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Dispersões, distenções e(m) emoções: arte, ciência, ser-á?
Elenise Cristina Pires de Andrade
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Artigo
Dispersões, distenções e(m) emoções: arte, ciência, ser-á?
Por Elenise Cristina Pires de Andrade
Érica Speglich
Alda Romaguera
10/07/2008

Manoel de Barros em verso, o artista catarinense Walmor Corrêa em pranchas de seres do folclore brasileiro, o naturalista Afonso d'Escragnolle-Taunay com seres fantásticos do Brasil e nossas pesquisas com imagens em superfícies, acompanhando Gilles Deleuze e a Lógica do sentido (2003), arrastarmo-nos e movimentarmo-nos pelo entre, nem um nem outro. Poema, teses, pranchas e litogravuras a darem visibilidade ao quase, que habita por entre as entranhas de uma humanidade quase, que coloca em movimento um quase coisa/quase bicho/quase gente, que a gente vê, diz que existe e aprende que viu. Pesquisou? Existiu? Ninguém sabe, ninguém viu...

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Escolhas por outros campos, tempos e seres para ampliações e retrações no movimento de produção de pesquisas acadêmicas e suas divulgações em congressos, seminários, defesa de teses e dissertações, artigos em revistas científicas. Com o auxílio das imagens dos séculos XVI a XVIII coletadas por Afonso d'Escragnolle-Taunay sobre a fauna fantástica brasileira e as criações de Walmor Corrêa no século XXI, fugir das delimitações, territórios de arte/ciência. Convidamos os/as leitores/as a prazeres e perigos do escape e do embaçamento das fronteiras com/nessas imagens que são construídas pela composição, pela junção de pedaços de animais, de seres humanos, hibridização, contaminação arteciência; ciênciaarte em (des)montagens realidades-imaginários.

Preguiça-fera ou preguiça gente feliz? Curupira imaginário ou real porque decomposto em suas interioridades? Explosões de sentidos que pulsam dessas imagens é o que nos propusemos como pontos de discussões e tensões. Escolhemos apostar nessa explosão e no estraçalhamento que as produções/criações artísticas intensificam e que, muitas vezes, o conhecimento científico pretende expulsar. Foi com essa vontade que Walmor Corrêa nos invadiu ao materializar o imaginário na desmontagem anatômica em Cryptozoology1. Parece-nos que a intenção do artista é essa provocação pelo embaçamento, pela descrença na materialização como concretude de uma realidade assim como nos sentimos ao entrar em contato com a Zoologia fantástica e monstros e monstrengos do Brasil de Taunay.

Para nós, Walmor procura o que comumente é denominado de “aberrações” pelas multiplicidades que elas podem suscitar, desmoronar, instigar ao liberar o pensamento das comparações, das pedagogias morais, da possibilidade como limite. Para a exposição Cryptozoology, o artista escolheu somente seres fantásticos de várias regiões do Brasil, recolhendo-os em uma série por ele associada à Unheimlich – termo utilizado por Freud em 1919 para designar o que era estranho e familiar ao mesmo tempo. “Aberrações” que berram também nos monstros e nas maravilhas que povoam os registros dos viajantes que passaram pelo Brasil até meados do século XVIII, recolhidos e organizados por Afonso Taunay (1876-1958) ao procurar os registros do estranho, do inacreditável, do alguma vez real. Monstros e monstrengos que habita(m)(vam) os diferentes cantos do Brasil retratados, vistos e relatados por índios, negros, brancos, viajantes, naturalistas.

Estes seres monstruosos e maravilhosos recolhidos por Afonso Taunay foram considerados (até meados do século XVIII) raros, misteriosos e reais, e ajudavam a construir os tênues e dispersos limites entre natural e não-natural, conhecido e desconhecido, cultivado e vulgar à medida que são registrados ou apagados das anotações, desenhos e livros dos naturalistas ao longo dos séculos (Daston & Park, 1998:17). Seres que “perdem a graça” a partir do século XVIII, ainda para Daston & Park (1998:18), que entendem que tal perda esteja menos relacionada a um triunfo da racionalidade iluminista e mais a uma grande mudança na auto-definição dos intelectuais: “ para eles, as maravilhas ficaram, simplesmente, vulgares ”. Seres que parecem reverberar e transmutar-se na arte de Walmor Corrêa, maravilhamento resgatado pelo artista. Seres que são convidados nesse texto a perambular pelas nossas apostas de (des)encontros com as imagens, as realidades e os imaginários em pesquisa no campo educacional.

Imagens que nos tiram o fôlego na impossibilidade da metáfora, da comparação. Nem um animal, nem outro, nem um terceiro. Nem fantasia, nem anatomia. Invenções. A assunção da existência pela experiência de uma memória nunca vista em sua concretude na proposta da subversão de uma relação linear entre o modelo/realidade e a cópia/representação. Não estaríamos, ao tentar fixar, delimitar, conceituar, apreender a realidade por meio de imagens – palavras, pinturas, fotografias, filmes, softwares, fórmulas – possibilitando “apenas” a nós mesmos, e não à realidade em si, um certo controle sobre o excesso de caoticidade do mundo?

Excesso de mundo no mundo, sem a necessidade (ou seria imprescindibilidade?) de garantir antecipadamente os limites entre certo/errado, visível/invisível, realidade/imaginário. Experimentar a produção de conhecimento pelo deslizamento nas superfícies das imagens. Manifestações criadas, pensadas, vistas e impressas em curupiras, iaras, preguiças gigantes nos anunciam embaçamentos entre categorias: o mundo dos seres fantásticos e dos seres verídicos dobrando-se e criando outras pregas de possibilidades para o existir, para o ver, para a ciência, para a arte. Arteciência. Ciênciaarte.

SEIS OU TREZE COISAS QUE EU APRENDI SOZINHO

Manoel de Barros

Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter — ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância científica — como andar de costas.

Elenise Cristina Pires de Andrade, Érica Speglich e Alda Romaguera fazem parte do Grupo Olho e Grupo Transversal, da Faculdade de Educação da Unicamp. Contatos: nisebara@uol.com.br; speglich@unicamp.br; aldaromaguera@uol.com.br

1 Exposição no Battes College, Maine, EUA.

Referências bibliográficas

Corrêa, Walmor. Cryptozoology In: http://www.walmorcorrea.com.br, acesso em maio de 2007.
Daston, Lorraine & Park, Katharine. Wonders and the order of nature (1150-1750). Zone Books – New York, 1998.
Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. 4.ed., 2.reimpressão. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
D'Escragnolle-Taunay, Afonso. Del Priore, Mary (Org.). Monstros e monstrengos do Brasil: ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
D'Escragnolle-Taunay, Afonso. Zoologia fantástica do Brasil (séculos XVI e XVII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 1999.