REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Silêncios: presença e ausência
Por Eni P. Orlandi
10/09/2008

Na teorização que propus do silêncio (Orlandi, 1992) pensando a relação sujeito-linguagem-história, meu objetivo principal era justamente desestabilizar a idéia pré-concebida, que se tinha, de que o silêncio é o vazio. O silêncio é prenhe de sentidos. Ao tratar o silêncio de modo a incluí-lo na perspectiva analítica do discurso, não pensamos o silêncio místico, nem o silêncio empírico, mas o silêncio que tem sua materialidade definida pela relação estabelecida entre dizer e não dizer.

Nessa forma de reflexão, também o político adquire sua especificidade. É, então, enquanto relações de poder simbolizadas, e que dividem os sentidos, que nos interessa o político investido na significação. Nesta, finalmente, é que podemos observar a articulação entre o que é dito e o que é silenciado.

Vamos falar dessas relações de poder simbolizadas na constituição e silenciamento de uma função-sujeito fundamental na organização da vida intelectual: a função de autoria. Nosso objeto de reflexão é aqui o silenciamento e as políticas científicas. Estamos menos interessados em falar do silenciamento sobre o autor, como plágio, e mais interessados em mostrar como o silenciamento produz uma “versão” da autoria com efeitos teóricos decisivos (perversos?) para as políticas científicas.

Do ponto de vista teórico, queremos dar maior espessura à noção de intertextualidade, pensando-se as relações entre textos, tomadas enquanto formulações, versões que põem em cena os sujeitos, os processos de textualização e seus mecanismos, assim como o que é particular às diferentes formas de discursos.

A função-autor e a produção das suas versões

Tenho distinguido o sujeito, enquanto posição, e sua função-autor. Estabeleço que a função autor se dá quando o sujeito se coloca – no imaginário constituído pelo que Michel Pêcheux (1975) chama “esquecimento número 1” – na origem do que diz. Este gesto o constitui em autor ao mesmo tempo em que constitui o texto como unidade de sentidos em relação à situação.

Assim como, enquanto sujeito pragmático, o sujeito tem necessidade de um mundo semanticamente normal, ele também tem imaginariamente necessidade de um dizer com começo, meio e fim, com progressão, coerência, constituindo uma unidade fechada. Mas temos de ir mais adiante e pensarmos que o texto se “apresenta” como uma unidade fechada sem que no entanto o seja realmente. O texto não começa em sua primeira palavra (é sempre possível começá-lo em outro lugar) e não termina em seu “fim” pois é sempre possível acrescentar-lhe algo. Para compreendermos bem isto vamos utilizar a distinção que estabelecemos (Orlandi, 2001a) entre: constituição, formulação e circulação dos sentidos em sua textualização. Nesta, veremos como funcionam as “formulações” e o que temos chamado “versões”1.

No processo de constituição dos sentidos, temos o trabalho da memória (interdiscurso), a interpelação do indivíduo em sujeito, a constituição de sua forma histórica e os efeitos que produz a partir de sua posição sujeito; no processo de formulação, temos a relação do discurso com o texto que atualiza a memória em presença, a individualização do sujeito pela sua função autor; na circulação, temos o funcionamento das circunstâncias de enunciação e a experiência de mundo (os “fatos”, os “acontecimentos”, os “seres”) como elementos desencadeadores e os sujeitos sociais que encarnam a função autor em seus percursos (por onde circulam), nos diferentes “meios” (verbal, não-verbal, etc). Estes três processos funcionam simultaneamente e tanto o sujeito, como o sentido são afetados por eles. Um sentido é como ele se constitui como se formula e como circula. E o sujeito em sua função-autor tem sua forma afetada pelo “meio” em que se constitui. O autor de um enunciado estampado em uma camiseta e o autor do “mesmo” enunciado em um livro distinguem-se em sua forma e modo de funcionamento.

Se a função-autor é a que torna o sujeito mais visível, o mostra mais afetado pelas determinações sociais, e é de quem se cobra a responsabilidade pelo texto produzido (pelo que disse), também o texto é o lado mais visível do discurso, o que se organiza segundo injunções da sociedade, das instituições e que se apresenta com dimensões e textura. Mas assim como há uma incompletude do sujeito e do discurso, sendo a identidade um movimento na história, também a textualidade é uma, entre outras, versão praticada entre as inúmeras possíveis (Orlandi, 2001b).

Nesse sentido, no modo como tenho considerado a relação sujeito/discurso e função-autor/texto, não há senão versões; de-sacralizando a noção de texto, considero que não há um texto “original” do qual os outros são “comentários”. Do ponto de vista histórico e da imprensa, em que isto é pensado assim, temos um texto (obra) e a garantia de sua autoria que se reproduz em uma multiplicidade de exemplos. Todas eles exemplares do “mesmo”, garantia esta firmada pela assinatura. Os “outros” textos seriam seus comentários (Foucault, 1971). No caso em que penso as formulações (que refere a produção pelo sujeito-autor) e as versões (que são versões do texto), não se trata do mesmo texto/obra (impresso) e suas cópias, mas uma formulação em relação a outras possíveis, suas versões (e não cópias). Nessa perspectiva, todo sítio de significação é passível de ser trabalhado por muitas formulações (versões). Cada uma delas sendo uma forma entre muitas, tendo em sua “fonte” um sujeito que se individualiza em sua função-autor, de modo específico à memória discursiva, ao discurso que pratica e às condições em que funciona. E, ao fazê-lo, experimentando a sua representação (imaginária) como origem do texto, torna-se seu autor.

A autoria silenciada

Cada ordem de discurso tem suas formas de autoria e seus modos de produzi-la. Vamos nos ater à forma de autoria do discurso científico e vamos falar sobre o que pode ser uma das formas de silenciamento, tal como tenho considerado, e que afeta a função-autor.

Lembremos que faz parte do discurso científico a citação de outros textos, com seus autores, ou seja, é da ordem do discurso da ciência a explicitação da intertextualidade que sustenta suas formulações e o reconhecimento das diferentes funções-autor, que intervêm ao longo do texto, reconhecimento garantido pelas citações.

Entre as formas do silêncio que tenho considerado que são o “silêncio fundador” (base de produção dos sentidos) e a “política do silêncio” ou “silenciamento” que, por sua vez, subdivide-se em “silêncio constitutivo” e “silêncio local” (ou censura), vou aqui trabalhar o silenciamento. E, em relação a este, interessa-me particularmente o que chamo de silêncio local ou censura. O silêncio local (ou censura), como sabemos, é aquele em que entra a interdição por alguma forma de poder da palavra (interno ou externo). Não falaremos tampouco do silenciamento local em geral mas da censura relacionada ao modo como se produz ciência, apagando aspectos característicos de suas formulações.

Grilagem intelectual e descaracterização da autoria no mundo das letras

Não parece um título compatível com a vida intelectual. E não é. Mas a universidade não é feita só de intelectuais, de pensadores. Há muitas razões, todas elas pouco intelectuais, pelas quais sujeitos apresentam-se como detentores do saber. E o fazem respeitando ou não os princípios da autoria.

Distanciando-nos de uma posição moralista ou administrativa, não vamos aqui elencar e analisar essas razões. Vamos ver alguns efeitos sobre a questão da autoria. Vamos também realçar a relação de poder e de disputa de legitimidade que acompanha esses gestos de autoria. Importando um termo muito ao gosto da psicanálise, vou procurar mostrar alguns aspectos do que é “autorizar-se”, quando se trata da instituição acadêmica e de formas de relações entre sujeitos que ela propicia, estabelecendo certas condições de sua produção. Como veremos, autorizar-se pode muitas vezes significar fazer uma violência intelectual contra a posição-sujeito de ciência em sua função de autoria. Isto porque o gesto de autorizar-se pode-se dar simultaneamente à instituição de uma imagem de autoria que silencia, em outro sujeito, aspectos importantes de sua função-autor funcionando como uma censura que cria assim, no outro, uma versão de autoria marcada por esse silenciamento. Faz parte das relações do saber/poder a disputa pelos sentidos e pela autoria (função-autor).

A legitimidade rege fortemente a produção científica. Manter-se no campo da legitimidade de uma dada ciência ou disciplina e ousar o irrealizado, o ainda não significado, nem sempre é possível. E há os que se expõem e os que não se expõem a esse risco, a essa impossibilidade. Onde a legitimidade se expõe a uma ruptura. Nessas condições, nem sempre aquele que “descobre” é aquele que “diz” em termos de legitimidade.

Vou dar um exemplo dessa situação, em que jogam a função-autoria e sua versão, para analisarmos e chegarmos à compreensão de um dos aspectos do funcionamento dessa discursividade e do silenciamento que a acompanha.

Há o silenciamento para fora, no plano da política científica internacional (Orlandi, 2003) que apaga a nossa autoria frente aos autores estrangeiros e, um silenciamento para dentro, próprio às relações científicas em um mesmo país, que é a de que me ocuparei a seguir e que afeta fundamente a relação com a vida intelectual e a ciência em geral.

Todos conhecemos notícias de cientistas que se apropriam do texto de outro pura e simplesmente (citando ou não seu autor), adaptando-o a sua produção sem referir a formulação de onde vem e, ao integrá-lo, apagam o que é sua autoria e sua força teórica própria, produzindo uma versão “domesticada” do texto e do autor. Ou seja, ele perde, junto com sua autoria, o que traz de diferente em termos de sua “formulação” porque é dito de outro lugar, de outra posição-sujeito de ciência, de uma “outra” filiação teórica.

O que há de grave nesse procedimento retórico (pragmático) é que a formulação é o lugar da autoria, aquele em que o sujeito se coloca imaginariamente na origem do que diz e, ao fazê-lo, marca-se em seu modo de produzir sentidos, em seus gestos de interpretação, em sua responsabilidade de dizer. E é aí que a ciência pode(ria) fazer-se/dizer-se de outro modo. Portanto, essa forma de censura, entre outros efeitos, tem o de funcionar na administração do mesmo, na imobilização do discurso científico. Mas esse mesmo procedimento, da política científica, tem um outro efeito que passarei a explorar.

A versão da autoria

No mesmo gesto em que o autor apropria-se da função-autor de outro, há o silenciamento daquilo que está na formulação deste autor expropriado. Digamos que a retomada do texto, embora não se mostre como, representa um “comentário”. Na perspectiva em que estamos trabalhando, os “comentários” são na realidade argumentos que procuram dar uma direção aos sentidos, fixá-los em certas regiões, além, claro, de subtrair-lhes a autoria (função-autor). Com isso se cria uma “versão” do outro texto. Nesse procedimento, através da produção de um efeito-leitor em que está inscrita a censura (e este é o ponto), se produz uma imagem “do que o texto diz” (já com o silenciamento funcionando).

Constrói-se assim um estereótipo, uma “versão” apagada do que efetivamente estava formulado. E o que é o fundamento do que permite essas formulações, no referido trabalho, fica apropriado mas silenciado. Com isso, realçam-se certos aspectos significativos em detrimento de outros. Produz-se assim uma versão da autoria, perdendo a sua singularidade. Resulta daí o que comumente chama-se “vulgata” do texto e perde-se, em geral, a característica mais forte, a sua propriedade intelectual e científica. Silencia-se a função-autor.

Cria-se uma versão-autor. O que quero dizer, em termos de política científica, é que é menos a expropriação do que foi dito (o apagamento do autor) e muito mais a criação dessa versão-autor que é decisiva. Porque, junto ao apagamento da formulação específica à função-autor apagam-se também filiações teóricas em suas elaborações, singularidades do modo de fazer ciência, conseqüências ideológicas na história da ciência. Nas ciências humanas, isso produz efeitos muito negativos. Porque não temos como garantia senão as nossas formulações, nossa escrita.

Então

Retornemos ao início do texto em que falávamos do silêncio, da autoria, das versões e das políticas científicas. Em um mesmo lugar textual (sítio de significação) são muitas as formulações possíveis abrindo para a possibilidade de interpretar e estabelecendo a possibilidade de muitas formas de autoria. Ao silenciar o modo como se constitui uma função-autor com sua formulação, é todo um processo de significação que fica apagado. Por outro lado, a ciência certamente ficaria mais interessante se não houvesse um acúmulo em um mesmo lugar e se a função-autor fosse considerada como um ponto de relações possíveis oferecendo a possibilidade de um trabalho de sentidos que se expandissem em várias direções. Mas o que há é uma enorme variação do mesmo.

Desse modo, na perspectiva da ciência, da sua divulgação e de seus efeitos – enquanto parte do funcionamento da sociedade e do Estado (Orlandi, 2000) – isto pode-nos mostrar o alcance de um pequeno gesto desencadeado por razões nem sempre científicas sobre o próprio modo como se constrói ciência e como se constroem autores, sujeitos de ciência.

Se dissermos que a formulação (também) em ciência está necessariamente sujeita a versões, no entanto isso não significa que o texto, a formulação, não resiste em sua estrutura, não se particulariza em seu acontecimento. Dizer que estamos sempre em face de versões possíveis em um sítio de significação, não significa dizer que 1. o texto (a formulação) não tem sua especificidade; 2. qualquer versão é boa 3. que, no discurso científico, pode-se dizer qualquer coisa de um texto (formulação), podendo-se mesmo ficar em suas versões (vulgatas) não havendo então necessidade de irmos às “fontes”, ou seja, à versão produzida pela função-autor; 4. e, talvez, o mais importante: que a posição-sujeito científico apaga a função-autor. Ao contrário, é no corpo a corpo com as “fontes” (texto/autor), com as formulações, que a ciência faz seu caminho mais interessante e mais produtivo, movendo-se na rede de suas filiações. Passar do discurso à sua formulação, é justamente dar-se corpo em sua função de autoria e individualizar o dito em suas especificidades.

A diferença entre formulações – versões - é significativa e não ocasional, como se pretende. Ela representa uma relação (filiação) do texto com o discurso e deste com a memória discursiva. Portanto situa-se nas mediações entre o real da língua e o real da história, fazendo sentido na medida mesmo em que materializa sua especificidade.

Em meus trabalhos tenho ressignificado a noção de autoria e procurado deslocar também a de comentário/versões que não se limita apenas a uma questão formal, de repetição, mas de formulação, tendo a ver com a função-autoria tal como a concebo. Na função-autor efetiva o sujeito não reformula apenas em um sentido superficial, ele entra na relação com o corpo do discurso, com o acesso ao seu acontecimento. Ele desliza, produz efeitos metafóricos, faz funcionar sua memória discursiva.

Como hoje temos as novas tecnologias da linguagem, temos então uma nova organização do trabalho intelectual, novas tecnologias da escrita, novas formas de autoria. A variança – e não a falha – nos traz novas formas de organização da escrita (o que chamo escritoralidade) e também afeta a autoria mais formal (a da “obra”, como define Foucault, 1971) na relação com o impresso, com a assinatura. Ao institucionalizar as relações sócio-históricas, a escrita (científica) determina aspectos da autoria (e da relação com o texto na função-autor) que levam à autenticidade e unicidade da obra. Sua “assinatura”. Isto é que lhe é retirado quando se assalta a função-autor, produzindo-se de um lado um silenciamento, de outro, uma versão do autor que não coincidente com sua autoria.

Pensando a questão das relações de poder, inclusive na ciência, nos bastidores da encenação dos sujeitos e dos sentidos, as formações discursivas e o interdiscurso fazem seu jogo, a ideologia produz seus efeitos. Pensado dessa perspectiva que estamos elaborando, na ciência, o fato de “ter uma idéia” e de saber “dizê-la” implica pois elaborados processos de formulação pois não se passa direta e automaticamente da memória para o discurso e deste para a formulação (textualização). São complexos processos e mediações que presidem esse funcionamento e a função-autor é uma função nodal nesse processo. Nessas circunstâncias, uma formulação de um autor que projeta uma imagem viezada da função de autoria de outro é um jogo de política científica que funciona justamente porque a versão é uma questão técnica (e não de variança por erro, como se considera no impresso, ou por falha, como seria na Idade Média) que afeta a produção científica, tanto pelo aspecto da função-autor, como da própria formulação na produção de sentidos e de suas conseqüências no campo da ciência.

A variança, na análise de discurso, tal como tenho estabelecido (Orlandi, 2001b), tem outro estatuto heurístico quando penso o texto como unidade de análise e de significação em relação à situação. Se a incompletude é parte incontornável dessas relações, e se os sujeitos e os sentidos estão sempre em movimento, é a abertura do simbólico materializada no texto, pela sua formulação, que pode nos dar a dimensão do realizado e do irrealizado, na procura da presença-ausente das formulações e seus confrontos em diferentes versões. O que é fundamental para que a ciência não seja mera repetição e que a função-autor na ciência faça sentido pela maneira mesma com que se constroem as (diferentes) formulações. A variança não é um mero acaso, na ciência, ela é seu cerne.

Por isso, ao silenciar, o grileiro de autoria pensa enganosamente estar produzindo ali um vazio. Não. O silenciamento deixa seus vestígios e o real dessa história lateja no jogo das versões. Presença-ausente. Em que o sentido silenciado pode ainda sempre irromper. Talvez por isso, o autor silenciado torna-se ainda mais forte. Porque é o indício de um espaço de significação que não está vazio.

Eni P. Orlandi é professora titular de análise de discurso do Departamento de Lingüística, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL); coordenadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp.

Notas

1 Quando falo em versões, a perspectiva é o texto, quando penso a formulação, a perspectiva é a relação ao sujeito (constituição, formulação e circulação de sentidos).

Bibliografia

Foucault, M. (1971) L´ordre du discours, Seuil, Paris.
Orlandi, E. (1993) As formas do silêncio, Unicamp, Campinas.
Orlandi, E. (2001a) “Tralhas e troços: flagrantes urbanos” in Cidade atravessada Eni Orlandi (org.), Pontes, Campinas.
Orlandi, E. (2001b) Discurso e texto, Pontes eds, Campinas.
Orlandi, E. (2003) “Tradução e política científica” in Produção e circulação do conhecimento, vol. II, Eduardo Guimarães (org.), Pontes, Campinas.
Pêcheux, M. (1975) Les vérités de la palice, Maspero, Paris.