REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Singularmente primatas - Carlos Vogt
Reportagens
Homo e seus irmãos
Yurij Castelfranchi
Desconstruindo o homem
Caroline Borja
Comunicação primata e a linguagem humana: algo em comum?
Rodrigo Cunha
O que nos faz ser mais espertos
Luiz Paulo Juttel
Macacos construtores de ferramentas e aprendizes
Luciano Valente
Artigos
A evolução da empatia
Frans de Waal
Tradução: Germana Barata
Olhar o olhar do outro: será que primatas compreendem estados psicológicos?
César Ades
Duração do ser humano: imagens e percepções
Antonio Carlos Amorim
Os direitos humanos devem ser extensivos aos primatas?
Edna Cardozo Dias
Primatas como modelo experimental para vigilância em saúde, pesquisa e saúde pública
Paulo Castro
Resenha
A mulher e o macaco
Por Marta Kanashiro
Entrevista
Sidarta Ribeiro
Entrevistado por Por Germana Barata e Daniela Lot
Poema
Humanimalismo
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Desconstruindo o homem
Por Caroline Borja
10/12/2007

À procura de raízes, nozes e castanhas, o quadrúpede grunhia, tudo cheirava e percorria a floresta, saltando e trepando nas árvores. Assim é descrito o menino selvagem, conhecido como Victor de Aveyron, em referência às florestas do sul da França em que crescera sozinho e isolado, no final do século XVIII. Era humano apenas porque pertencia à espécie. Afinal, “o homem não nasce como homem, mas é construído como homem”, defendia Jean Itard, o psiquiatra que o acolhera na época.

Só que até o homem construído pode ser desconstruído para revelar que nem tudo que se considera comportamento humano é exclusividade dele na natureza. Ao mesmo tempo em que a literatura relata casos de crianças selvagens que andam de quatro e mordem as mãos de quem lhes oferece alimento, mostra que certos primatas solidarizam-se com animais de outras espécies, têm tradições e evitam o incesto. Quando humanidade e animalidade se confundem, mais difícil do que apontar semelhanças entre humanos e primatas é reconhecer diferenças.

Por outro lado, o comportamento das crianças selvagens parece estar mais associado com o isolamento do que com animalidade do homem. A psicóloga Luci Banks Leite, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, lembra que até mesmo animais quando isolados dos outros da sua espécie podem adotar um comportamento distinto daquele que lhes é peculiar.

Esse aspecto foi avaliado e constatado pelo psicólogo Wolfgang Köhler em meados do século XX. Em seu livro chamado A mentalidade dos chimpanzés (Mentality of apes), publicado em 1957, ele diz que “não é exagero afirmar que um chimpanzé mantido em isolamento não é um chimpanzé de verdade”. Köhler esclarece que certas características surgem apenas quando esses animais estão em grupo e que isso se deve “simplesmente ao fato de que o comportamento dos companheiros constitui, para cada indivíduo, o único incentivo adequado para suscitar uma grande variedade de formas essenciais de comportamento”.

Leite defende que, da mesma forma, a construção do homem se dá no convívio em sociedade. Ela é uma das autoras do livro A educação de um selvagem – as experiências pedagógicas de Jean Itard (2000), dedicado ao caso de Victor de Aveyron. Segundo ela, ao examinar o menino, Itard “presumiu que o estranho estado em que ele se encontrava se devia à privação do contato social".

Esse pensamento está de acordo com o que declarou Lucien Malson em sua obra intitulada Les enfants sauvages (Crianças selvagens, 1964): "será preciso admitir que os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o rosto das crianças isoladas". Da mesma forma, Leite argumenta que os bebês quando nascem “não tem um olhar dirigido para alguma coisa”, mas ele aparece, através da relação com outras pessoas, como a mãe.

No caminho inverso

Depois de deixar à mostra a animalidade do homem não construído, uma forma de afirmação da soberania humana na natureza é recorrer aos atributos ainda considerados por muitos como exclusivos dos seres humanos. Solidariedade, bondade, empatia, inteligência, raciocínio, aversão ao incesto, consciência, cognição, cultura, comunicação, tradição, produção e uso de ferramentas seriam alguns deles, certo? Errado. Frustrante ou instigante pode ser a descoberta de que todos esses atributos são, na verdade, exibidos também por primatas (chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos). Afinal, é isso que os cientistas têm revelado nos últimos 20 anos.

Tomando então o caminho inverso ao da animalidade na humanidade, são inúmeras as características comportamentais típicas do homem construído que também fazem parte da conduta animal. E isso fica mais evidente quando os humanos são comparados aos seus parentes grandes primatas.

Solidários, os primatas mobilizam-se para auxiliar não só seres da mesma espécie, mas também os de espécies diferentes. E para atender estes últimos precisam de mais do que solidariedade – lançam mão de sua inteligência, raciocínio e capacidade de empatia, através dos quais se habilitam a compreender as necessidades do outro e assim atendê-lo devidamente.

O primatólogo Franz de Wall (leia artigo de Waal nesta edição), do Centro Nacional Yerkes de Pesquisas sobre Primatas, em Atlanta (EUA), descreve casos que ilustram perfeitamente essas habilidades, em seu livro Eu, primata (Companhia das Letras, 2007). Um deles é o da bonobo Kuni, que tentou ajudar um pássaro a voar. Ela o levou até o topo de uma árvore, desdobrou-lhe as asas até abri-las bem e o lançou pelos ares, mas ele caiu dentro dos limites da jaula. Kuni desceu e o manteve até o fim do dia, quando voou em segurança.

No livro, de Wall desabafa: “deveríamos ficar felizes com a possibilidade de a empatia ser parte da nossa herança primata, mas não temos o hábito de aceitar de bom grado nossa natureza”. Ele declara que só quando uma gorila salvou um garoto de três anos caído dentro de sua jaula, no Zoológico Brookfield, em Chicago (EUA), em 1996, é que “as pessoas despertaram em massa para a possibilidade de haver humanidade em não-humanos”. A gorila carregou o menino para um lugar seguro, “afagou-lhe delicadamente com as costas da mão e o levou para os funcionários do zoológico, que estavam à espera”.

Tais gestos de carinho são comuns nesses animais. E nos primatas as expressões mais intensas de carinho se dão entre mães e filhos. "As mães chimpanzés estão sempre manipulando os filhotes – limpando-os, catando-os, abraçando-os, acariciando-os com os lábios – e brincando com eles, balançando-os no ar e fazendo-lhes cócegas", explica a cientista social Eunice Ribeiro Durham, professora aposentada do Departamento de Antropologia da USP. Ela se interessa por evolução e etologia (estudo do comportamento dos animais) porque acha que a antropologia se descuida num ponto fundamental: "o homem é um animal".

Para justificar essa relação tão intensa entre mães chimpanzés e seus filhotes, a professora de antropologia aponta vários fatores. Entre eles o de que os filhotes precisam ser permanentemente carregados, o que torna constante o contato físico entre eles. Além disso, o desenvolvimento lento dos filhotes de chimpanzés aumenta sua dependência. "Eles adquirem alguma autonomia de movimentação apenas com um ano e, assim mesmo, só se locomovem sozinhos quando a mãe está perto e vigilante", descreve. Tanto cuidado é justificado pelo fato dos chimpanzés terem apenas um filhote por vez. A antropóloga acrescenta que é comum observar, mesmo após a adolescência, a manutenção de laços estreitos com as mães, seja para defendê-las ou ser defendidos por elas em caso de perigo. Dentro de um mesmo grupo, essa é uma relação que dura por toda a vida.

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/primatas/rp_carol/RP-Carol-Chimp.jpg
Chimpanzés – mãe e filhote.
Foto: primates.com

Esse comportamento pode ser interpretado por diferentes óticas, de acordo com o antropólogo Kevin Langergraber, do Departamento de Antropologia da Universidade do Michigan. "Em biologia, fala-se de causas últimas e próximas. As causas últimas se referem a como o comportamento contribui para a sobrevivência e processo reprodutivo dos indivíduos". Ele esclarece que, "ainda que não haja muitas pesquisas sobre como os laços vitalícios entre mães e filhos contribuem para a sobrevivência e a reprodução da mãe e do seu filho, pode-se especular que essa ligação protege a fêmea de agressões por outros machos na comunidade". Já as chamadas causas próximas (ou imediatas) são, por exemplo, aquelas decorrentes de mecanismos fisiológicos.

Evitar relações incestuosas também não é privilégio dos humanos. "A evitação do incesto, em todos os animais que não o homem, não está associada a tabus e preceitos morais, mas parece que se trata de um mecanismo vantajoso do ponto de vista evolutivo", observa Eunice Durham.

Em grupos de chimpanzés as relações incestuosas são raras. O mecanismo mais comum de aversão é a dispersão da prole. A antropóloga da USP explica que as fêmeas adolescentes tendem a buscar espontaneamente outros grupos durante o cio, quando "elas se tornam atraentes para machos de outros grupos, os quais facilitam sua introdução no novo bando". Esse comportamento torna raro tanto o incesto entre pai e filha quanto entre irmãos. Mesmo nos casos em que as fêmeas permanecem no grupo, as relações sexuais entre irmãos são incomuns. "A convivência estreita entre irmãos amortece a atração sexual", acredita a antropóloga.

Pela ótica das "causas últimas", pode-se dizer que "primatas (e outros animais) evitam o incesto porque o cruzamento entre parentes resulta em menor sucesso reprodutivo (menos fecundidade, sobrevivência dos filhotes, etc.) do que o cruzamento entre não-parentes", explica Langergraber. Já pela ótica da "causa próxima", eles provavelmente evitam o incesto porque se relacionar sexualmente com um parente próximo invoca algum tipo de rejeição em suas mentes. "Há muitas pesquisas que sugerem que as razões para que os animais evitem o incesto são as mesmas dos humanos", diz. O fato é que "nem toda cultura tem tabus ou leis contra o incesto, mas toda cultura evita o incesto".

Capacidade de simbolizar

E à medida que trabalhos científicos apontam novas semelhanças entre primatas e humanos, pode parecer que as diferenças diminuem. E mesmo as que permanecem são constestadas. Para a cientista social Eliane Sebeika Rapchan, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), "é muito difícil para um humano entender e admitir como seres muito próximos a nós, com grande capacidade de resolução de problemas complexos, fazem-no sem se valerem de valores simbólicos". Para ela, nos primatas, a capacidade "de expressar estados mentais de prazer, dor, decepção, excitação e muitos outros, não passa por qualquer tipo de valoração abstrata". Isto significa, segundo ela, que tais animais possuem reações que expressam suas emoções diante de situações que são perceptíveis a terceiros, mas não possuem sentimentos. Segundo ela, “isso ocorre porque a existência de sentimentos depende de elaborações simbólicas que estão associadas a elementos morais, éticos, estéticos, valores socioculturais, inconscientes, etc".

Na visão de Rapchan, embora primatas tenham consciência, somente nos humanos a consciência sobre si e sobre o grupo pode estender-se por vários planos simbólicos e abstratos, aos quais eles se sentem pertencentes, ainda que essa entrega não pareça baseada exclusivamente em lógicas de sobrevivência e reprodução. Ela se refere à construção de categorias de pertencimento a um coletivo, como a família, as amizades, a aldeia, o gênero, a classe, a etnia, a região, a religião, a pátria, a língua, a humanidade.

No caso de primatas não há relatos, lembra a pesquisadora da UEM, sobre o uso de rituais para enterrar seus mortos, a produção de adornos ou pinturas, nem qualquer outra manifestação simbólica, artística ou estética. Nos humanos, esse comportamento revela sua capacidade de simbolização e a de produzir e reproduzir cultura. "A definição de cultura, no sentido antropológico, é multifacetada", afirma Rapchan. "Há muitos debates sobre o assunto e pouco consenso. No entanto, todos os antropólogos concordam que a produção simbólica é elemento central e universal no que diz respeito à produção e reprodução de cultura pelos grupos humanos", enfatiza.

Das características mencionadas por Eliane Rapchan que representariam a capacidade de simbolizar, o cientista social Guilherme José da Silva e Sá, doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), revela que seriam apenas algumas manifestações simbólicas que encontramos entre seres humanos. Para ele, o fato de não se identificar eventos análogos entre primatas não indica que estes não tenham capacidade de simbolizar. "Nosso conhecimento sobre os primatas, neste sentido, ainda é preliminar e muito situado por nossa condição humana", pontua. "É preciso ir além".

Nessas comparações, todo cuidado é pouco. "Parece-me que a maior ameaça aos estudos comparativos entre humanos e não-humanos é a própria predisposição em compará-los, e a forma com que esta comparação se dá", diz Guilherme. "São diversas as limitações dessa proposta, e a principal delas se dá nos processos muitos comuns de simples projeção de categorias humanas sobre os não-humanos: o famoso e temido antropocentrismo".