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Artigo
Claude Lévi-Strauss, Michel Pêcheux e o estruturalismo
Por Eni Puccinelli Orlandi
10/12/2009

Um autor como Lévi-Strauss tem certamente repercussões significativas para a epistemologia e a filosofia/história da ciência, assim como é inegável que sua posição no estruturalismo teve impacto decisivo no âmbito das ciências humanas, inclusive na linguística. Sobretudo no que diz respeito à questão da analisibilidade de seus objetos, que é o que vamos comentar a seguir.

Isso, de início, pela natureza de seu objeto de reflexão e suas análises, já que ele tinha que se confrontar com o “mito”. E a análise do mito colocava-lhe questões sobre o método – no caso, estrutural – que o fazia trabalhar nos limites do que propunha a linguística, que, por sua vez, se colocava, na época, enquanto ciência piloto das ciências humanas. Ele aceitou o desafio de dialogar com a linguística, na sua diferença.

Para melhor falar disso, vou tomar um excerto de um texto de M. Pêcheux, que coloca essa questão da língua, da estrutura e do texto, tendo em vista a questão de base, para a análise e para o estruturalismo, aquela que será a questão pivô das grandes discussões epistemológicas relativas ao estruturalismo: a do sentido. E de que Lévi- Strauss trata em sua introdução aos “Gatos”, escrito com R. Jakobson.

Falando sobre a análise estrutural do poema e a do mito, Lévi- Strauss afirmará o caráter diferencial que aí se apresenta, já que cada obra poética, considerada isoladamente, contém em si mesma suas variantes ordenadas sobre um eixo que pode-se representar como vertical formado por níveis superpostos (fonético, fonológico, sintático, semântico etc). Enquanto o mito pode ser interpretado só no nível semântico, e nesse caso, o sistema de variantes, indispensável para a análise estrutural, está dado por uma pluralidade de versões do próprio mito, ou seja, por um corte horizontal praticado no corpo do mito só no nível semântico (Lévi-Strauss e R. Jakobson,1962).

Aí está posta a questão do sentido, a do eixo paradigmático e sintagmático, e o da paráfrase e da polissemia, como eu tenho tratado em meus termos (E. Orlandi 1983). Trata-se, a meu ver, da questão do sentido colocada fora do idealismo subjetivista e do objetivismo abstrato. Ou como se diria na análise de discurso que se constitui nos anos de 1960: o sentido não é conteúdo. E, mais recentemente (anos 1980), o discurso é estrutura e acontecimento, sendo sua análise a que oscila em um batimento ritmado entre descrição e interpretação. Como pensar o sentido, nessa perspectiva discursiva que refiro, e que tem seus prolegômenos em questões presentes em um estruturalismo tal como o pratica Lévi-Strauss?

M. Pêcheux, discorrendo sobre aquilo que é logicamente estabilizado e o que é sujeito a equívoco (M. Pêcheux, 1988), vai propor que se pense em vários tipos de real, sendo um deles um real próprio às disciplinas de interpretação (diferente, por exemplo, do real da física). Por aí, diz o autor, é possível supor também um outro tipo de saber que não se reduz à ordem das “coisas-a-saber” ou a um tecido de tais coisas. Logo, diz ele, um real constitutivamente estranho à univocidade lógica e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos. É então que M. Pêcheux reflete sobre o estruturalismo: “o movimento intelectual que recebeu o nome de estruturalismo (tal como se desenvolveu na França, nos anos 1960, em torno da linguística, da antropologia, da filosofia, da política, da psicanálise) pode ser considerado, desse ponto de vista, como uma tentativa anti-positivista visando a levar em conta esse tipo de real, sobre o qual o pensamento vem dar, no entrecruzamento da linguagem e da história”. (M. Pêcheux, 1997).

O que, para a análise de discurso, tal como a concebe Pêcheux, essa reflexão desloca, põe em causa, são as evidências da ordem humana como estritamente bio-social. Há o simbólico, há o significante, há o inconsciente, há ideologia. E as disciplinas de interpretação não podem passar sobre essa não evidência. O estruturalismo o interessa, então, enquanto ele coloca em suspenso a produção de interpretações (como representações de conteúdos) em proveito, como ele diz, de uma pura descrição desses arranjos. Recusa, assim, ser uma “ciência régia”, essa que dá conta de tudo. O estruturalismo, nessa perspectiva, abala as evidências literárias da autenticidade do vivido e as certezas científicas do funcionalismo positivista. E isso pela simples afirmação, como a de Althusser, de que “foi a partir de Freud que começamos a suspeitar do que escutar, logo do que falar (e calar) quer dizer: que este “quer dizer” do falar e do escutar descobre, sob a inocência da fala e da escuta, a profundeza determinada de um fundo duplo, o “quer dizer” do discurso do inconsciente (...)”. E, como Pêcheux afirma que inconsciente e ideologia estão materialmente ligados, eu diria que esse fundo duplo é também constituído pela ideologia. O que Pêcheux resume dizendo que a revolução cultural estruturalista faz pesar uma suspeita absolutamente explícita sobre o registro do psicológico.

Continuando, dirá Pêcheux que, no entanto, esse movimento anti-narcísico balançava em outra forma de narcisia teórica: o da estrutura. E aí podemos pensar na inclinação estruturalista de reinscrever suas leituras no espaço de uma lógica conceptual: suspende a interpretação, mas oscila em uma espécie de sobre-interpretação estrutural (os arqui, os meta etc). Cai na tentação de um discurso sem sujeito, simulando os processos matemáticos, principalmente na linguística, dando-se ares de uma nova ciência régia negando sua posição de interpretação.

Está para mim aí o cerne da mudança de território que Pêcheux produz em relação ao estruturalismo, com a análise de discurso de quem é autor fundador: deixa de se atentar apenas aos Grandes Textos e se vai escutar as vozes cotidianas tomadas no ordinário do sentido, sem correr o risco que aí se aloja – o dos positivismos e filosofias da consciência – em separar o logicamente estabilizado do sujeito a equívoco. Ao contrário, é preciso construir procedimentos “capazes de abordar explicitamente o fato linguístico do equívoco como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico” (M. Pêcheux, ibid.). Em consequência, toda descrição permanece exposta intrinsecamente ao equívoco da língua. O enunciado é uma série de pontos de deriva oferecendo lugar à interpretação. Esta, a meu ver, é a afirmação mais cabal de M. Pêcheux para sair de um positivismo da estrutura, sua mudança de terreno radical no que tange à questão do sentido. A mais difícil de ser respondida pelas ciências humanas.

Pois bem, é aí que entra seu diálogo com Lévi-Strauss que anunciei acima e que assim se desenrola. Em seu livro de 1969, ao falar da necessidade e da possibilidade de se tomar o texto para análise, M. Pêcheux interroga a possibilidade da linguística responder certas questões, já que, para se constituir, ela as teve de deixar de lado. E entre elas está a questão do texto e, por ela, a do sujeito e da situação. Por outro lado, há uma exigência analítica fundamental, relativamente ao texto que é a de que não podemos reencontrar no resultado da análise a interpretação que já estaria posta na sua base. Em outras palavras, não pode haver encavalamento entre a função teórica do analista e a função prática do locutor. Deve haver um corte entre teoria e prática. E isso se dá se conseguimos passar da função para o funcionamento do objeto simbólico. Isso foi conseguido pela linguística ao preço de certos esquecimentos; a do sujeito e da situação, por exemplo. A análise de discurso põe então a questão para o texto. E essa questão é a que está posta por Lévi-Strauss quando ele diz: “Não há termo verdadeiro para a análise mítica, nenhuma unidade secreta que podemos apreender no final do nosso trabalho de decomposição. Os temas se desdobram ao infinito... consequentemente, a unidade do mito é sempre tendencial e projetiva, ela não reflete nunca um estado ou um momento do mito... Como os ritos, os mitos são in-termináveis. E, querendo imitar o movimento espontâneo do pensamento mítico, nosso empreendimento, ele também muito breve e muito longo, teve de se inclinar a suas exigências e respeitar seu ritmo. Assim, o livro sobre os mitos é, a seu modo, um mito” (1964, p.13).

Segundo M. Pêcheux, aí encontramos a harmonia pré-estabelecida entre o produtor e seu analista, como a que existe entre o homem que fala e o gramático. Funcionamento e função aí se avizinham. Para sair dessa posição, dirá Pêcheux que o problema concerne o modo de acesso ao objeto. E a questão a ser respondida é: que tipo de funcionamento podemos atribuir a nosso objeto? Como analisar o texto, assim concebido o processo analítico? E a resposta é mais simples do que podemos supor: ao invés de excluir o sujeito e a situação, como o fez a linguística para se constituir, basta construir uma teoria não subjetiva do sujeito e considerar que há uma relação constitutiva entre o texto e a situação, ou melhor dizendo, há uma relação constitutiva entre o texto e suas condições de produção. Essa é a ligação entre as condições e o processo de produção dos sentidos. Onde tanto o sujeito como a situação encontram seu lugar. Mas para isso é preciso mudar de terreno, sair do positivismo da estrutura e instalar-se em uma posição materialista, a que privilegia a ideia de processo e de articulação entre estrutura e acontecimento, trazendo o objeto para o modo de análise em que a descrição e a interpretação sofrem um batimento. Assim, ao invés de procurar a transparência, a abstração, o analista “expõe o olhar leitor à opacidade do texto” (sua materialidade). Como tenho dito, sua espessura semântica. E o que se busca compreender é o movimento da interpretação, mediada pela descrição.

Concluindo, não se atravessa o texto para encontrar atrás dele um sentido a ser extraído. É na sua materialidade mesma que se encontra o sentido. O estudo da ligação, dirá o autor, entre as circunstâncias de um discurso – suas condições de produção – e seu processo de produção é fundamental, sendo estas concebidas como o pano de fundo específico dos discursos, que tornam possível sua formulação e sua compreensão.

Ou seja, em uma teoria não subjetiva do sujeito – isto é, em que ele não se apresenta como origem de si – é justamente a ligação constitutiva entre o texto e a situação que permite a analisibilidade. Dito de outro modo, é porque o texto tem uma materialidade em que estão inscritas suas condições de produção (sujeito e situação) que ele é analisável, isto é, que se pode separar prática e teoria e que se pode compreender como um texto funciona na produção de sentidos.

Como vemos, a reflexão de M. Pêcheux inclui necessariamente a passagem pelo que diz Lévi-Strauss sobre o mito, ou sobre o diferencial entre literatura e mito na análise estrutural. E essa é a pista dada à análise de discurso para que se pense a relação sujeito/história/sentido na perspectiva em que se torna possível analisar o funcionamento discursivo e, assim, estabelecer uma relação analítica, de compreensão, com a interpretação.

Eni Puccinelli Orlandi é professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.