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Artigo
Pororoca cerebral
Por Li Li Min
e Paula T. Fernandes
10/06/2009

Você deve estar se perguntando: “Pororoca cerebral?”. Qu'est que ce? ¿Que es esto? What a heck? Pororoca (do tupi poro'roka, de poro'rog, estrondar) é um fenômeno natural produzido pelo encontro das águas. Essa provocação remete ao senso de catástrofe da natureza resultante do encontro de duas frentes: de um lado o AVC e do outro a epilepsia.

Epilepsia é a condição neurológica grave mais frequente, acometendo 1 a 2% da população. No Brasil, somam-se trezentos casos novos a cada dia a um total estimado de três milhões de brasileiros. A epilepsia não escolhe cor, credo, classe social nem idade. Porém, tem uma taxa maior na classe socioeconômica mais baixa e nos extremos da faixa etária: na infância e na melhor idade. Pois, é nessa melhor idade que também aparecem outros piores problemas de saúde, incluindo aqui o AVC. As sequelas do AVC, como já não bastassem os problemas motores, sensoriais e cognitivos, podem incluir a epilepsia. Se observarmos os pacientes com epilepsia de início na melhor idade, iremos encontrar como principal causa o AVC.

Por que eu? Duplamente atingido, primeiro pelo AVC e, agora, pela epilepsia. Para tentar entender um pouco isso, vamos caminhar alguns passos nesse circuito:

  1. crises epilépticas são manifestações clínicas decorrentes de uma hiperexcitação de um agrupamento de células nervosas que altera a função de um determinado circuito neural.
  2. epilepsia acontece quando esse agrupamento de células nervosas, ou circuito neural, torna-se auto-sustentável e capaz de gerar crises epilépticas de forma espontânea.
  3. o AVC pode, na sua fase aguda, alterar a estabilidade do circuito neural, levando a uma hiperexcitação, seja por processo compressivo, decorrente do edema (inchaço), ou por processo inflamatório, ou ainda por irritação de substâncias liberadas pelas células lesadas, bem como do próprio sangue no caso do AVC hemorrágico.
  4. na recuperação do AVC há o fenômeno de plasticidade neural, com estabelecimento de novas sinapses (ponto de encontro de um neurônio com o outro).

Ok? Veremos como é essa relação temporal entre AVC e crise epiléptica e epilepsia:

  1. O paciente pode, durante o AVC em instalação, apresentar crises epilépticas. Essas crises, na fase aguda, são chamadas de crises epilépticas sintomáticas e não se configuram como epilepsia. Pois, para ser epilepsia, há uma necessidade das crises serem geradas de maneira espontânea e não provocadas. Nos AVCs hemorrágicos, a frequência de crises epilépticas é maior do que nos AVC do tipo isquêmico. Muitas vezes, as crises se tornam muito frequentes e longas em duração, levando a uma situação crítica conhecida com estado de mal epiléptico. Nesses casos, além do mal que a falta de irrigação sanguínea está causando, a tormenta elétrica acaba somando para acentuar a lesão dos neurônios.
  2. Depois de meses, até anos, decorridos do AVC, alguns pacientes começam a apresentar crises epilépticas. Esse período de latência corresponde ao tempo em que ocorreu a plasticidade neural e novas sinapses se formaram, o que resultou em um circuito neural hiperexcitante.
  3. Algumas pessoas têm a epilepsia na melhor idade e, no decurso da investigação com ressonância magnética de crânio, descobrem que têm múltiplas lesões no cérebro, descritas como lesões lacunares. Essas lacunas são microinfartos que, pela extensão e localização, tiveram “pouca” repercussão clínica até então. Essas lesões acabam por alterar o circuito neural a ponto de causar epilepsia. Além da epilepsia, as microlesões somadas podem afetar determinadas estruturas cerebrais, comprometendo de maneira significativa a função cognitiva. Em alguns países, essas microlesões vasculares já são a principal causa de demência.

O tratamento no caso da epilepsia, ou das crises sintomáticas agudas, é importante. No caso de crises sintomáticas agudas, no decurso do AVC, o controle das crises tem finalidade de não piorar ainda mais as condições clínicas do paciente. O tratamento é feito por um período curto, na fase aguda, podendo retirar a medicação meses depois da alta hospitalar. No caso de epilepsia, que tem o padrão de crises recorrentes, o tratamento já é realizado por mais tempo. De uma maneira geral, as crises tendem a ser de fácil controle com uso de medicação antiepiléptica. O uso irregular é a principal causa do não controle das crises, que podem ocorrer sem aviso, na rua, por exemplo. Você sabe como agir diante de uma pessoa tendo uma crise convulsiva?

O tratamento visa o controle das crises que, nessa idade, oferece perigos extras, como fraturas por quedas. Existe uma gama grande de medicações antiepilépticas e a escolha depende de vários aspectos. De certa maneira, todas as drogas antiepilépticas causam sedação por agir no cérebro, porém, alguns em maior grau. Outro aspecto a ser considerado é a interação das drogas antiepilépticas com outras drogas que são usadas. De uma forma geral, as drogas fenitoína, carbamazepina e fenobarbital estimulam enzimas no fígado e, assim, a medicação que é metabolizada (processada) no fígado terá uma concentração reduzida e, consequentemente, terá seu efeito diminuído. Um exemplo é o anticoagulante oral tipo cumarinico. Não podemos nos esquecer, também, do preço da medicação. As drogas antiepilépticas de primeira linha estão na lista de medicações essenciais do Ministério da Saúde e são disponíveis gratuitamente nas unidades básicas de saúde.

Mas tem como prevenir a epilepsia nesses casos de AVC? A resposta é: não, ainda. Porém, é preciso levar em consideração que, ao prevenir o AVC, você estará prevenindo a epilepsia. Isso é possível em grande maioria dos casos, se todos adotassem um estilo de vida mais saudável, com hábitos como: não fumar; não beber; praticar exercícios físicos; cuidar da alimentação e do colesterol; controlar a pressão arterial e o diabetes. Apenas dessa maneira podemos reconstruir o cenário do AVC e da epilepsia pós-AVC em nosso país.

Infelizmente, os pacientes que desenvolvem epilepsia enfrentam atitudes negativas e discriminação social em todo o mundo e tendem a enfrentar problemas psicossociais variados, seja por medo e vergonha, até restrição de atividades, como dirigir. Isso acaba levando ao isolamento social. Por essa razão, além de exigir uma adaptação a um novo estilo de vida, a epilepsia também exige uma redefinição de papéis e de identidade das pessoas. Sob essa ótica, na fase da melhor idade, as pessoas estão mais estabilizadas em suas profissões e estilos de vida e, por isso, a epilepsia desencadeia implicações negativas nas relações sociais e no emprego, gerando dificuldades na autoestima, na qualidade de vida e conflitos familiares, emocionais, sociais e até, econômicos.

As altas taxas de desemprego ou subemprego são fenômenos comuns. Estudos mostram que o desemprego nessa população é duas ou três vezes maior quando comparado às pessoas sem epilepsia. Possíveis explicações para esses índices parecem contingentes à menor qualificação escolar e profissional, à falta de informação e às situações de estigma social, além, é claro, dos aspectos relacionados ao mercado de trabalho atual e às características da própria epilepsia.

Muitos casos de separação de casais também são comuns e, com isso, acabam sendo importantes preditores de baixa qualidade de vida. Podem ser explicados pelo reduzido contato social, pela baixa autoestima e pelo medo da rejeição. As relações sociais também ficam limitadas sendo, muitas vezes, mais desvantajosas do que as próprias crises.

Além disso, adultos sofrem com a reorganização de papéis e com a perda de confiança. Elas podem perder a independência funcional, como, por exemplo, a habilidade para dirigir, o que pode levar a um isolamento social cada vez maior. Como se não bastasse, quando as pessoas com epilepsia já estão no papel de pais, muitas vezes, sentem-se envergonhados e incapacitados para lidar com as crianças, por apresentarem crises diante delas.

Nesse contexto, a qualidade de vida fica prejudicada, podendo interferir mais do que as crises epilépticas por si só. Dessa maneira, podem aparecer outras complicações psicológicas, como depressão e ansiedade, que devem ser tratadas. As pessoas precisam buscar informações e aderir ao tratamento adequado (medicamentoso e não medicamentoso) nos casos de epilepsia pós-AVC, tanto para prevenir os eventos vasculares, como as crises epilépticas. As repercussões psicossociais podem ser minimizadas, fazendo com que o paciente consiga ter uma qualidade de vida e participe da sociedade, da melhor maneira possível.

A Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia (Aspe) é uma ONG, sem fins econômicos, executora da Campanha Epilepsia Fora das Sombras no Brasil que integra um esforço mundial, a Campanha Global Contra Epilepsia sob a chancela da Organização Mundial da Saúde, da International League Against Epilepsy e da International Bureau for Epilepsy. No Brasil, a Aspe desenvolve atividades educacionais voltadas para diversos segmentos, incluindo treinamento e cursos de capacitação para profissionais de saúde da rede de atenção básica, programa de saúde da família para melhorar a assistência da pessoa com epilepsia. A Aspe atua nas comunidades levando informação correta para que a sociedade saiba lidar melhor com as diferenças, em particular na semana do dia 9 de setembro, dia nacional e latino-americano de conscientização sobre epilepsia. Participe você também, propague saúde e desmistifique:

  • Epilepsia não é uma doença contagiosa.
  • Epilepsia não é doença mental.
  • Epilepsia não é uma doença espiritual.
  • A baba (saliva) não transmite epilepsia.
  • A pessoa, durante a crise, não engole a língua.
  • Epilepsia não é sinal de fracasso na vida.
  • Epilepsia não é castigo de Deus.
Li Li Min é médico, professor associado e coordenador do Programa de Neurovascular do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Presidente fundador e voluntário da Aspe (www.aspebrasil.org), executora da Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras da OMS/ILAE/IBE no Brasil. Coordenador de difusão do Programa CInAPCe (www.cinapce.org.br). E-mail: limin@fcm.unicamp.br, li@aspebrasil.org, li@cinapce.org.br. Paula T. Fernandes é psicóloga, mestre e doutora em neurociências pelo Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Pós-doutoranda e pesquisadora colaboradora do Departamento de Neurologia da FCM-Unicamp. Presidente da Aspe (www.aspebrasil.org), executora da Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras da OMS/ILAE/IBE no Brasil. Psicóloga do Programa de Neurovascular da FCM-UNICAMP. E-mail para contato: paulatfb@terra.com.br, paula@aspebrasil.org