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Artigo
Potência para consumo
Por Diego Vicentin
10/06/2008

Tem algo no meu bolso que não é uma coisa só, são várias. Parece com muitas outras, mas é diferente de tudo. Pode dizer milhões de palavras, mas não tem voz. Pode encontrar lugares que você nunca procurou, e fazer os outros sentirem o que emocionou você.

Tem algo no meu bolso que não é uma coisa só, são várias.1

O excerto acima é a transcrição do que é dito em “voz-off” na campanha publicitária de um aparelho de telefone celular. Este artigo pretende indicar, que aquilo que está no bolso do narrador ocupa lugar de destaque entre os objetos contemporâneos de consumo, exatamente porque não é uma coisa só. Vejamos.

Alguns dos autores (Bauman, 2007; Lipovetsky, 2007; Sennett, 2006) que atualmente tratam de analisar o consumo, ou aquilo que se convencionou chamar cultura de consumo, notaram que o poder de atração dos objetos é diretamente proporcional à potência que levam consigo. Sob esse ponto de vista, a habilidade de qualquer objeto de consumo em conquistar corações e mentes está calcada sobre suas pretensas capacidades, potências, sejam elas passíveis de realização, ou não. O que motiva o consumo, ao cabo, não é o objeto em si, ou sua utilidade mais pragmática, mas sua capacidade potencial e aparente de realizar algo que esteja além de suas condições imediatas. De fato, o que se percebe é o desejo do consumidor de que os objetos ultrapassem a si mesmos, em suas possibilidades imanentes.

Richard Sennett (2006), considera que esse desejo advém de outro: do consumidor, ele próprio, ultrapassar a si mesmo a partir dessa sorte de “prótese médica” que se torna o objeto de consumo. Para o sociólogo, esse último desejo liga-se, por sua vez, a algumas das mudanças que vêm ocorrendo no mundo do trabalho; a saber, a valorização e a busca dos empregadores pelo talento do trabalhador ou, melhor dizendo, do “associado”. Trata-se de descobrir e explorar as potencialidades de cada “associado”, e ainda investir naquele que tenha “grande potencial”, um tipo flexível, dinâmico, que seja capaz de resolver problemas distintos e possa dar “algo mais” à corporação. Nas palavras de Sennett, hoje “o diretor de pessoal está menos interessado no que já fazemos do que naquilo que podemos nos transformar” (Sennett, 2006:142). Sendo assim, o “associado” precisa estar sempre e repetidamente provando seu valor, seu talento, e sua potência. O autor também admite que nem mesmo as corporações estão livres dos efeitos daquilo que ora ele nomeia como “ethos da potência”, ora como “ideologia da potência”; também elas precisam demonstrar potencial para que possam atrair a atenção e, sobretudo, os recursos financeiros dos investidores.

Nessa linha, o consumo de potência joga com a identificação entre homem e objeto, de tal forma que o primeiro espera ultrapassar a si mesmo a partir das possibilidades abertas potencialmente pelo segundo. O homem contemporâneo, na ânsia de fazer-se útil, importante, e de exorcizar o “fantasma da inutilidade”2 investe no consumo daquilo que possa potenciar suas habilidades. Nada mais natural, se levarmos em consideração que as barreiras entre sujeito e objeto desde muito se tornaram opacas, ou ainda, se considerarmos que “a característica mais proeminente de uma sociedade de consumidores é sua capacidade de transformar os consumidores em produtos consumíveis”(Bauman: 2007, 26). Por fim, a busca pela potência convertida em objeto de consumo, como coisa que pode ser adquirida, explica-se na medida em que é considerada enquanto prática do consumidor para manter-se vivo no mercado, não cair em obsolescência, desuso, e ser descartado tal como o objeto que perdeu suas capacidades.

Não é uma coisa só

É fato que o celular tornou-se um fenômeno diferenciado frente aos demais objetos de consumo. Nos últimos oito anos, o número de celulares no mundo saltou de 700 milhões para 3,3 bilhões de terminais, o que equivale à metade da população global. No Brasil, a taxa de penetração é ainda mais alta: 66 celulares para cada 100 habitantes.3

Indiscutivelmente, ele tornou-se artigo de primeira necessidade, ao menos para aqueles que estão conectados, online, no mundo das informações em tempo real, no mundo globalizado.

Meu argumento segue na direção de indicar que esse fenômeno deve-se ao fato de que o celular é um “recipiente de potência”; tanto que, não há nenhuma definição rígida desse dispositivo que seja satisfatória. Em geral, tais definições remetem a suas funcionalidades, o que é um erro, porque freqüentemente outras novas funcionalidades são adicionadas ao dispositivo, o que torna uma definição nesses termos, ao menos, incompleta. O celular é um objeto indefinido; centro do processo de convergência tecnológica que tende a reunir num só gadget (dispositivo) diversas funcionalidades oriundas de diferentes tecnologias. É algo que está em constante mutação, já que se reformula a cada nova onda tecnológica. Recentemente, o modelo lançado pela Apple introduziu no mercado de celulares a tecnologia de tela sensível multi-toques, reduziu o número de botões a apenas um, e aumentou as dimensões da tela de cristal líquido (LCD, sigla em inglês). Hoje, essas inovações tornaram-se tendência e estão sendo adotadas por outras fabricantes, até que haja uma nova onda.

A meu ver, a melhor definição para o celular advém do neologismo blobject, que ganhou maior notoriedade a partir do uso que o autor Bruce Sterling4 faz dele. O neologismo denomina uma nova “família” de objetos que têm por característica central as formas elaboradas pela computação gráfica. Portanto, são frutos da revolução digital, do design computacional, e da elaboração de novos materiais que abrem espaço para formas curvilíneas, arredondadas, fluidas, não niveladas, e não uniformes. Formatos orgânicos servem de modelo para o desenvolvimento dos blobjects. São ergonômicos, adaptam-se às necessidades motoras e sensoriais do corpo humano, funcionando como extensões dele; “assemelham-se a organismos comensais, pequenas rêmoras ou peixes-piloto, se anexando ao corpo humano, agarrando-se aos cintos e se infiltrando em bolsas e mochilas”(Sterling: 2002, 77).

A despeito da referência orgânica, os blobjects são profundamente não-naturais, exatamente porque são forjados a partir de cálculos matemáticos computacionais; isso faz com que resultem das circunstâncias tecnológicas momentâneas e, portanto, tenham um ciclo de vida bastante curto. Nesse sentido, comportam um tipo de design que não possui assinatura de estilo, e não obedece a determinada tradição ou escola. São produtos da era pós-industrial, que tem as redes de comunicação e os computadores como protagonistas.

Essa revolução no design acontece principalmente porque os blobjects superam a relação função-forma. Seus componentes funcionais internos – baseados em chips – são tão pequenos que exteriormente os blobjects podem tomar qualquer formato de maneira barata e confiável. Por isso mesmo, alguns blobjects reúnem uma série tão grande de funcionalidades que, na verdade, não são mobilizadas totalmente senão em sua potencialidade virtual. Nesse caso, tanto o amontoado de funções, quanto a potência sobressalente do objeto – porque ultrapassa o necessário para o fim prático a que é destinada5 – tornam-se símbolo de status na medida em que conferem uma pretensa invencibilidade técnica ao objeto e a seu portador. Para Sterling é como se o dispositivo dissesse: “eu não serei imobilizado ou encurralado por limites técnicos” (Sterling: 2002, 81).

O celular, seguindo a definição do blobject, torna-se objeto privilegiado de consumo, em primeiro lugar, porque age como uma espécie de prótese do corpo humano, potenciando faculdades imprescindíveis ao homem contemporâneo – das quais, sua memória, sua capacidade de organização e velocidade de decisão constituem alguns exemplos. Em segundo lugar, por seu caráter aberto, ou seja, porque reúne um amontoado crescente de funcionalidades, que não são mobilizadas totalmente pelo consumidor e, por isso mesmo, permite uma variedade quase interminável de usos. E, por fim, porque a (con)fusão homem-objeto “contamina” o homem com a potência do objeto de se constituir num eterno vir-a-ser, de se colocar em constante e acelerada mutação, renovação e adaptação. Portanto, é o “sonho de consumo” do homem contemporâneo, ávido em fugir da obsolescência.

Podemos dizer, ao cabo, que a fabricante está coberta de razão ao afirmar que seu aparelho “não é uma coisa só”; ela aposta na força de atração que essa idéia exerce sobre os consumidores6, celebrando a potência de seu produto ao afirmar que são “N possibilidades” em “um único aparelho”. O comercial televisivo, cuja transcrição abre este artigo, apresenta imagens de pessoas que mostram em suas mãos objetos que remetem a funcionalidades atuais e potenciais do aparelho que quer promover. São pessoas, mas cujo rosto não é revelado, e cuja identidade se representa nos objetos que retiram de seus bolsos. Um par de dados, uma partitura, um mapa, uma foto – são objetos que aludem a funções atuais do aparelho. No entanto, são ainda mais interessantes os outros tantos objetos que indicam potências e estimulam expectativas em relação ao aparelho. Tais aparições são incompletas, abertas, mobilizam o espectador/consumidor dando energia a sua imaginação, abrindo caminho para que ele próprio aumente o escopo de potencialidades do aparelho, projete nele seus desejos, e complete nele sua própria imagem potencializada. Uma flor em origami. Um molho de chaves cujo chaveiro é o globo terrestre. E, por fim, um ser vivo, um inseto, que de início apenas se movimenta sobre a mão humana que o sustenta, mas que acaba por alçar vôo em trajetória independente.

Diego Vicentin é cientista social, e membro do grupo de pesquisas Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe). Atualmente desenvolve a pesquisa: “Celular: projétil rumo ao futuro, veículo de poder”.

1 Transcrição minha de texto da campanha publicitária do aparelho de telefone celular Nokia (N95) veiculada no ano de 2008. Pode ser visto em: http://br.youtube.com/watch?v=KrYKmXCrAFs < último acesso em 19/05/2008>.
2 Cf. SENNETT, 2006 pp.84-98.
3 Fonte dos dados: http://www.teleco.com.br/ < último acesso em 15/05/2008>
4 A maior parte dos trabalhos publicados do autor são romances de ficção científica. Ele próprio se define freqüentemente como “science fiction writer”. Ainda assim, possui ao menos duas obras de não-ficção onde trabalha observando as tendências de desenvolvimento tecnológico, e as novas relações entre homens e objetos, também e principalmente no que se refere ao design. Ver: Sterling (2002 e 2005).
5 Para citar um exemplo usado por Sterling: é como utilizar um calçado esportivo de alta performance atlética para o trabalho diário no escritório (Cf. Sterling: 2002, 81). Ou ainda, para lembrar de Sennett, é como constatar que o usuário ouve repetidamente as mesmas 20 ou 30 canções enquanto seu iPod pode armazenar cerca de dez mil (Cf. Sennett: 2006, 141). Em suma, o uso da potência do objeto fica aquém de suas possibilidades reais; sua potência não é mobilizada inteiramente a não ser como símbolo distintivo
6 E parece obter resultado, já que sua marca foi apontada como a 9ª mais valiosa do mundo pela consultora americana Millward Brown. Sua rubrica está avaliada em 43,9 bilhões de dólares.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zigmunt. Vida de consumo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.
STERLING, Bruce. Tomorrow now: envisioning the next 50 years. New York: Random House, 2002.
_______________. Shaping things. Cambridge; London: The MIT Press, 2005.

Fonte: http://www.millwardbrown.com/Sites/optimor/Media/Pdfs/en/BrandZ/BrandZ-2008-Report.pdf