REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Evolução histórica do conceito de savana e a sua relação com o Cerrado brasileiro
Por Fabiana de Gois Aquino
José Roberto Rodrigues Pinto
José Felipe Ribeiro
10/02/2009

Agrupar a vegetação de uma região, de um país ou do planeta em categorias de fácil reconhecimento parece, inicialmente, uma tarefa simples. Entretanto, os critérios, as observações subjetivas, as escalas e outras variáveis consideradas no método de classificação adotado dificultam que um mesmo padrão possa emergir nos diferentes sistemas propostos por distintos autores. Embora certa uniformidade na conceituação e na terminologia seja desejada, é muito difícil que um modelo universal defina ou represente fielmente uma tipologia vegetacional, uma vez que as paisagens apresentam variações e particularidades locais e regionais. Além disso, influenciam sobremaneira no produto final da classificação, o tamanho da área, a escala e a ordem hierárquica dos critérios e conceitos utilizados na separação das categorias.

Para a savana não é diferente. Talvez, de todos os tipos de vegetação, a savana seja a mais difícil de definir, pois sua distribuição e origem são controversas, já dizia em 1960 a geobotânica Mônica Mary Cole. A definição de savana e a evolução histórica deste termo são polêmicas e têm sido frequentemente colocadas em pauta nos vários fóruns de discussões acadêmicas ao longo das últimas décadas. Apesar de bastante debatido, o assunto ainda desperta controvérsias em função do alto número de interpretações. Na literatura científica, são encontradas mais de duas centenas de termos técnicos relacionados à palavra savana. Esse elevado número está associado à grande quantidade de tipologias vegetacionais classificadas como savana.

Escrever em poucas páginas sobre um assunto tão extenso não é fácil. A intenção apresentada aqui é oferecer uma visão geral das principais linhas de pensamento e pontos de divergências, bem como apresentar a contribuição de alguns atores envolvidos na árdua empreitada de ordenar conceitos, visões e impressões sobre as savanas do nosso planeta. Como a literatura aponta, embora essa discussão conceitual possa parecer inócua, ela tem implicações práticas diretas, pois dependendo do conceito adotado, a distribuição geográfica, a extensão da savana no mundo e a quantificação da biodiversidade muda drasticamente, refletindo nas políticas e estratégias para sua conservação.

Historicamente, a evolução do conceito está associada aos critérios usados na definição e/ou na classificação das savanas no mundo. Grande parte das definições de savana disponíveis na literatura inclui aspectos fisionômicos, climáticos (estacionais), latitudinais, geográficos, florísticos e ecológicos (por exemplo: competição e fogo), além de sugerir o importante papel do tempo geológico. Entretanto, existem variações no peso dos critérios usados em cada um dos diferentes sistemas de classificação, culminando, conseqüentemente, nas diferenças terminológicas.

De acordo com Cole, o termo savana é ameríndio (nativo do continente americano) e foi citado pela primeira vez, em 1535, pelo historiador e escritor espanhol Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés em um trabalho nas Índias, para descrever “terra que está sem árvores, mas com muita erva alta e baixa” (Cole, 1986).

Segundo os levantamentos realizados pelo pesquisador Bruno Machado Teles Walter, da Embrapa, até meados do século XIX, o termo savana foi aplicado para descrever os tipos vegetacionais desprovidos de árvores, localizados no Caribe e na América do Sul. Esse pesquisador chamou atenção para o fato de que “embora, atualmente (no Brasil), o público leigo associe savana a um domínio vegetacional do continente africano (e não sul-americano), local de morada dos grandes mamíferos do planeta, foi somente muito tempo depois de sua origem histórica, que o termo foi aplicado naquele continente e em outras partes do globo” (Walter, 2006).

Em seus estudos, Walter ressaltou que o botânico e fitogeógrafo alemão August Heinrich Rudolph Grisebach, em 1872, parece ter sido o primeiro a usar o termo savana com significado mais difundido até o presente, ou seja, utilizando o termo para designar paisagens com poucas árvores espalhadas em um ambiente graminóide em outros lugares do mundo e não apenas em paisagens da América do Sul. Posteriormente, o ecólogo alemão Oscar Drude e o fitogeógrafo francês Andreas Franz Wilhelm Schimper estenderam o conceito de savana para a vegetação com ocorrência esparsa de arbustos e árvores (Drude, 1890; Schimper, 1898); seguidos por várias outras tentativas de definir com exatidão o termo. Porém, como o termo passou a ser aplicado em diferentes partes do planeta, distintas definições foram incorporadas ao longo do tempo com significados até mesmo conflitantes em função de particularidades de cada região.

Uma grande contribuição para o entendimento sobre as savanas mundiais pode ser creditada ao médico-ecólogo francês François Bourliére, que, em conjunto com autoridades no tema, publicaram em 1983 o livro intitulado: Ecosystems of the world 13: tropical savannas, mostrando as características das savanas em todos os continentes. Para eles, existem alguns fatores que, em conjunto, determinam a formação da savana, entre eles as condições climáticas, edáficas, hidrológicas e geomorfológicas, além do fogo e pastejo.

Atualmente, o termo savana tem sido utilizado de forma ampla para designar diferentes formações vegetacionais no mundo, muitas vezes se referindo a conceitos conflitantes. Para as duas escolas tradicionais em estudos ecológicos, a escola européia e a americana, a principal diferença em termos conceituais está na área de distribuição geográfica das savanas na Terra. Para as escolas seguidoras da corrente européia, as savanas ocorrem na zona tropical, localizada entre os Trópicos de Câncer e de Capricórnio (22,5º norte e sul da linha do Equador). Por outro lado, para a corrente americana, as savanas ocorrem além da zona tropical, estendendo-se para a zona subtropical (entre 23º e 35º ao sul do Trópico de Capricórnio e 23º e 35º ao norte do Trópico de Câncer), incluindo no conceito parte da vegetação estépica do continente norte americano.

Além da diferença quanto à área de ocorrência da savana, outro ponto de divergência está na inclusão ou não das fitofisionomias arbóreas e das essencialmente herbáceas na sua definição. Geralmente, o conceito de savana está relacionado aos aspectos fisionômicos da vegetação. Exemplo disso são os inúmeros termos encontrados na literatura, os quais fazem, via de regra, inferências sobre a presença ou não de árvores, arbustos ou apenas campo (savana arborizada = savanna woodland, savana arbustiva = savanna scrub, savana parque = savanna parkland, savana herbácea = savanna grassland). Menos usual está o emprego do termo relacionado com as condições ambientais locais, por exemplo, savana estacional = savanna seasonal, savana hipersasonal = savanna hyperseasonal. Há ainda quem separe as áreas de savanas no mundo em função das condições macroclimáticas, por exemplo, savana úmida = savanna wed e savana seca = savanna dry.

Para outros autores, como o professor George Eiten, as savanas no mundo podem ser agrupadas numa macroescala de acordo com as condições climáticas regionais, onde a sazonalidade no regime pluviométrica seria o fator determinante para ocorrência da vegetação savânica, por exemplo, no continente africano (Eiten, 1982). Por outro lado, as savanas também poderiam ser determinadas pelas condições edáficas, onde as propriedades físico-químicas do solo é que determinariam a ocorrência desse tipo de vegetação, como é o caso das savanas amazônicas, na América do Sul. Na região Norte do Brasil, o clima é favorável para a formação da Floresta Tropical Úmida, no entanto, na região amazônica há manchas de vegetação savânica que, certamente, são reflexos das condições edáficas locais.

Voltando à discussão conceitual, de acordo com a visão antiga do termo, a savana pode ser entendida como um tipo de vegetação desprovida de árvores e com abundante estrato herbáceo. Por outro lado, na visão moderna e mais ampla, o termo savana, em geral, pode ser definido como a vegetação caracterizada por um estrato graminoso contínuo ou descontínuo com presença de árvores e arbustos dispersos na paisagem (ver Collinson, 1988). Dentro desse conceito, as savanas podem ser encontradas na América do Sul, África, Oceania e Ásia. A savana é considerada o quarto maior bioma mundial em área, com cerca de 15 milhões de km 2, que correspondem a cerca de 33% da superfície continental da Terra, 40% da faixa tropical e abriga 20% da população mundial ( Whittaker, 1975; Mistry, 2000)

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Distribuição das savanas no planeta.

Na América do Sul, a savana é o segundo maior tipo de vegetação em extensão, atrás apenas da Floresta Tropical Úmida (florestas Amazônica e Atlântica). No entanto, não é consensual quais os tipos de vegetação compõe a savana no continente sul americano. O mais aceito é considerar como savana o Cerrado brasileiro, os Llanos venezuelanos e colombianos do rio Orinoco, e os Llanos de Mojos da Bolívia. Por outro lado, a Gran Sabana, nas Guianas, o Chaco boliviano, as savanas amazônicas, o Pantanal e a Caatinga, no Brasil, são alguns dos exemplos de divergência quanto à sua inclusão ou não no conceito.

O professor Eiten, em um trabalho pioneiro sobre as savanas brasileiras, no início da década de 80, agrupou a vegetação savânica brasileira em cinco categorias climático-geográficas: Brasil sul (southern Brazil), região de campos limpos; Floresta Atlântica (Atlantic Forest region), onde ocorrem campos de altitude e/ou rupestres; Brasil central (central Brazil), no domínio do Cerrado e Pantanal; Brasil nordeste (north-eastern Brazil), no domínio da Caatinga; e Amazônia (the Amazon region), onde ocorrem as “savanas amazônicas”, ou seja, para Eiten, as savanas são encontradas em todas as regiões brasileiras (Eiten, 1982). Já para o pesquisador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Carlos Toledo Rizzini, em seu livro intitulado Tratado de Fitogeografia do Brasil, no Brasil, a palavra savana “só devia-se empregar, restritamente, para indicar o Cerrado” (Rizzini 1997), enfatizando mais uma vez as diferenças de interpretação.

De acordo com os pesquisadores da Embrapa, José Felipe Ribeiro e Bruno Machado Teles Walter, o Cerrado é um “complexo vegetacional que possui relações ecológicas e fisionômicas com outras savanas da América tropical e de continentes como a África e Austrália”. Para eles, o Cerrado é uma palavra que possui três acepções técnico-científicas. A primeira e mais abrangente, aplica-se ao bioma situado predominantemente no Brasil Central; a segunda, Cerrado sentido amplo (cerrado lato sensu), refere-se ao conjunto das formações savânicas e campestres do bioma; e a terceira, Cerrado sentido restrito (cerrado stricto sensu), indica um dos tipos fitofisionômicos que ocorre com maior freqüência na formação savânica, definido por sua composição florística e fisionomia.

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Distribuição dos biomas brasileiros. Bioma Cerrado na parte
central do território brasileiro (cor rosa).

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.


Para alguns autores, como o professor Leopoldo Coutinho, da Universidade de São Paulo, o bioma Cerrado vai da fitofisionomia do Campo Limpo ao Cerradão, num gradiente crescente do componente lenhoso (ver Coutinho, 1978). Para outros autores, como os pesquisadores Ribeiro e Walter, o Cerrado é composto por um mosaico fitofisionômico que contempla as formações campestres (por exemplo, Campo Limpo), formações savânicas (por exemplo, Cerrado sentido restrito) e formações florestais (por exemplo, Matas de Galeria) (ver Ribeiro e Walter, 2008). Dentro desse contexto, a vegetação classificada como savana apresenta características estruturais intermediárias entre as formações campestres e as formações florestais do Cerrado, por exemplo, Campo Limpo e Cerradão, respectivamente. Portanto, o bioma como um todo não é savana, uma vez que nele ocorrem florestas e campos puros, mas é caracterizado, primordialmente, por uma típica vegetação de savana que ocupa a maior parte da área de domínio do bioma.

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Cerrado sentido restrito.
Foto: José Felipe Ribeiro.

A grande divergência entre esses sistemas de classificação, bem como do conceito de Cerrado, está na inclusão ou não das fitofisionomias mais abertas e as mais fechadas como bioma Cerrado e como savana. Tanto Coutinho (conceito mais restritivo) quanto Ribeiro e Walter (conceito mais amplo) consideram o Cerrado como savana (Coutinho 2006; Ribeiro e Walter 2008). A diferença está na definição de quais fisionomias compõe esse bioma, ou seja, se devemos incluir as formações campestres e as florestais na definição de Cerrado. Enfim, considerando apenas o aspecto fisionômico, o Cerrado pode ser então considerado como savana, pois, cerca de 80% a 90% do Brasil Central é caracterizado como vegetação savânica (Cerrado sentido restrito e Campo Sujo), enquanto que o restante é ocupado pelas formações florestais e campestres (Eiten, 1972; 1978).

Segundo Walter, “não há como excluir o Cerrado sentido restrito do conceito de savana, qualquer que seja a definição adotada”. No entanto, ele salienta que “já o Cerrado sentido amplo e o bioma são realmente de análise mais complexa”, concluindo que “realmente o Cerrado não é meramente um sinônimo brasileiro de savana, mas sim um componente deste conceito”, como já havia afirmado o professor Eiten na década de 70 (Eiten, 1972; 1978).

Por fim, para que o termo savana possa ser usado satisfatoriamente, é preciso levar em conta as diferentes interpretações existentes. Por isso, é importante a observação do professor Coutinho: “os termos empregados para definir uma tipologia vegetacional deveriam ser seguidos pelos conceitos que os autores fazem deles para evitar confusões, pois nem sempre seus conceitos coincidem entre si” (Coutinho, 2006). Como os conceitos não são coincidentes, é fundamental que o autor entenda e esclareça qual a definição está utilizando e seja coerente durante todo o texto.

Fabiana de Gois Aquino é pesquisadora da Embrapa Cerrados; José Roberto Rodrigues Pinto é professor do Departamento de Engenharia Florestal, da Universidade de Brasília, e José Felipe Ribeiro é pesquisador da Embrapa Sede.

Bibliografias consultadas

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Rizzini, C. T. Tratado de fitogeografia do Brasil: aspectos ecológicos, sociológicos e florísticos. 2 a Edição. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural Edições Ltda. 1997. 747 p.
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