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Artigo
Manoel de tortografia e desgramática (pequena poética para Manoel de Barros)
Por Adalberto Müller
10/11/2009

Ao Egberto Gismonti

A poesia de Manoel de Barros se apresenta, antes de representar alguma coisa. Apresenta-se como um desconhecido que vem bater à porta, ou como um anjo anunciando boas novas. Auspiciosa, por olhar através das aves, a poesia de Manoel formiga a língua portuguesa, põe-na ao nível de formiga, retirando-a do pendor ao excelso ufano, rumo às coisas mais chãs. De Vieira, Rimbaud e Oswald de Andrade, deriva essa poesia, e põe à deriva a língua, pelo que aprendeu: do primeiro, o tortuoso da frase; do segundo, o tortuoso do ser; do terceiro, o tortuoso da fala.

Senão, vejamos. Vieira, explicando as lágrimas de São Pedro ante a descrença no que os olhos negavam: “os olhos enquanto vêem não podem chorar. O ver e chorar são os dous ofícios dos olhos, mas são ofícios incompatíveis no mesmo tempo: enquanto veem não podem chorar; e se querem chorar, hão de deixar de ver”. Rimbaud, lá pelas tantas: “Estendi cordas de sino em sino; guirlandas de janela em janela; colares de ouro de estrela em estrela, e danço”. Enfim, Oswald: “Para dizer milho dizem mio/...para telha dizem teia / para telhado dizem teiado / e vão fazendo telhados”.

Mas é de Guimarães Rosa – com quem Manoel não deve ser confundido, de modo algum, nem como epígono nem como “Guimarães Rosa da poesia” – que vem a mais importante lição. A de saber ouvir – para ver melhor. Ouvir é a própria condição da poesia. Ouvir permite à língua culta o retorno às suas “natências”, permite ao poeta universal religar-se com suas raízes, preparando voos mais altos. Assim dizia Miró: quanto mais firmes os pés estão no chão, mais a cabeça pode voar. Como Rosa (Stravisnki, Fellini, Chagall e outros tantos), Manoel volta ao seu chão, e faz dele o seu Verbo, ou melhor, sua “gramática expositiva”.

Lá está Rosa, na porteira de Compêndio para uso dos pássaros, livro de 1961, que marca a ruptura definitiva de uma poesia ainda modernista e drummondiana, para um estilo mais “manoelês” – refiro-me ao “idioleto manoelês archaico”, como ele denomina seu estilo, em Livro sobre nada: “O Vaqueiro Tadeu: queria era que se achasse para ele o quem das coisas” (123) Doravante, os números citados entre parênteses correspondem a: Manoel de Barros. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). 2a Edição. Civilização Brasileira. 1992. Na primeira parte do livro, “De meninos e pássaros” escutando o filho João, Manoel redescobre a fala de sons e imagens da infância: “O menino caiu dentro do rio, tibum” (127); “escuto o meu rio: / é uma cobra / de água andando / por dentro do meu olho”. Ouvindo a filha Martha: “E o passarinho com uma porcariínha no bico se cantou” (130, grifo meu); “Quis pegar / entre meus dedos / a Manhã. / Peguei vento” (130).

E logo vem a vontade de (se) definir, didático para si mesmo, ou paradidático (“experimentando a manhã nos galos”, segunda parte do livro), mas não menos inventivo:

...poesias, poesia é

– é como a boca
dos ventos
na harpa
...
cigarra que estoura
o crepúsculo
que a contém (142)

A inversão é a ferramenta-mestra do “transfazedor”. Sobre a bigorna da poesia, Manoel torce e retorce as frases e as ideias, e com ímpeto, quem diria, já sexagenário, vulcânico. A inversão não é, aliás, a mãe das figuras da linguagem (metáfora, metonímia et caterva)? Na inversão, ou linguagem figurada, os termos se substituem. O crepúsculo é uma bomba detonada pela cigarra, que por sua vez faz parte do crepúsculo. Mas tudo isso “empobrece a imagem”, como a palavra “enseada” destrói a imagem da “cobra de vidro mole” que passava por trás da casa do poeta (O livro das ignorãças, I, XIX). A inversão da linguagem comunicativa em linguagem figurada (que também comunica) consiste em fazer a linguagem voltar ao seu estado de imagem, ao seu estado primitivo. As imagens (figuras) não apenas estão mais perto da infância, mas estão mais perto dos sentidos, ao passo que a linguagem, através da gramática, sobretudo, busca a ordenação lógica – o logos que cifra a physis – a correção (ortografia) e a disposição apta a gerar ideias, argumentos, discursos. Por isso, poetas como Manoel de Barros buscam voltar à linguagem dos sentidos, que é uma linguagem não-intelectual (mas não menos inteligente!), que é uma língua de imagens: “Poeta não é necessariamente um intelectual; mas é necessariamente um sensual” (Manoel de Barros. Eu sou o rascunho de um sonho. Conversas de poesia. Organização de Adalberto Muller. (no prelo).

A terceira parte de Compêndio para uso dos pássaros é uma experiência. De inversão e desordenação (desgramática), que incide sobre um escrever torto (tortografia), que busca uma nova relação com a natureza (humana, inclusive). Nela tem lugar um novo aprenzidado, uma “ecocrítica da razão pura” (Greg Garrand. Ecocrítica. Brasília: Editora UnB, 2006), na qual é possível buscar o “quem das coisas” através do entendimento do corpo:

As plantas
me ensinavam de chão.
Fui aprendendo com o corpo.

Hoje sofro de gorgeios
nos lugares puídos de mim.
Sofro de árvores. (148)

A epígrafe do último poema do livro, “Um novo Jó”, retirada de Jorge de Lima, responde a fala do personagem roseano da epígrafe do início do livro: “Porquanto / como conhecer as coisas senão sendo-as?”. Daí em diante, Manoel de Barros nada mais faz do que sistematizar e variar essa experiência. No livro de 1969, Gramática expositiva do chão, o Manoel de Barros pinta o “retrato do artista quando coisa” (155), que será retomado quase de 30 anos depois no livro Retrato do artista quando coisa (1998), o qual já está escrito inteiramente em linguagem invertida: “uma pedra me rã (...) um passarinho me árvore (...)” (Manoel de Barros. Retrato do artista quando coisa. Record, 1998, p.13). Em matéria de poesia (1974), Manoel de Barros acrescenta a esse tema que a poesia se alimenta de “tudo aquilo que a nossa / civilização rejeita, pisa e mija em cima” (180). Arranjos para assobio (1982) acentua o caráter expositivo da “desgramática”, ao passo que acentua a inversão da linguagem e a imersão do sujeito no mundo das coisas: “a hera veste meus princípios e meus óculos. / Só sei por emanações por aderência por incrustações” (203). A língua, cada vez mais retorcida, pode gerar verbos insanos, pela inversão de atributos: “o vento se harpava em minhas lapelas desatadas” (207). O sujeito se despersonaliza em vários eus (mais tarde surgiriam Bernardos e outros): “Minhocal de pessoas, deserto de muitos eus” (208). É, aliás, essa despersonalização que lhe assegura ir mais longe nas inversões, de vez que se desprende a poesia de seu caráter gramaticalmente subjetivo, passando-se do eu para o ele, do homem para o sapo:

Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra.
O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante pólens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com seus dourados olhos.
Como ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vagalume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(tem dia o sapo anda estrelamente!)
               (208-9)

Acentua-se, também, na sua “didática” (que nada mais é do que sua poesia reflexiva), a contraposição corpo/mente, que lembra a oposição kantiana entre entendimento Verstand e sensibilidade Sinnlichkeit, mas que a supera pelo pressuposto de um entendimento corporal:

Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que
é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o
entendimento do espírito.

Eu escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender, mas para
Incorporar
Entender é parede; procure ser uma árvore.
                 (212)

No “Glossário de transnominações”, Manoel de Barros apresenta e “define” alguns de seus “semas” ou “arquétipos”, que iriam povoar os livros por vir: “cisco”, “lesma”, “água”, “inseto”, “trapo”, “pedra”, “árvore”. Como um compositor (Bach, Beethoven, por exemplo, seus preferidos) que escreve uma centena de sinfonias, sonatas e fugas a partir de alguns poucos temas, fazendo-os variar, submentendo-os a uma série de inversões e reversões, de expansões e de contrapontos. Manoel parte desses temas, nos Arranjos para assobio (aliás, título tão musical quanto  para sConcerto a céu abertoolos de ave) para uma série cada vez mais numerosa de cadernos que se transformam, depois de desbastados, em uma dezena de livros. Se se voltar ao “Glossário”, encontraremos nele algo como uma série de matrizes: “Lesma: (...) indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo” (215); “Inseto: (...) Indivíduo com propensão a escória” (216); “Pedra: (...) Lugar de uma pessoa haver musgo”.

Septuagenário, e enfim reconhecido pela mídia (mas não pela crítica universitária, que custaria e custa a enfeixá-lo nas suas disciplinas e nas teorias sempre importadas com pressa e logo descartadas pelo crítico/pesquisador de plantão), o poeta que aparece no Livro de pré-coisas (1985) e no magistral O guardador de águas (1989) (livro que dialoga com Fernando Pessoa à mesma altura) já maneja a máquina da inversão com a sabedoria de quem sabe transformá-la em diversão – e, por isso mesmo, é capaz de atingir um público não universitário/acadêmico para a poesia. Trata-se de uma poesia que é capaz de rir de si mesma ao ser séria consigo mesma. Uma poesia sabedoria, na qual permanecem as duas formas essenciais de inversão, agora destiladas numa linguagem mais profunda e encantadora.

Retomando: a primeira inversão (desgramática), é aquela que dá conta de reposicionar o homem perante a natureza, o meio-ambiente, como se diz hoje, fazendo-nos pensar que esse lugar não deve ser de soberania e manipulação, e logo de um progresso destrutivo e aniquilador, mas de um reconhecimento de igualdade para com as coisas. Esse reconhecimento incide sobre a linguagem, logo, o novo modo de habitar a terra nos transforma em poetas:

No que um homem se torne coisal – corrompem-se nele os
   veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se nele uma agramaticalidade insana, que
   empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
   inauguramento de falas
Coisa tão velha quanto andar a pé.
Esses vareios do dizer.
           (298)

Como a inversão “empoema” a linguagem, figurando-a, através de um erro calculado – que não significa ignorar a norma culta, mas de aprender a errá-la conscientemente, de “errar o idioma ao dente”, como o poeta diz algures –, dando vazão à imagem, a figuração contamina também a própria estrutura da linguagem, que, por sua vez, sustenta estruturas de outra ordem:

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-la até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
(209)

O que mais se pode dizer, é que resta quase tudo a dizer a propósito da poesia de Manoel de Barros. Ou nada.

Adalberto Muller é professor de teoria da literatura e de literatura e cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF)