacht (GFDL)