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Artigo
Duplo aniversário
Por Maria Lygia Quartim de Moraes
10/06/2010

Sobre os aniversariantes: a pílula e o exame de DNA

Em 2010 as mulheres festejam o aniversário de duas descobertas científicas que transformaram suas vidas. A primeira delas é a pílula anticoncepcional que, não obstante os riscos que o uso prolongado pode acarretar, possibilitou um maior controle feminino sobre o uso de seu corpo. A partir de então, as mulheres puderem exercer sua sexualidade sem os riscos de uma gravidez indesejada. A pílula passou a ser vendida em escala industrial há 50 anos atrás.

A segunda delas é da descoberta do DNA cujas repercussões sobre a vida das mulheres é ainda mais poderosa pois incide também sobre direitos de filiação. Na verdade, o DNA foi descoberto há 57 anos, mas a criação do exame, que permite analisar o material genético contido nas células, ocorreu há 25 anos. Segundo as leis brasileiras, no momento em que os homens não puderam mais contestar a paternidade após comprovação do DNA acabou-se, também, o fardo que as mulheres carregaram historicamente de serem mães de filhos "sem pai", vale dizer, de filhos que levariam para o resto de suas vidas o estigma da ilegitimidade.  

Recordando o passado

Nos últimos 50 anos, um conjunto de circunstâncias relacionadas à crescente urbanização do país e às profundas transformações da economia brasileira alteraram usos e costumes, projetos de vida e valores. As regras morais eram ditadas pela Igreja Católica, que impunha seus preceitos através das escolas e púlpitos. A moral sexual cristã impregnava todas aquelas instituições que deveriam ser laicas, tornando o catecismo matéria obrigatória, estigmatizando as mulheres que se separavam do marido e condenando a sexualidade desligada de fins reprodutivos.

A convivência entre meninos e meninas era dificultada pela prática das escolas católicas de dividir as turmas por sexo, segregando-as. Era mais um fator que reproduzia a educação de meninas reprimidas sexualmente, educadas para os afazeres domésticos, sem direito à educação formal e alijadas das carreiras profissionais de prestígio, como medicina, engenharia e advocacia.

Com o avanço da industrialização e a universalização do trabalho assalariado, uma série de transformações afetaram as relações sociais e familiares. A rapidez das transformações econômicas provocou enorme impacto sobre o antigo modelo familiar, com um número de mulheres cada vez maior ingressando no mercado de trabalho. Aos poucos, as mulheres foram alcançando sua autonomia financeira, rompendo com um dos elos mais fortes do modelo tradicional de família: a subordinação econômica da esposa ao marido.

A presença crescente das mulheres nos locais de trabalhos e nos transportes públicos aumentou o convívio entre os dois sexos nos espaços urbanos, diversificando o horizonte e as perspectivas das mulheres. Através da democratização do acesso ao serviço público, com os concursos, as mulheres puderam ocupar postos com garantias de cumprimento das leis.

No começo do século XX as pessoas viviam em média 33 anos. Como as famílias eram numerosas, com cerca de seis filhos, o casamento constituía uma espécie de ocupação inexorável para as mulheres, cuja vida se consumia entre a maternidade e a casa. O modelo tradicional de família estava baseado numa divisão rígida de papéis: o homem era designado como “chefe da família” e a mulher, sua “principal auxiliar”, estava em situação de inferioridade jurídica. Ao homem cabia zelar pelo sustento material da família, enquanto o cuidado com os filhos e os afazeres domésticos cabiam às mulheres.

Hoje, a esperança de vida dobrou e o novo padrão de família é bem menor, com cerca de duas crianças por mulher em idade reprodutiva. A queda da taxa de fecundidade feminina implicou na diminuição do tamanho das famílias, acompanhando as tendências mundiais. Em todo o Brasil o comportamento sócio-demográfico do conjunto da população apresenta as mesmas características de redução do tamanho da família, crescimento do número de famílias chefiadas por mulheres, novos arranjos familiares e envelhecimento da população.

As várias dimensões do feminismo

Vou definir o feminismo como a manifestação política do mal-estar das mulheres com as descriminações e desigualdades sociais que enfrentam pelo simples fato de terem nascido com o sexo feminino. Esse mal-estar transformou-se em militância quando as mulheres conquistaram sua autonomia econômica, mesmo que enfrentando discriminações nos locais de trabalho e menores salários. Depois, com a democratização do ensino superior, foi possível a entrada de um contingente cada vez maior de mulheres nas universidades.

No Brasil, as lutas sociais foram criminalizadas com a ditadura militar, que se iniciou em 1964 e que se notabilizou pelo emprego da tortura e da violência. Sindicatos, universidades e instituições suspeitas de oposição foram invadidos e cerceados. A imprensa e a mídia submetidas à censura política, a liberdade de organização foi vetada. Foram os anos de chumbo, que deixaram inúmeros mortos e desaparecidos entre os militantes da oposição.

O movimento feminista, desde seu início, aparece comprometido com a luta pelas “liberdades democráticas” e com a luta pela anistia. A declaração oficial da ONU, batizando 1975 como “Ano Internacional da Mulher”, constitui uma referência fundamental para a compreensão do movimento de mulheres no Brasil até os dias de hoje. As comemorações do Ano Internacional da Mulher permitiram que as mulheres, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, pudessem falar de seus problemas específicos e dar os primeiros passos no sentido de ampliar esse debate para outros setores sociais.

Por ocasião das primeiras eleições livres, em 1982, a oposição ganhou o governo do estado de São Paulo e, pela primeira vez, foi criado o Conselho da Condição Feminina, que teve importante atuação na luta pelos direitos da mulher. Em 1985 foi criada, na cidade de São Paulo, a primeira Delegacia Especializada da Mulher. Uma das principais dificuldades da mulher vítima da violência masculina é ter de se submeter aos exames de corpo de delito e outros constrangimentos numa delegacia comum. Daí a importância histórica de tais delegacias, que se espalham aos poucos por todo o país. 

Desdobramentos do feminismo

As sementes plantadas pelas feministas deitaram várias outras raízes, como se observa tanto no tocante à ampliação da oferta de creches, quanto nas importantes mudanças da legislação, incorporadas à Constituição de 1988, uma das mais avançadas do mundo. Conforme mencionamos, as mulheres passaram a ter os mesmos direitos que os homens no interior da família, houve o reconhecimento legal das uniões conjugais de fato e os direitos da concubina. No que diz respeito ao trabalho, é importante assinalar os direitos conquistados pelas empregadas domésticas, segundo maior contingente ocupacional feminino no Brasil. Ademais, o exame de aferição de paternidade e o respeito à palavra da mulher no momento do registro civil foram duros golpes no patriarcalismo, nivelando os direitos de filhos nascidos dentro dos casamentos legais aos das uniões consensuais e encontros amorosos.

Essas conquistas legais indicam como o lugar da mulher na família difere radicalmente da subordinação da mulher ao homem estipulada pelas leis anteriores. Além de equiparar a mulher ao homem, com respeito ao poder familiar, as alterações legais foram de ordem a proteger ainda mais a maternidade, dando à mulher a responsabilidade da declaração do nome do pai.

Concluindo

A condição da mulher transformou-se profundamente na maior parte dos países do mundo ocidental. No Brasil, com o advento da pílula e a luta pelos direitos reprodutivos, mulheres vivem cada vez mais, com menor número de filhos, com um leque de possibilidades e opções sexo-afetivas. Ao mesmo tempo, apesar das conquistas jurídicas obtidas nos lugares do mundo ocidental onde o feminismo foi atuante, as mudanças se dão nos limites das sociedades de classe e, numa sociedade tão desigual quanto a brasileira, as oportunidades e possibilidades são limitadas, transformando o sonho de ser modelo ou esportista de sucesso no grande ideal dos adolescentes. Outra consequência do fundamentalismo do mercado são as crescentes taxas de desemprego disfarçado ou subemprego. A maior pobreza das mulheres implica, entre outras coisas, que elas sejam as mais atingidas pela (falta de) qualidade dos serviços públicos; mais desfavorecidas pela incompetência da Justiça (atrasos nas pensões etc.). Vale dizer, a questão estratégica dos direitos de seguridade social afeta principalmente as mulheres pobres.

Finalmente, há que lamentar a ausência de valores republicanos e laicos, apesar da separação formal entre Estados e Igrejas. O fato de que as lutas políticas assumam, hoje, também a forma de lutas religiosas tem como pressuposto a inexistência de sistemas morais alternativos aos religiosos. Assim, permanecemos na esfera do pecado, dos crimes cometidos contra a vontade divina. A instituição religiosa continua sendo a matriz da moralidade pública. Nesse contexto, não há que se estranhar o interdito da legalização do aborto em toda a América Latina, com exceção de Cuba e, muito recentemente, o Uruguai.

Na Itália, nos anos 1970, a esquerda uniu-se, apoiou as feministas, enfrentou o Papa e venceu. Divórcio e aborto foram legalizados. No Brasil, foi necessário que um ditador protestante, o general Geisel, que não suportava a Igreja Católica, impusesse o divórcio, em 1977. Mas permanecem as restrições legais ao aborto, ao mesmo tempo em que prospera a indústria de aborto clandestino e todo o ciclo de corrupção: policiais que fecham os olhos para as clínicas de aborto de quem pode pagar e mulheres pobres que arriscam a vida na mão de aborteiros sem formação médica. E aqui temos o círculo vicioso: as igrejas são as fontes de moral face ao abandono do Estado; e as igrejas são contra o aborto, que as mulheres pobres fazem em piores condições e ainda pedem perdão ao padre. Nesse sentido, é necessário questionar o fiasco brasileiro em enfrentar o poder da Igreja e ressaltar a importância das virtudes republicanas, do sentido da coisa pública. Depois da pílula e do exame de DNA a luta é contra o aborto clandestino.

Maria Lygia Quartim de Moraes é professora titular de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do CNPq.