REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Nó górdio - Carlos Vogt
Reportagens
De que África estamos falando?
Rodrigo Cunha
Colonialismo: entre rupturas e retomadas
Marina Mezzacappa
Conflitos africanos envolvem múltiplos fatores
Nereide Cerqueira
Cooperação entre Brasil e África
Chris Bueno
Um outro modelo civilizador
Daniela Lot
Artigos
A rainha Jinga – África central, século XVII
Marina de Mello e Souza
Século XIX: mapeamento, prospecção e conflitos
Alexsander Lemos de Almeida Gebara
A terra nua: política, meio ambiente e feminismo
Elio Chaves Flores
Colonialismos, descolonizações e crises na África
Marcelo Bittencourt
Revertendo imagens estereotipadas
Janaína Damasceno
Deslocados. O espectro de um corpo-memória
Eugénia Vilela
Resenha
Para além da guerra, uma narrativa sobre transformação
Por Carolina Cantarino
Entrevista
Omar Ribeiro Thomaz
Entrevistado por Por Simone Pallone
Poema
Bolinhos de chuva
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Cooperação entre Brasil e África
Por Chris Bueno
09/04/2008

Há cerca de 400 anos os primeiros navios negreiros ancoravam na costa brasileira trazendo africanos para trabalhar como escravos nos engenhos de açúcar. Esse foi apenas o começo da ligação entre Brasil e África – que compartilham muitos traços em comum, como clima, recursos naturais abundantes, e até a mesma língua em alguns países, além de uma história de dominação e exploração de suas riquezas. Hoje, aproximadamente quatro séculos depois desse primeiro contato, a relação entre o Brasil e o continente africano está sendo fortalecida, porém agora em outras bases, visando a cooperação comercial, econômica, política, social e científica.

Apesar da ligação histórica, pouco se fez de concreto para aproximar Brasil e Àfrica ao longo dos anos. Até recentemente, essa relação foi marcada por ações esparsas, pouca comunicação entre os governos e longos períodos de silêncio (por exemplo, durante o apartheid, entre os anos 1950 e 1990). Atualmente, o governo Lula tem se esforçado para incluir o continente africano na agenda da política externa brasileira, e também grandes empresas e instituições de pesquisas estão buscando estabelecer uma conexão mais efetiva com a África. Isso não se dá por acaso: nos últimos anos, a política externa brasileira expandiu-se além da América do Sul, abrangendo outros países em desenvolvimento nos continentes africano e asiático. O estabelecimento desse eixo Sul-Sul tem sido apontado como uma boa solução para os países em desenvolvimento, já que a entrada em mercados no Norte (que engloba Estados Unidos, União Européia, Japão e China) é muito mais difícil.

O historiador e professor da Universidade de Brasília (UnB) José Flávio Sombra Saraiva, em seu artigo Fórum Brasil-África: mudança e continuidade, escreve: “necessitamos que a nova política africana do Brasil não seja um ato de retórica. Ela deverá servir ao conjunto das sociedades de todos os países envolvidos, na articulação em favor do acesso dos nossos produtos nos mercados fechados do Norte”.

Um dos primeiros passos para se efetivar essa aproximação foi fortalecer os laços diplomáticos entre os dois lados. O atual governo brasileiro não apenas tornou prioridade a reabertura de postos diplomáticos no continente africano, que haviam sido fechados durante a administração de Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2002), como os ampliou, elevando de 18 para 30 embaixadas e dois consulados-gerais. “Esse movimento proporcionou maior intensidade nas relações Brasil-África, uma vez que também se pôde observar o interesse de vários Estados africanos (a exemplo do Benin, Guiné-Conacri, Guiné Equatorial, Namíbia, Quênia, Sudão, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue) na abertura de postos diplomáticos no Brasil. Entre 2003 e 2006, o número de embaixadores africanos acreditados em Brasília saltou de 16 para 25”, aponta Cláudio Ribeiro, coordenador do grupo de estudos sobre África, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Segundo o pesquisador, o governo Lula adotou medidas administrativas no âmbito do Ministério das Relações Exteriores (MRE) para assegurar a ampliação da presença brasileira no continente africano. Uma das ações do governo nesse sentido foi desmembrar o departamento da África e do Oriente Médio para dar lugar a um departamento voltado exclusivamente para o continente africano. Seguindo a mesma linha, foi criada a Divisão da África-III (DAF-III), que veio juntar-se às duas já existentes (DAF-I e DAF-II). “A reabertura e ampliação de postos diplomáticos, bem como a reestruturação administrativa, devem ser encaradas como conseqüência direta do interesse governamental na ampliação da presença brasileira no continente africano; com conseqüência há também o efeito inverso: o interesse dos Estados africanos em ampliar sua presença no Brasil”, afirma.

No plano econômico, esse investimento na diplomacia tem favorecido significativamente o setor empresarial brasileiro no continente africano. Isso pode ser constatado pelo crescente número de empresas brasileiras, sobretudo as exportadoras de serviços, que lá estão realizando projetos e investindo. Também merece destaque o fato da Companhia Vale do Rio Doce ter vencido a concorrência para a exploração do complexo carbonífero de Moatize, localizado ao norte de Moçambique, e os investimentos crescentes da Petrobras no continente, com ampliação de suas operações na Tanzânia – fatos que têm consolidado a presença do Brasil na África.

O economista e analista do Banco Central do Brasil, Ivo de Santana, em seu artigo Relações econômicas Brasil-África: a câmara de comércio cfro-brasileira http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n3/a06v25n3.pdf, escreve que “a dinamização do comércio Brasil-África continua sendo um imperativo estratégico na razão direta dos nossos progressivos déficits na balança comercial com aquele continente. As potencialidades desse intercâmbio existem, pois, em que pese a debilidade da situação econômica de muitos países, há várias economias africanas que, desde 1994, vêm obtendo taxas anuais de desenvolvimento econômico superiores a 5%, com alguns desempenhos individuais destacados acima de 10%, o que justifica maior interesse e agressividade das empresas brasileiras”. As relações comerciais entre Brasil e África são tema da tese de doutorado do pesquisador, que vê essa ligação como essencial para o desenvolvimento dessas nações. “A intenção de permanecer no continente africano parece fator de grande importância para o sucesso nesse tipo de empreendimento, tendo em vista que essa presença contínua tende a propiciar um maior domínio dos mecanismos comerciais, assim como maior rapidez na adaptação aos mercados”, afirma.

A interação política tem favorecido enormemente as relações comercias e os investimentos brasileiros no continente. Em 2004, o presidente Luís Inácio Lula da Silva realizou o perdão de 95% da dívida pública que Moçambique tem com o Brasil em 2004 – o que equivale ao perdão de US$ 315 milhões do total US$ 331 milhões devidos. O restante (US$ 16 milhões) foi reescalonado. No mesmo período, o governo ampliou as linhas de crédito para Angola de modo a atingir uma soma de US$ 580 milhões no triênio 2005/2007, permitindo a conclusão da hidroelétrica de Capanda, as exportações de automóveis e viaturas de polícia, além da contratação de novos projetos nas áreas de infra-estrutura, saneamento e agricultura. Outro exemplo a ser citado é o acordo de cooperação na área de transporte aéreo entre o Brasil e Cabo Verde, pelo qual se estabeleceu vôos diretos entre a Ilha do Sal e Fortaleza. A perspectiva do governo brasileiro é a de que este acordo venha se converter na via preferencial de intercâmbio do Brasil, não só com esse país, mas por toda a costa ocidental africana, ampliando o contato e, possivelmente, os fluxos comerciais.

Essas ações fizeram com que o comércio brasileiro com a África crescesse mais de 200%, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores. Conseqüentemente, o número de vôos e rotas marítimas entre Brasil e África multiplicou-se por cinco. “Isto são passos significativos, mas ainda é tímido em relação ao que é possível”, aponta Carlos Lopes, Sub-Secretário Geral das Nações Unidas e encarregado do Instituto para Formação e Pesquisa (Unitar), em Genebra (Suíça) e do UN Staff College, no campus de Turim (Itália). “Se olharmos para o crescimento das relações de África com outras economias emergentes como a China, Índia ou os países do Golfo, o Brasil já fica para trás. Também é importante sublinhar que a África cresce como continente acima dos 6% ao ano, mas há países, como Angola, superando os 20%. Por todas essas razões o Brasil tem de apostar mais, muito mais”, afirma.

Para intensificar e fortalecer ainda mais a ligação do Brasil com o continente africano, é preciso superar um difícil obstáculo: a ausência de conhecimento estratégico sobre a África por grande parte do empresariado brasileiro. “Poucos empresários brasileiros sabem que uma empresa gigante como a Gazprom, da Rússia, investe massivamente em gás na África, ou que os dois maiores bancos comerciais do continente têm agora participação majoritária chinesa, ou ainda que a produção de cobre do continente já passou ao controle desse mesmo país”, exemplifica Lopes. Ribeiro concorda: “A África não é tema corrente na academia e mesmo no setor empresarial. A despeito das enormes oportunidades que existentes para empresas de porte médio, apenas grandes corporações, como Petrobras, Valem, Camargo Correa, Norberto Odebrecht etc. têm agido no sentido de ampliar a presença empresarial brasileira no continente africano”.

Cultura e ciência

Mas não é apenas econômica/comercialmente que o Brasil e o continente africano estão estreitando suas relações. Em aspectos científicos, sociais e culturais também está se estabelecendo uma linha de cooperação e troca de experiências. O potencial de cooperação entre os dois lados é grande, mas praticamente inexplorado. Até agora, muito pouco se fez de concreto para efetivar um intercâmbio mais forte e atuante entre Brasil e África. “Muito pouco foi feito neste sentido, eu diria. A academia brasileira parece ter esquecido da temática africana nos últimos anos”, declara Ribeiro.

Para tentar reverter esse quadro, o Brasil tem disponibilizado experiências consideradas socialmente bem sucedidas – como os telecentros, o programa Bolsa-Escola, a agricultura familiar e a produção de medicamentos para combate à Aids - promovendo ações voltadas à cooperação no desenvolvimento de áreas básicas como saúde, agricultura e educação. Além disso, o governo está incentivando o interesse brasileiro pela África através da promoção de fóruns e debates, da realização de exposições e estudos, e até mesmo da edição de atos normativos, como o da obrigatoriedade do ensino da história da África nas escolas. “O primeiro decreto assinado pelo presidente Lula foi sobre a obrigatoriedade do ensino da história da África. Isso é simbolicamente bonito, mas ao mesmo tempo incrível que até 2005 não se ensinasse a história do continente numa terra onde metade da população tem origens africanas”, aponta Lopes. Além disso, a recente aprovação do acordo ortográfico da língua portuguesa (que unifica a ortografia de todos os países falantes de português) vai contribuir nesse sentido, pois possibilita a utilização do material pedagógico brasileiro na África, e vice-versa. O Ministério da Cultura (MinC) está promovendo uma série de ações de cooperação entre os países falantes de língua portuguesa na área da cultura, o que também será favorecido pelo acordo ortográfico. “A língua portuguesa comum e o interesse político do governo brasileiro em desenvolver maior cooperação representariam um grande atrativo para impulsionar um intercâmbio comercial de grandes potencialidades”, aponta Santana.

Com isso, o tema África aos poucos está voltando às universidades: aumentam as pesquisas sobre o continente africano e os centros de estudo sobre o mesmo. “Algumas Universidades, como a Candido Mendes, a USP e a Federal da Bahia sempre tiveram um núcleo de estudos africanos. Outras seguiram, mas os intercâmbios ainda não são muitos. O CNPq estuda uma forma de os aumentar”, explica Lopes. Centros culturais, como a Fundação Cultural Palmares e as comunidades quilombolas do estado de São Paulo, também estão procurando firmar um intercâmbio entre Brasil e África para fortalecer suas raízes históricas e seu conhecimento mútuo.

Na ciência, um bom exemplo de atuação brasileira na África é a recente entrada da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no continente. A empresa atuará na África com desenvolvimento de projetos de uso sustentável de recursos naturais, sistemas produtivos e proteção sanitária de plantas e animais, fruticultura e horticultura tropical, zoneamento agrícola, biotecnologia e troca de material genético. Já foram firmados acordos com Gana, onde a Embrapa fará pacotes tecnológicos que podem ser transferidos e adaptados à demanda desse país, e com Moçambique, Angola e Guiné Bissau, onde a atuação da empresa terá um caráter mais humanitário, promovendo capacitação de pessoal e transferência de tecnologia. O caminho inverso também está sendo percorrido: a África tem muito a ensinar ao Brasil em tecnologia de mineração, por exemplo, e poderia haver uma troca de pesquisa e tecnologias significativas entre os dois lados.

“Tenho como ditado a idéia de quão melhor for econômica e socialmente a África, tanto melhor será o Brasil. O adensamento das relações diplomáticas, com imediata ampliação das relações econômicas e comerciais, só tende a favorecer o Brasil e os países africanos”, afirma Ribeiro. A parceria Brasil-África, focando não apenas as relações comerciais, mas também políticas, científicas e culturais, pode trazer grandes benefícios, sendo uma forma eficaz para poder barganhar melhores condições de política externa comercial, de transferência de tecnologia e de propriedade intelectual e promovendo o desenvolvimento (econômico e social) dos dois lados. “São duas metades, se quiserem ser. O Atlântico, como disse o maior africanista brasileiro Alberto Costa e Silva, já foi um rio quando as relações econômicas eram super intensas, mas hoje não é assim. O Brasil, se quiser, pode virar o jogo”, conclui Lopes.