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Artigo
Ortografia não é apenas escrever palavras com a grafia correta
Por Luiz Carlos Cagliari
10/11/2009

1. Primeiras ideias sobre ortografia

 

A nossa tradição escolar, baseada nos livros didáticos, nas gramáticas e dicionários, formou a ideia comum que as pessoas têm, segundo a qual a ortografia significa escrever as palavras da língua com a grafia correta. Algumas pessoas lembram a origem dessa palavra, dizendo que ela veio do grego e que, naquela língua, significa “escrita correta”. Embora não se saiba bem o que “escrita correta” signifique, a palavra ortografia ficou com o sentido tradicional de grafar as palavras com as “letras corretas” com que as pessoas escrevem a língua que usam. Como apoio para isso, apareceram os vocabulários ortográficos e os dicionários.

 

As questões problemáticas a respeito de saber “com que letras” se escrevem as palavras começam com a própria história da língua. Por exemplo, em português, já se escreveu a palavra “igreja” dos seguintes modos: jgreja, egleja, egleia, eglesa, eglesia, egreja, eigleja, eygleyga, eigleja, eigrega, eigreja, ergreja, ergueyja, greja, igreija, igreja, etc., (cf. Dicionário etimológico da língua portuguesa (1956), de José Pedro Machado). Aparentemente, aquela palavra não mudou muito em sua pronúncia, mas a percepção da fala e os recursos da escrita levaram as pessoas a escrevê-la de muitas maneiras, na história da língua. Um dos motivos pelos quais a grafia das palavras muda é porque mudou a pronúncia. Até o século XV, ainda se via escrito “estromento” para o latim instrumentum. Depois, voltou a pronúncia instrumento: mudando a pronúncia, a tendência da escrita é mudar o modo como a palavra é escrita.

 

A questão da pronúncia é ainda mais complicada. Nenhuma língua tem apenas uma pronúncia para todas as palavras. Todas as línguas sofrem de um processo dinâmico de transformação, o que se torna muito óbvio com o passar do tempo. Todavia, a escrita é um meio permanente de registro da fala e, vendo escritas muito antigas, facilmente percebemos que a língua mudou. As mudanças mais evidentes para os falantes são as de natureza dialetal, geográfica ou social. Percebemos muito bem que os portugueses não falam como os brasileiros. No Brasil, o português apresenta características próprias nas diversas regiões do país. Numa cidade, facilmente distinguimos classes sociais com pronúncias peculiares para determinadas palavras. Por exemplo, no Rio de Janeiro, ouvimos alguém falar “tchia”, “doidu”, “chuva”. As mesmas palavras são pronunciadas “tia” no sul do Brasil, “doidju” numa variedade de Alagoas e Sergipe, e “tchuva” em uma variedade do Mato Grosso. Há pessoas da zona rural que falam “drentu”, há pessoas que falam “nóis ponhamu us pratu”, “uz adevogadu acharu us curpadu”, etc. A variedade linguística é um resultado do fato de as línguas se transformarem inevitavelmente ao longo dos tempos. O latim virou português, francês, espanhol etc. Essas línguas também não pararam de se transformar. As línguas românicas vieram do latim popular, não do clássico, mas, ao serem adotadas pela nobreza nos diferentes territórios da Europa, tornaram-se línguas com um status semelhante ao do latim clássico, falado pelos nobres, e não ao do latim vulgar, falado pelas classes sociais menos privilegiadas. Como as novas nações também passaram a ter nobres e plebeus, ricos e pobres, nelas também se desenvolveu a teoria segundo a qual os nobres, os ricos, os poderosos e as pessoas cultas falam uma variedade da língua considerada “melhor” e os demais falam uma variedade “com muitos erros”. Essas diferenças de fala traziam um problema para a escrita. Por essa razão, no final do século XV e, principalmente, a partir do século XVI, começaram a aparecer gramáticas vernáculas para ensinar o povo a distinguir o que era fala de pessoas nobres e cultas da fala das pessoas menos favorecidas socioculturalmente. Apareceram também os tratados de ortografia.

 

Os tratados de ortografia se mostraram importantes, pois as pessoas cultas e ricas também tinham dúvidas sobre como escrever certas palavras, porque elas também percebiam que havia pronúncias diferentes no país e porque havia, ainda, uma tradição mais nobre de escrita, que vinha dos antigos. Mudar ou não mudar? Ficar com o antigo ou com o moderno? Era preciso estabelecer regras. Analisando o modo como as pessoas escreviam, era evidente que havia regras não declaradas publicamente, mas seguidas nas escritas oficiais, nas publicações e até em documentos e em cartas particulares. Explicitar tais regras seria uma maneira de justificar o modo como as palavras deveriam ser escritas, manter uma tradição, corrigir erros do passado e evitar problemas futuros. Com os ortógrafos, a ortografia passou a ter donos. Todavia, o poder dos ortógrafos era limitado, tratava-se de uma questão acadêmica, que podia ser contestada com argumentos contra. E foi o que aconteceu na história da ortografia da língua portuguesa, até o final do século XIX. Com muitas teorias e modelos ortográficos em uso, o poder político resolveu entrar na questão e estabelecer, via leis e decretos, a forma ortográfica das palavras. Curiosamente, nem assim a ortografia ficou única em seu uso, passando por muitos acordos entre Portugal e Brasil, procurando um ideal único de escrita das palavras da língua portuguesa. O último acordo, depois de mais de dez anos de discussão, acabou sendo implementado no Brasil no final de 2008, com início em 2009. Portugal também aceitou o acordo, mas ainda não o implementou.

 

Como vimos acima, as ideias mais comuns sobre ortografia dizem respeito à correção ortográfica, aos tratados de ortografia e aos acordos oficiais entre países usuários de uma mesma língua, no sentido de manter uma grafia única para todos. Observamos também que apesar dos ortógrafos e das leis, na prática, encontramos pessoas que escrevem sem seguir todas as normais oficiais ou porque discordam delas, ou porque não as conhecem. Em graus diferentes, todos os falantes da língua têm alguma dúvida ortográfica em determinadas circunstâncias. Mesmo palavras já escritas muitas vezes, ocasionalmente, podem aparecer com uma dúvida sobre qual letra ou letras devam ser escritas.

 

2. Por uma teoria da ortografia (Cagliari, 2009)

 

Para entender um pouco mais sobre a ortografia, é preciso rever algumas questões sobre os sistemas de escrita. Embora a escrita seja muito difundida na sociedade, ela é pouco estudada com a atenção que merece. Sem entender algumas de suas características básicas, não se entende como a ortografia é, de fato, e como funciona. A escrita é uma representação gráfica que permite a leitura. Essa definição é fundamental para se entender qualquer aspecto relacionado com a escrita. A unidade básica de todo sistema de escrita é a palavra. Nenhum sistema de escrita transmite diretamente um significado ou um som. Toda representação escrita exige do leitor (ou do escritor na hora de escrever) uma interpretação para traduzir o que está escrito em material próprio da língua oral. Permitir a leitura não significa que haja apenas um modo de ler, mas tantos quantos forem os dialetos dos leitores do texto. Eu leio no meu dialeto e não no dialeto de quem escreveu. Caso contrário, seria muito difícil a comunicação via escrita na nossa sociedade e muito mais difícil se houver diferenças notáveis de tempo entre quem escreveu e o leitor.

 

Como a escrita representa as palavras de uma língua, e as palavras são constituídas por uma parte semântica (o significado) e por uma parte fonética (a sua pronúncia), os sistemas de escrita do mundo se constituíram em apenas dois tipos básicos: ou são ideográficos, ou seja, partem da representação gráfica das idéias (semântica) para o leitor descobrir como ele fala a palavra que a escrita representa, ou são sistemas fonográficos, isto é, partem da representação dos sons das palavras para que o leitor descubra qual o significado que uma sequência de sons tem na língua, ou seja, descubra qual palavra está escrita. Na prática, as escritas sofrem de um processo cumulativo: formas antigas convivem com formas novas. Reformas ortográficas sempre levam em conta o fato de algumas palavras apresentarem uma grafia tradicional, que não deve ser alterada, ocorrendo como exceções a alguma regra geral do sistema. Além disso, as duas possibilidades de escrita, em todos os sistemas, fazem com que, embora predomine um tipo, o outro não é totalmente excluído. Na escrita chinesa, há modos de representar também a pronúncia, para ajudar o leitor, evitando leituras ambíguas ou mesmo erradas. No nosso mundo de escrita, além das letras, usamos uma enorme quantidade de ideogramas, pictogramas, símbolos, marcas que nada mais são do que escritas puramente ideográficas. Os números e as notações científicas que usamos pertencem a um sistema ideográfico e não alfabético. Nesse mundo aparentemente caótico de escrita, vivemos bem, lidamos bem com todos esses modos de escrita, encaramos nosso mundo de escrita como algo familiar. E isso é fascinante.

 

Qualquer ideograma poderia ser escrito de vários modos: a figura de um homem, de uma casa, poderia ser feita com diferentes formatos. A escrita ideográfica chinesa, porém, escolheu um padrão e não tolera a variação além de um determinado limite. Esses limites constituem a ortografia dos sistemas ideográficos. Nos sistemas fonográficos, as letras também podem ser lidas de muitas maneiras, de acordo com os dialetos, porém há limites. Além dos limites estabelecidos, a leitura fica prejudicada ou mesmo errada. Alguém pode ler “doidju” para “doido”, mas não pode ler “maluku” como decifração da escrita “doido”.

 

Portanto, a ortografia veio estabelecer limites. Não se pode fazer qualquer representação gráfica para qualquer palavra, à vontade do usuário. Por outro lado, os limites com as possibilidades de representação, tiradas de dentro do próprio sistema e da tradição de uso da escrita de uma língua, ficam a desejar no sentido de facilitar ou dificultar a vida dos leitores. Poderíamos escrever “doidju”, “tchuva” ou até formas idiossincráticas, como “hygreja”, “khaza”, etc. Se cada usuário pudesse escrever do modo que achasse melhor ou mais conveniente para si, teríamos em circulação na língua muitas grafias para uma mesma palavra. Para resolver essa questão, os sistemas de escrita contam com uma ortografia. O objetivo da ortografia é neutralizar as variantes de todos os tipos. Porque em nosso sistema uma letra acaba representando alguns sons diferentes (como a letra “e” nas palavras belo, beleza, pé, pode), isso não significa que o sistema permite que o usuário use tal letra em qualquer contexto em que identifica um som possível que a letra representa, escrevendo, por exemplo: “lápes”, “quero”, “menenu” (para “lápis”, “quero”, “menino”).

 

A ortografia congela a forma de escrita, seja um ideograma, seja a sequência de letras que devem compor uma palavra. Ao fazer isso, a escrita pode cumprir plenamente sua missão de “permitir a leitura”, sem precisar representar a fala de cada falante ou dialeto. Pelo contrário, é da natureza da ortografia não trazer a fala de alguém ou de algum dialeto em particular, mas formas de escrita mais ou menos óbvias, dependendo do dialeto do falante, para que o leitor parta das letras, descubra a palavra escrita, o que lhe permitirá dizê-la em seu dialeto. Assim, diante de “os advogados acharam os culpados”, alguém pode ler em seu dialeto “uz adevogadu acharu us curpadu” e inclusive repassar essa informação a alguém que está a seu lado. A mesma escrita permite outras leituras. Uma outra consequência da ortografia em nosso sistema é o fato de as relações entre letras e sons – e vice-versa – serem controladas pela ortografia e não pelo princípio acrofônico do alfabeto (ou seja, letra “a” tem o som de “a”, letra “t” tem o som de “t”, etc). Com a ortografia, uma letra representará todos os sons que os falantes de todos os dialetos atribuem a ela em todas as palavras da língua. Por exemplo, se alguém fala “acharu”, a letra “a” do final terá também o som de “u”; se alguém falar “incontremu”, a letra “a” também terá o som de “e”, e assim por diante. Esse fato, por exemplo, torna o método fônico de alfabetização altamente complicado.

 

3. As reformas

 

Os ortógrafos apegavam-se apenas à etimologia e à pronúncia. Como são duas coisas inconciliáveis, nunca chegaram a propor um sistema ortográfico razoável e aceitável. O caráter etimológico significava, na verdade, transparecer de algum modo a origem grego-latina de certas palavras. Para isso, usavam dígrafos (“ph” com o valor de “f”, “ch” com o valor de “k”, “th”, “y”) e algumas tendências latinizantes na escrita. Com relação à pronúncia, achavam que a corte portuguesa era o modelo, ajustado com um toque de sofisticação acadêmica. Por outro lado, a fala do povo era condenada, assim como modismos regionais e dialetais. Apoiando um extremo ou outro, até o século XX, os sistemas ortográficos propostos para a língua portuguesa tendiam a ser mais etimológicos (às vezes, ao exagero e cheios de erros) ou a ser mais sônicos ou fonéticos, sem uma definição clara de qual pronúncia devia ser seguida e como lidar com a variação dialetal. A reforma ortográfica comandada por Gonçalves Viana no início do século XX, apesar de explicitar e discutir as razões das escolhas das grafias, pelo desconhecimento de noções básicas sobre a própria natureza da ortografia, suas funções e usos, acabou gerando um modelo ortográfico que não agradou nem aos portugueses nem aos brasileiros. As reformas que se seguiram caíram nos mesmos erros. Nenhuma delas partiu do princípio de que o objetivo da escrita é permitir a leitura, nem da ideia de que a ortografia existe (e tem que existir) para neutralizar a variação linguística. Nem levaram em conta o fato de um sistema ortográfico mudar as relações entre letras e sons, perdendo-se o princípio alfabético (ou acrofônico). Com esses três princípios bem estabelecidos, qualquer reforma ortográfica ficaria clara e definitiva. Não é da natureza da ortografia preocupar-se com a representação de um determinado dialeto, como modelo de pronúncia. Isso vai diretamente contra a própria natureza da ortografia. Uma vez estabelecida a forma gráfica das palavras, cada um irá ler em seu dialeto. Portanto, nenhum dialeto precisa prevalecer sobre os demais. Certamente, há outros critérios desejáveis em um sistema ortográfico, como manter o quanto possível uma certa tradição, porque certas mudanças são chocantes e, na prática, não alteram nada, não permitem uma melhor leitura... É desejável, por outro lado, que haja algum tipo de uniformização, ou seja, algumas regras (ou bases) que ajudem a manter uma certa regularidade na escrita de casos semelhantes. Também é desejável que a ortografia esteja, de certo modo, associada a usos socioculturais mais salientes na sociedade, que as obras literárias apresentem uma certa uniformidade ortográfica. Como as línguas mudam inexoravelmente com o tempo, a defasagem entre a ortografia e o uso corrente da língua nas suas expressões de pronúncia vai ficando cada vez maior, exigindo pequenos reparos, depois de muito tempo em uso. Por exemplo, embora pareça que as ortografias da língua inglesa e francesa estejam paradas no tempo, isso não é verdade, porque apesar de terem variado pouco, elas têm recebido pequenas reformas, historicamente. Finalmente, nenhuma ortografia consegue ser uma camisa-de-força e, por conseguinte, sempre terá algum tipo de variação, introduzida ou por modismos passageiros, ou por novas grafias que passam a integrar o vocabulário ortográfico da língua. Essas variações entram em conflito com as regras mais gerais (bases), criando listas de exceções. Essas ideias desejáveis só não funcionam quando a proposta de sistema ortográfico para a língua se esquece dos três princípios fundamentais mencionados acima: que o objetivo da escrita é permitir a leitura, que o objetivo da ortografia é neutralizar a variação linguística, e que, com isso, as relações entre letras e sons não seguem o princípio alfabético.

 

4. O caso da reforma de 2009

 

Desde a reforma do início do século XX (1910) até a última (2008), o que se buscava, na verdade, era uma “unificação” das grafias usadas em Portugal e no Brasil. Havia dois modos de resolver isso: um, fazendo concessões de ambos os lados, e outro, juntando tudo em um mesmo modelo. A primeira solução durou até a última reforma. Nesta, a ideia de juntar as diferenças prevaleceu, porém, não de modo absoluto, como devia, mas acompanhada de soluções ad hoc para os dois sistemas, isto é, introduzindo novidades desnecessárias e indesejáveis. Essa reforma também veio com muitos pressupostos não esclarecidos: as grafias variantes para Portugal e Brasil servem igualmente para os dois países ou são de uso exclusivo para cada um? Por exemplo, um brasileiro pode escreve “receção” ou precisa escreve “recepção”, pode escrever “económico” ou tem que escrever “econômico”? Parece que o “espírito” da reforma deixou cada um com seu modo de escrever, mas isso não foi declarado assim. Por outro lado, algumas regras ou bases vieram confundir a tradição, o que é sempre um problema. Por exemplo, o uso que se propôs do hífen. Se é para mudar, uma solução melhor e mais simples seria escrever com hífen apenas os processos de composição vocabular (duas palavras com um sentido próprio, como “porta-bandeira”, que se refere a uma pessoa e não a um pedestal). Os prefixos e sufixos poderiam vir todos ligados com hífen se tiverem mais de uma sílaba (duas vogais, como em “hiper-mercado”, “anti-aderente” etc). A duplicação de “r” e de “s” aconteceria para manter o valor de “rr” e de “ss” quando duas palavras se juntam sem hífen, etc. A reforma poderia ter um conjunto extremamente pequeno de bases ou regras. Somente por razões de uso tradicional, seriam aceitas algumas exceções, como escrever “girassol” e não “gira-sol” para a flor. O objetivo do que se apresentou acima não é propor uma nova reforma, mas mostrar que as opções da última reforma mudaram algumas grafias sem critérios linguísticos bem definidos.

 

Certamente, uma reforma ortográfica é sempre indesejável e desnecessária. Pequenos ajustes, porém, podem ocorrer ocasionalmente. Tirar o trema é um desses ajustes, porque não precisamos de trema. Na verdade, não precisamos nem sequer de acentos gráficos. Assim como todos sabem ler palavras como “belo” e “beleza”, variando a vogal “é” com “ê”, ou lemos sem dificuldade a variação de “ô” com “ó” em palavras como “porco”, “porcos”, do mesmo modo, sabemos que “república” tem pronúncia acentuada na sílaba “pu”, e que na palavra “túnel” pronunciamos a sílaba “tu” com acento; portanto, o uso das marcas gráficas do acento são absolutamente desnecessárias para o falante nativo, porque ele sabe como falar a sua língua nativa e onde deve ou não acentuar ou como pronunciar determinada vogal e não outra. Se as regras cobrissem todos os casos de como falamos, a variação que a língua apresenta, mesmo mantendo-se numa variedade padrão, iria tornar a ortografia cheia de exceções, inutilizando em grande parte o valor de se ter uma regra geral. A realidade da língua é cheia de pequenas regras. Por exemplo, os apresentadores do Jornal Hoje, da Rede Globo, muito comumente pronunciam o nome do noticiário como “jôrnal hôje” e não como “jornál hoje”. Que adianta dizer que a palavra “lápis” tem acento porque é paroxítona (fato próprio da pronúncia) terminada em “i”, seguida de “s” (que não é marca de plural), se é comum as pessoas falarem “laps”, com uma só sílaba? No caso dos acentos, a única justificativa a partir da escrita é dizer que os acentos são enfeites, lembretes talvez. A referência à pronúncia nem sempre é correta. Casos como esses mostram como as bases de nosso sistema ortográfico fazem uma grande confusão entre fatos de escrita e fatos de fala, desconhecendo, em grande parte, os princípios que regem a escrita e a realidade oral da língua (mesmo em se tratando de uma variedade padrão). Disso tudo resulta que as reformas ortográficas, incluindo a última, acabam fazendo uma lista de palavras para serem escritas de um modo e não de outro. A verdadeira reforma ortográfica aparece no “vocabulário ortográfico”. As razões linguísticas são falhas e, não raramente, equivocadas. Outras razões que motivaram a última reforma também são falhas. Alegar que somente o português tem duas ortografias oficiais é distorcer a realidade, porque basta ver os corretores ortográficos dos computadores para saltarem aos olhos os vários sistemas que têm o inglês, o francês, etc. Nós temos apenas dois. Então, não seria mais razoável que uma lei ou decreto simplesmente dissesse que o modo de grafar as palavras em Portugal é válido também no Brasil e o que usamos é válido em Portugal? Com relação aos usuários estrangeiros, eles poderiam escolher qual dos dois sistemas preferem, assim como nós escrevemos ora seguindo a ortografia do inglês americano, ora a ortografia dos britânicos. Se o movimento de unificação tivesse ido nessa direção, como sugeri desde o começo do projeto de acordo, todos ficariam contentes e satisfeitos com suas tradições e resolveríamos o famigerado problema que, no passado, por razões absurdas, transformou nossa ortografia em objeto de lei, com as consequentes exigências legais. Luiz Carlos Cagliari é professor do Departamento de Lingüística, da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e pesquisador do CNPq.

Referências bibliográficas

Cagliari, Luiz Carlos. “Aspectos teóricos da ortografia”. Em: Ortografia da língua portuguesa: história, discurso, representações. Silva, Maurício (org.). São Paulo: Editora Contexto, 2009 (p.17-52).

Machado, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência, 1956.

Decreto Número 6.583 (29/09/2008) com o texto do Acordo Ortográfico no Diário Oficial da União (número 189). Disponível na internet no seguinte endereço:
http://www.ufmg.br/online/arquivos/anexos/decreto6583_acordoortografico.pdf