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Reportagem
Nosso modo de sentir o mundo
Por Murilo Alves Pereira
10/09/2007
Na primeira vez que conversei com a Mari ela estava passando pano no chão de seu apartamento. O aroma de lavanda suspenso no ar era tão agradável que não pude deixar de comentar: “Que cheiro gostoso!”. Sem parar com o que estava fazendo, Mari virou-se pra mim e esboçou um sorriso que, na hora, não compreendi, mas me pareceu um tanto forçado. Só alguns dias depois fui entender a expressão no rosto de minha vizinha e amiga. A Mari nasceu sem o sentido do olfato, não possui a capacidade de perceber o cheiro das coisas – do aroma das comidas ao perfume dos produtos de limpeza.

Mariana Zazur, 22, é estudante do quarto ano do curso de estatística na Universidade Estadual de Campinas. Seu pai e seu irmão têm o mesmo problema, uma particularidade tratada pela medicina pelo nome de anosmia. “Trata-se de um sintoma que pode ter diversas causas, desde a obstrução da mucosa olfativa, o que é comum quando estamos gripados, até uma infecção nos nervos olfatórios”, explicou o médico neurologista Benito Damasceno, diretor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. “A má formação hereditária, no entanto, é um caso bastante raro”, concluiu.

A própria Mariana não sabe bem o porquê de sua anosmia. “Há cinco anos fui me consultar, mas o médico não soube explicar direito. Disse que poderia ser uma carne esponjosa ou problema de formação do nervo. Depois dos exames, vimos que não era carne esponjosa e ficou nisso. Eu nunca mais procurei saber”, contou. Segundo Damasceno, se uma pessoa jamais percebeu o cheiro na vida, a parte do cérebro responsável por interpretar essa sensação pode não se desenvolver e o problema se torna irreversível. “O cheiro é em grande parte aprendido. Confirmamos se algo é ou não cheiroso a partir de experiências anteriores”.

Para Damasceno, tal aprendizado faz do cheiro uma sensação bastante subjetiva e de difícil definição. “Há diversos perfumes e aromas, mas cada pessoa sabe o que é bom ou ruim devido à sua própria história”, resumiu. De forma didática, ele explicou que o caminho do cheiro inicia quando uma substância química entra em contato com as células sensoriais da mucosa olfativa, localizada na cavidade nasal. Ao ser dissolvida na mucosa, a molécula do cheiro reage com os cílios das células sensoriais. Esse contato provoca uma reação química que produz um impulso elétrico. Os nervos olfatórios, feixes formados por milhões de fibras, fazem esse impulso elétrico chegar até os lobos frontal e temporal, duas regiões do cérebro que traduzem a substância em cheiro. Uma falha em qualquer uma dessas etapas pode explicar o caso de Mariana.

Coleção de aromas

O ser humano é capaz de perceber mais de 10 mil diferentes odores, cada qual definido por uma estrutura química diferente. Mas como reconhecemos os cheiros? Segundo o especialista em vinhos, Sérgio Inglez de Sousa, que publicou quatro livros e tem quase 40 anos de experiência no assunto, o aroma está intimamente ligado à história de vida de cada um. “A degustação do vinho seria uma chatice se todo mundo sentisse o mesmo cheiro”, diz Sousa. “As percepções são diferentes, cada pessoa vai buscar no passado uma relação com o aroma que está sentindo”. Para ele, “aroma é afeto” e o vinho traz boas lembranças olfativas que permitem a sua identificação.

Ele ressalva, entretanto, que há uma série de aromas obrigatórios existentes em cada variedade de uva. A casta Cabernet Sauvignon, por exemplo, deve ter aroma de frutas vermelhas e tons de hortelã, assim como a Merlot normalmente apresenta o cheiro de ameixas pretas maduras. Já a Malbec tem como característica aromas que lembram frutas pretas (framboesa, groselha) e vermelhas. Para criar essa bagagem, o profissional do vinho precisa treinar o nariz, uma atividade perfeitamente possível na opinião de Damasceno e Santos. “Da mesma forma que treinamos o paladar e a visão, podemos disciplinar nosso olfato”, sugere o médico. O treinamento forma um banco de dados, a memória olfativa.

A tarefa de discriminar os odores e organizá-los nessa biblioteca de cheiros em nosso cérebro cabe a várias estruturas localizadas no sistema límbico (amígdalas, hipotálamos, hipocampos, córtex entorrinal, tálamos). A amígdala e o hipotálamo são responsáveis pelos aspectos emocionais e o córtex frontal pela discriminação e percepção consciente dos odores. “As amígdalas discriminam os diferentes odores e memorizam os seus significados emocionais para o indivíduo", explica Damasceno. O hipocampo e o córtex frontal, por sua, vez, respondem pela fixação de outros significados, como o valor social e o contexto espaço-temporal em que a ação ocorre. "Como todas essas regiões estão conectadas, o cérebro pode gerar um entendimento pleno do odor", completa o pesquisador.

Na visão do neurologista da Unicamp, o reconhecimento dos cheiros, nossa predileção por determinados perfumes e repulsa por outros odores podem ser explicados por duas hipóteses. Uma delas, biológica, diz respeito às características de sobrevivência de cada espécie. Segundo ele, todo ser humano reprime odores que acusam substâncias nocivas, alimentos estragados ou produtos gerados pela nossa digestão. Mas a explicação também pode ser cultural e vir da experiência pessoal de cada indivíduo.

Quando sentimos um aroma, de imediato as amígdalas trabalham e relacionam aquele odor à ação que está ocorrendo ou como nos sentimos naquele momento. O cheiro é, então, guardado na memória acompanhado da outra sensação e, quando for novamente percebido, é possível ligá-lo a essa outra sensação. O aroma do café, por exemplo, pode remeter a um determinado momento na infância quando toda a família se reunia para fazer o desjejum. Aos 64 anos, o médico Damasceno se orgulha de dizer que sente ojeriza por cigarro. Quando tinha sete anos via seu pai espalhar cigarros acessos pela casa para espantar os mosquitos – desde menino o médico cultivou uma repulsa por esse odor específico. “Foi bom que isso tenha acontecido, hoje eu não fumo”, brinca.

“Por outro lado eu adoro o cheiro de óleo de fígado de bacalhau”, conta o médico, se referindo ao complemento vitamínico que em outros tempos fazia as crianças torcerem o nariz quando eram forçados a tomar. Damasceno explica que aprendeu a gostar do óleo também quando menino. A pessoa que lhe fazia tomar dava carinho e atenção e o convencia de que ele ficaria forte se tomasse tudo. “São sempre experiências pessoais, todas elas registradas no sistema límbico”, explicou.

Na falta de experiências odoríficas outras tomam o lugar, como ocorre com Mariana. “Eu gosto muito de músicas, pois me fazem recordar de muitas coisas”, contou. Ela se define como bastante saudosista e fica curiosa quando as pessoas dizem que um cheiro remete a algo do passado. “Gostaria de ter a mesma sensação.” Com um sorriso no rosto, Mariana confessou que tardou a descobrir que cada pessoa tem seu próprio odor. “Eu fui dormir na casa de uma amiga e, de manhã, ela cheirou o travesseiro e disse ‘nossa está com o seu cheiro’. Fiquei intrigada com aquilo, não sabia que eu tinha um cheiro”.

O gosto do cheiro

Diferente da capacidade de distinguir milhares de cheiros diferentes, o paladar só consegue identificar 6 ou 7 tipos de sabores distintos. Não é de graça, portanto, que o olfato tem grande participação no gosto que sentimos das comidas. “O gosto é o aroma da boca”, profetiza Santos. Segundo ele, na alta cozinha, é função do sommelier harmonizar os aromas da comida e os do vinho. “Sem olfato não há gosto”, propaga outra frase de efeito. O especialista em vinhos destaca o exemplo das mães que mandam os filhos resmungões taparem o nariz para tomar o remédio amargo.

A degustação do vinho ocorre no sentido vertical: visão, olfato e paladar. Ao chegar na boca, o vinho, normalmente conservado a 16º C, entra em contato com a língua, que tem temperatura média de 36º C. Por ser bastante volátil, o vinho sofre uma leve evaporação e é percebido novamente pelo olfato. Muitos dos sabores que sentimos são na verdade odores ou sofrem uma grande influência do olfato. No caso de Mariana, a textura da comida é tão importante quanto o sabor. “Eu não sinto diferença entre a lasanha feita em casa ou em um restaurante”, exemplifica. “Também dificilmente consigo diferenciar o suco de laranja do suco de maracujá”, diz ela.

Manjericão e orégano, para a minha amiga, são condimentos usados apenas para colorir o prato, e azeite de oliva para dar uma textura diferente.

A ação dos feromônios

Ao borrifar o perfume no corpo antes de sair pra dar um rolê, o adolescente não se preocupa apenas em se sentir cheiroso, mas, principalmente, que outras pessoas percebam seu perfume. Por conta de seu poder de atração, a ação do perfume pode ser comparada, em forma de metáfora, à ação dos feromônios sexuais. A analogia se presta como mera ilustração, mas nem assim deixa de soar perigosa: os feromônios não se relacionam necessariamente pelo olfato e tão pouco funcionam apenas para atração sexual. A observação é do biólogo Alberto Arab, pesquisador-colaborador do Laboratório de Ecologia Química do Instituto de Biologia da Unicamp.

A ressalva do pesquisador é pertinente para derrubar o mito de que existam perfumes que contenham feromônios usados para atrair o parceiro. “É puro marketing, não há registros científicos da existência desses feromônios”, afirmou Arab, comentando que há páginas na internet que vendem produtos com ativadores de feromônios. Segundo ele, pouco se sabe sobre os feromônios do ser humano – algumas secreções como o suor e o ciclo menstrual podem ativar sensores internos sem que a pessoa saiba, isto é, os feromônios causam mais mudanças fisiológicas imperceptíveis no organismo do que interferem no comportamento.

Em linhas gerais, os feromônios são compostos químicos que envolvem a interação entre organismos de uma mesma espécie. Glândulas especializadas os eliminam para fora do corpo, o que os diferenciam dos hormônios – há indícios de que o feromônio seja uma evolução do hormônio. Na maioria dos casos, eles funcionam para a comunicação entre seres da mesma espécie. Uma formiga que faz uma trilha química no chão para encontrar novamente o ninho, a abelha que emite um aviso para as outras operárias de que há perigo à vista, a disputa por alimento ou por fêmeas e, é claro, o acasalamento. “Entre as mariposas, a fêmea atrai os machos com o feromônio e depois são eles que secretam a substância para cortejar a fêmea”, exemplifica Arab.

O entendimento da ação dessas substâncias é bastante útil para o combate de pragas nas lavouras. É possível sintetizar um determinado feromônio responsável pela atração de insetos machos e atraí-los para uma armadilha. A eliminação em massa dos machos dificulta a reprodução da espécie e reduz a população de determinada praga. Inicialmente, os pesquisadores se atentam para o comportamento da espécie e identificam o animal emissor do feromônio. O composto é então isolado e extraído e são feitos testes comportamentais em outros animais para entender os efeitos do composto. A substância que produz uma reação específica, como a atração dos machos, por exemplo, é purificada para que se determine a sua estrutura química. O feromônio é, então, produzido sinteticamente e em larga escala para ser utilizado pela agroindústria.