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Reportagem
A pressa de chegar
Por Rodrigo Cunha
10/11/2007

Amanhecia em Nova Yorque, naquele 24 de outubro de 2003, quando um seleto grupo de cem convidados partia para cruzar o Atlântico a mais de 2.100km/h. Eram passageiros do último vôo comercial do supersônico Concorde, que fez o percurso até Londres em cerca de três horas e meia. Quatro anos depois, a manhã do dia 25 de outubro testemunhou um gigante de 80 metros de envergadura e 24 metros de altura da Singapore Airlines partir de Changi, na Cingapura. Era o primeiro vôo comercial do modelo A380 construído pela Airbus, que levou 471 passageiros e 30 tripulantes até Sidney, na Austrália, em pouco mais de sete horas. Dependendo da configuração das classes executiva e econômica, esse mesmo A380 pode transportar até 853 passageiros.

Ambos os projetos consumiram muitos anos de pesquisa e bilhões de dólares em investimento antes de entrar para a história. O primeiro, como o avião de passageiros mais rápido de todos os tempos; e o segundo, como aquele com capacidade de transportar o maior número de pessoas em um único vôo. Se nas décadas de 1960 e 1970 o sonho da humanidade era voar cada vez mais rápido – mesmo pagando até US$ 9 mil por uma viagem de ida e volta entre a Europa e os Estados Unidos –, neste início de milênio, o objetivo das empresas aéreas é aumentar cada vez mais o número de pessoas que se deslocam pelo ar, incorporando os novos potenciais consumidores do gigantesco mercado de países emergentes como China, Índia e Brasil.

Desde o vôo do 14-Bis de Santos Dumont em 1906, em Paris, a cerca de 40km/h, a velocidade deu saltos periódicos em um século de aviação. Na Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, alguns aviões alcançavam 200km/h. Na Segunda Guerra, entre 1939 e 1945, os jatos de combate aproximavam-se dos 900km/h, velocidade média dos principais aviões de passageiros nas últimas décadas. Antes do primeiro vôo supersônico comercial, em 1976, com capacidade para no máximo 120 passageiros, a barreira do som já havia sido quebrada em 1947, com o caça norte-americano Bell X-1, e atingiu-se o dobro da velocidade do som em 1954, com o caça Starfighter, da empresa Lockheed, que chegou à velocidade máxima que se mantém há 40 anos – pouco mais de três vezes a velocidade do som – com seu avião espião SR-71.

O apogeu da velocidade na indústria bélica, nos anos 1960, inspirou projetos ousados de superar a barreira do som também no transporte de passageiros. Porém, apenas dois deles chegaram a operar comercialmente e venderam poucas unidades às companhias aéreas. A extinta União Soviética fabricou 16 Tupolevs, e um consórcio entre França e Inglaterra produziu 20 Concordes. Mas por que era tão caro voar em um avião como esse e por que ele não conseguiu se manter no mercado? De acordo com Bento de Mattos, da Divisão de Engenharia Aeronáutica do Instituto Tecnológico Aeronáutico (ITA), por atingir velocidades supersônicas, ele consome muito combustível, e é de uma era em que o preço do barril de petróleo era muitíssimo menor do que hoje. “Além disso, a tripulação do Concorde era composta dos melhores e mais caros pilotos da Air France e British Airways. O custo de manutenção também é elevado por ser produzido em pequena quantidade e não fabricado em série”, diz Mattos.

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Como os avanços na Fórmula 1 acabam chegando à indústria automobilística,
o Concorde também deixou seu legado
Foto: Divulgação


A redução de consumo, de ruídos e de custos em geral já concorrem há décadas com velocidade e autonomia de vôo nos projetos da aviação, mas um item em especial tem tido destaque cada vez maior: a segurança. “Além dos elevados custos de operação do Concorde – esclarece Mattos - ele já não podia ser considerado totalmente seguro nos padrões atuais. Os requisitos de certificação aeronáutica estão muito mais exigentes do que na época em que ele foi projetado”.

O único acidente da história do Concorde, que matou mais de 100 pessoas em 2000, pouco depois de decolar do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, foi o começo do fim da era supersônica nos vôos comerciais, mesmo ele tendo sido reprojetado para aumentar sua segurança. No entanto, assim como os avanços na Fórmula 1 acabam chegando à indústria automobilística, o finado Concorde também deixou seu legado. “Ele foi pioneiro de várias tecnologias que hoje estão presentes em várias aeronaves comerciais de transporte: sistema de comando e controle fly-by-wire, freios controlados eletricamente e piloto automático operando em todo o vôo”, destaca o pesquisador do ITA.

Velocidade nos trilhos

Outro projeto de transporte de passageiros em alta velocidade que nasceu nos anos 1960 é o do trem-bala. A primeira versão a operar foi da Shinkansen, a rede ferroviária do Japão, em 1964, cujos trens faziam o percurso entre Tóquio e Osaka a mais de 200km/h. Em 1972, a rede ferroviária francesa lançou um protótipo de seu TGV – trem de grande velocidade – que superava os 300km/h e, em 1981, iniciou a operação da sua primeira linha entre duas grandes cidades, Paris e Lyon.

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A primeira versão a operar foi da Shinkansen em 1964
Foto: Divulgação


Essa é a velocidade média atual dos trens mais rápidos do mundo, como os da Alfa Pendular, em Portugal; da AVE, na Espanha; da Eurostar, na Inglaterra; da TAV, na Itália; da ICE, na Alemanha; e da KTX, na Coréia do Sul. O diferencial dos transportes de alta velocidade nos trilhos em relação à aviação, além da redução significativa dos tempos de percurso em distâncias inferiores a 600km, é a pontualidade, o maior nível de segurança e a capacidade de transportar um número muito maior de passageiros. Algumas empresas devolvem o valor da passagem se houver atraso superior a 15 minutos. Nos 43 anos de operação do Shinkansen e nos 26 anos do TGV, não há nenhum registro de acidente com vítima fatal. E em toda a sua história, só a rede japonesa já transportou mais de 6 bilhões de passageiros.

Esse tipo de transporte já consolidado na Europa e na Ásia poderá se tornar em alguns anos uma alternativa para desafogar o tráfego aéreo e terrestre entre grandes cidades no Brasil. Em abril deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou um relatório do ministro Augusto Nardes que é favorável aos estudos já realizados sobre viabilidade econômica e financeira do projeto de Trem de Alta Velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo. O TCU recomendou que o modelo para a obra, avaliada em US$ 9 bilhões, seja o de concessão pelo prazo de 35 anos, sem envolver recursos públicos. Porém, o projeto, que deve demorar oito anos para ficar pronto, não tem data para começar. Os governadores José Serra, de São Paulo, e Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, assinaram em agosto um protocolo criando um grupo de estudos para sugerir ao governo federal as tarifas adequadas e a concepção funcional, logística, tecnológica, econômica e financeira do empreendimento. Projetos de consórcios internacionais já estão sendo analisados pelo governo federal, mas ainda não foi aberto um processo de concorrência pública. Ou seja, antes da copa de 2014, ele não sai.

E para ligar cidades relativamente próximas que não tenham um volume de passageiros tão grande quanto o trecho Rio-São Paulo? De acordo com um estudo realizado pelo Centro de Pesquisas Econômicas da Universidade Católica de Goiás, o Trem de Alto Desempenho pode ser uma alternativa economicamente mais viável que o trem-bala. A pesquisa foi encomendada pelo então governador de Goiás, Marconi Perillo, para a viagem que fez à Europa com Joaquim Roriz, do Distrito Federal, em 2004, para discutir com potenciais investidores da iniciativa privada um projeto de ligação ferroviária veloz entre Brasília e Goiânia.

A principal diferença dessa opção sugerida pelo estudo é o tamanho da bitola, que é a medida da distância entre os trilhos. Os trens-bala circulam em bitolas de 1,435m, mas como transportam apenas passageiros, a construção e manutenção encarece o investimento. Já a chamada bitola métrica, de 1,067m possibilita a alternância entre cargas e passageiros no transporte ferroviário. “A bitola métrica dispõe de grande potencial e pode ser aproveitada com elevada economia de capital e de investimento, fato de inegável valor para percursos que não oferecem carga suficiente de passageiros”, explica o economista Délio Moreira de Araújo, um dos principais autores do estudo. Diariamente, circulam entre Brasília e Goiânia aproximadamente 12 mil passageiros de ônibus e cerca de 25 mil passageiros de automóvel, obrigados a reduzir a velocidade a 60km ou até a 40km em trechos com fiscalização eletrônica, além de competir com um intenso fluxo de caminhões. “A bitola métrica é compatível com a velocidade de 160km/h e até mesmo 175km/h, conforme dados obtidos do Japão, país que opera todo o serviço de cargas e grandes troncos de passageiros em linhas com essa bitola”, continua. “As linhas de metrô e de trens suburbanos de maior carga de passageiros no mundo circulam na bitola métrica, também no Japão, e são também as de maior densidade de tráfego do mundo”.

O custo da velocidade excessiva

Mesmo que demorem a sair do papel, os projetos de trens-bala ou de alto desempenho devem gerar um impacto no transporte terrestre comparável à duplicação de rodovias ou à concessão de estradas para exploração e manutenção pela iniciativa privada. Em trechos com movimento intenso, como os que ligam São Paulo a outras capitais, como Curitiba ou Belo Horizonte, a crescente frota de automóveis convive com um intenso transporte de cargas ainda prioritariamente terrestre. E a pressa e a falta de paciência dos motoristas com o tráfego intenso pode custar caro.

De acordo com o Departamento Nacional de Trânsito, o excesso de velocidade perde apenas para a falta de atenção do motorista entre as principais causas de acidentes, bem à frente dos defeitos mecânicos ou buracos nas estradas. Mas as conseqüências de um acidente envolvendo excesso de velocidade são trágicas: em 2005, o número total de mortes no local do acidente foi de 26.409, chegando a 35 mil quando somadas as mortes ocorridas no hospital. E de acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o custo anual de acidentes de trânsito, somados os custos de remoção, atendimento hospitalar, danos materiais aos veículos, perda de carga em acidentes envolvendo caminhões, reparos de danos em locais públicos ou privados como postes destruídos, chega a R$ 28 bilhões.

E por que tantos motoristas desrespeitam os limites de velocidade ou reduzem ao passar por uma fiscalização eletrônica e logo em seguida reaceleram? Para Ricardo Meira, do Detran/RS, que estuda o tema em seu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trata-se de uma questão cultural. “A apologia à velocidade é muito forte na publicidade”, afirma. “O apelo à velocidade é uma das formas do ser humano transcender os limites, de ter sua liberdade”, continua. “Enquanto as autoridades públicas e organizações não-governamentais contam com recursos escassos para veicular suas campanhas de segurança no trânsito, a indústria automobilística conta com grandes verbas publicitárias para mostrar as vantagens dos seus velozes, belos e potentes automóveis. As pessoas querem essa velocidade, querem transcender os limites. Se as pessoas querem e a publicidade mostra que é possível, é como se a ilegalidade fosse legitimada”, conclui.