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Reportagem
As consequências sociais das tormentas
Por Carolina Octaviano
10/04/2010

Tsunamis, vendavais, vulcões em erupção, furacões, ao atingirem a vida de pessoais reais têm um impacto muito mais radical do que as imagens de um telejornal ou mesmo a dramatização de uma grande produção hollywoodiana podem traduzir. A tragédia não cessa com o “boa noite” do apresentador do noticiário ou com o “the end” da produção cinematográfica, mas se estende por vidas marcadas permanentemente.

O sentimento é de dor e angústia, invariavelmente. Há pessoas que perdem tudo: casa, família, amigos, colegas e, muitas vezes, o pouco que elas têm. Após os estragos financeiros, psicológicos e físicos, sobra apenas a certeza de que é impossível, de qualquer modo, sair imune e ileso. Não é à toa que esse tipo de situação acaba se tornando um marco na vida e na história dessas pessoas e dos locais afetados pelas tormentas, como é o caso do Chile, por exemplo, vítima de três grandes abalos sísmicos (em 1960, 1985 e o último, em 2010, cuja preparação da população acabou amenizando impactos e salvando milhares de vidas).

É comum, ao analisar as consequências das chamadas tormentas, perceber que, na maioria dos casos, a população com menor poder aquisitivo é a que mais sofre. Uma das explicações para isso é o fato de que a configuração do espaço urbano se dá a partir de aspectos socioeconômicos. Em outras palavras, as classes menos favorecidas acabam ocupando áreas de risco como margens de rio, pedreiras abandonadas, beiras de barrancos ou montanhas, entre outras, que estão mais suscetíveis às catástrofes naturais. “As populações mais pobres se colocam em áreas com maiores problemas aumentando a susceptibilidade, tem pouca capacidade de intervir de forma adequada no meio e isso aumenta a vulnerabilidade. São pouco preparadas para enfrentar os desastres”, afirma o doutor em geociências, Luís Eduardo de Souza Robaina.

Segundo ele, o crescimento desordenado das cidades representa um papel significativo para isso. “O crescimento das cidades se dá controlado por interesses econômicos vigentes a cada momento histórico. Dessa forma, as populações excluídas do crescimento formal e a ineficiente intervenção do Estado produzem ocupações em áreas inadequadas, falta de infra-estrutura e aumento da possibilidade de desastres naturais”. O que implica que os espaços devem ser planejados a conviver com esses eventos sem que estes causem perdas significativas. “Atualmente, são urgentes estudos sobre susceptibilidade para conhecer o problema, mapeamento de áreas de risco e um planejamento que estabeleça intervenções para minimizar as consequências dos eventos; e, também, ações para combater a falta de moradias populares”.

O pesquisador relembra ainda a importância da prevenção e da preparação para as tormentas, como forma de amenizar os impactos causados por elas. E diz que, portanto, é preciso um preparo da população para esse tipo de situação adversa. “Um terremoto no Irã e um terremoto no Japão tem consequências muito menores no segundo, pois o pós-desastre é tanto maior quanto menor for a preparação pré-desastre”, completa.

No Haiti, campeão em pobreza, solidariedade foi importante

O recomeço é, na maioria das vezes, um processo que ocorre de maneira lenta e que requer ajuda externa, como é o caso do Haiti, país que além de sofrer com a pobreza extrema da população também foi vítima de um terremoto de magnitude 7,0 graus na escala Richter, em 12 de janeiro deste ano. O episódio vitimou cerca de 270 mil pessoas e acabou sensibilizando a opinião pública mundial, chamando a atenção para os problemas já existentes e que se agravaram. Depois da devastação, fica difícil escutar o refrão da música de Caetano Veloso intitulada “Haiti”, da mesma maneira: “Pense no Haiti; Reze pelo Haiti”.

Pesquisadores em Porto Príncipe, durante o terremoto

Um grupo de pesquisadores o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) realizava um trabalho antropológico de campo na capital do Haiti, Porto Príncipe, no momento em que o abalo sísmico ocorreu. A equipe, liderada pelo professor de antropologia social, Omar Ribeiro Thomaz, foi composta pelos alunos Marcos Pedro Magalhães Rosa, Daniel Felipe Quaresma dos Santos, Otávio Calegari Jorge, Diego Nespolon Bertazzoli e Rodrigo Charafeddine Bulamah (da graduação em Ciências Sociais), Werner Garbers Elias Pereira (do Instituto de Estudos da Linguagem) e Joanna da Hora (mestranda em antropologia social). Eles relatam o antes, o durante e o depois da tragédia. “O chão, que a princípio é nossa referência mais sólida, chacoalhava em ondas. Antes do fim dos tremores a população imediatamente começou a gritar aos céus, clamando por Deus e Jesus, e a correria era intensa”, conta Bertazzoli, afirmando que o cenário ao qual foram remetidos era algo parecido ao de um filme hollywoodiano de catástrofe. Ele recorda ainda que, logo após o ocorrido, era possível observar as pessoas se ajudando, ao mesmo tempo em que percebiam que o país que era motivo de tanto orgulho estava completamente arrasado.

Magalhães Rosa afirma que, nessas situações, a vida adquire um sentido maior do que a própria morte. “O cheiro da rua, a morte por todos os lados e a força dos haitianos deixavam pequena a lembrança de ter sobrevivido ao terremoto. A vida se mostrava muito mais urgente que o medo ou a destruição”, complementa. Nesse sentido, Joanna da Hora comenta que vivenciou uma situação cuja sobrevivência é derivada da sorte: “O que posso afirmar com segurança é que compartilhamos uma experiência sem possibilidade de tradução. Fotografias, vídeos, relatos e análises, por mais dedicadas que sejam, não traduzem o horror e o sublime que sentimos naqueles dias”. A catástrofe não foi somente natural, ela também foi social, de acordo com Bulamah. “Particularmente, pela grandiosidade única da catástrofe e pela importância que Porto Príncipe tem no país, é difícil encontrar algum haitiano ou haitiana que, mesmo morando em alguma outra cidade do norte ou do sul, não tenha tido parte da sua família afetada”. A instituição familiar foi crucial na tentativa de voltar ao estado de normalidade.

Outra questão abordada pelos pesquisadores está ligada à divulgação da mídia da tragédia haitiana. Para Joanna da Hora, a cobertura foi avessa e falaciosa e os meios foram incapazes de reproduzir a realidade vista nas ruas de Porto Príncipe: a cooperação e organização quase que instantânea do povo haitiano. “Saíamos nas ruas e víamos certas coisas, os jornais relatavam o oposto. E o episódio se repetia a cada dia que passava. Como vangloriar-se de uma ajuda internacional que estava evidentemente ausente? Que imagens eram aquelas de violência e medo que não correspondiam, em absoluto, com o que presenciávamos?”, questiona.

Estaria enganado quem pensa que a ajuda externa e internacional se dará de modo a reconstruir a vida dos haitianos, isso porque seria possível afirmar que o enfoque da cooperação internacional não atinge diretamente ao povo. “Nada parece sobrar para os haitianos. Aliás, sobram empregos em ONGs ou em fábricas têxteis que pagam salários de fome e que têm toda a produção destinada aos EUA. Não há como acreditar que o grande agente da recuperação vai ser a ajuda internacional; e, enquanto isso, os haitianos e haitianas continuam fazendo o que podem para continuar sobrevivendo”, explica Bulamah. Nesse sentido declarou um haitiano ao jornal da República Dominicana, El País, quando questionado sobre a eficiência da ajuda externa: “A ajuda não se vê, não se come e não se bebe, só se escuta falar”, revelando uma situação de abandono.

“O que pudemos presenciar nas ruas de Porto Príncipe, após o terremoto, foram haitianos ajudando haitianos. Só para se ter uma ideia, a Minustah – milícia da Organização das Nações Unidas (ONU) que tem como objetivo garantir a estabilização política do país - é apelidada por muitos haitianos de ‘turistah', pois os funcionários da missão vivem la belle vie e não fazem parte do cotidiano do país”, corrobora Calegari Jorge.

Para retornar ao que era antes, conforme dados divulgados pela Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), serão necessários 11,4 bilhões de dólares. Segundo estimativas do governo haitiano, 75% da capital foi destruída. “Cabe destacar que os 12 bilhões já anunciados não teriam mais do que o objetivo de fazer com que o país retornasse à situação anterior ao terremoto - isto é – de manter o país como o mais miserável da América”, comenta Calegari Jorge.

Nas últimas semanas, foi divulgado que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) deverá perdoar parte da dívida haitiana, que é calculada em 479 milhões de dólares. Foi anunciado também que será disponibilizado, ao governo do Haiti, dois bilhões de dólares em linhas de créditos, o que, para o pesquisador, representa que “Em resumo, as mesmas instituições responsáveis pela mazela do país durante os últimos trinta anos, pelo menos, serão as mesmas a fazer ‘esforços' para reconstruir (endividar) este país”, o que representaria um paradoxo e um círculo vicioso. “Não tenho dúvidas de que a ocupação do Haiti hoje visa manter o país sob controle total dos países interessados em sua mão-de-obra, sua posição estratégica e suas possíveis bacias de petróleo”, completa.

Certamente, o que foi presenciado pelos haitianos pode ser considerado um marco na vida deles. Magalhães Rosa ressalta que essa não foi a primeira tormenta da qual o país foi vítima e, em todas as vezes, o país conseguiu se reerguer. Ele dá como exemplo um dos principais símbolos políticos do país. “A imagem dos heróis da pátria, próximo ao Palácio Nacional, com suas bandeiras recolhidas ou a meio mastro, é bastante significativa, pois demonstra uma preocupação com algo que sobrevive até mesmo a uma tragédia desta magnitude. A mesma força que inspirou os heróis de sua pátria parece ainda viver e, se as bandeiras estão a meio mastro, significa que ainda há um sentido para elas se manterem erguidas”, conclui.