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Artigo
Redes sociais, linguagem e disputas simbólicas
Por Adriana Amaral
10/09/2011

Frequentemente ouvimos pseudo-especialistas e marketeiros utilizando jargões como inteligência coletiva e facilidade de publicação e compartilhamento com o intuito de simplificar os processos simbólicos e sociais que atravessam os sites de redes sociais. Esse senso comum que perpassa publicações jornalísticas, em matérias ao estilo “10 dicas de como usar o Twitter”, por exemplo, desconsidera o papel do sujeito, os diferentes níveis de familiaridade com as ferramentas e com o próprio conhecimento das diferentes linguagens e atores sociais que perpassam as redes digitais.

É preciso, em primeiro lugar, questionar e problematizar de “qual internet” ou de qual rede social estamos falando, para não incorrermos no julgamento de “casos extremos” ou da linguagem relacionada a um determinado grupo social como o “dominante”. Os espaços da internet são múltiplos e diversos, incluindo uma ampla variedade de atores sociais, subculturas, classes sociais e nichos que não estão nem um pouco desconectados do “mundo offline”; muito pelo contrário, se atravessam em processos e fluxos comunicacionais de contiguidade e de disputa simbólica.

Nancy Baym (2010) indica que um erro na análise da linguagem da internet e das culturas a ela relacionadas é compará-la à linguagem face a face. Essa comparação gera apenas um discurso estéril que coloca o fator presença como mais “autêntico” na habilidade de representar sentimentos e emoções, desconsiderando outros modos e habilidades comunicacionais, como, por exemplo, o compartilhamento de conteúdo multimidiático (músicas, textos, imagens etc) e o uso criativo de emoticons (sinais gráficos que representam expressões como sorrisos, irritação, afeto, entre outros).

A partir de um breve resgate da história dos usos e apropriações da internet, diversos autores, como Judith Donath e Nancy Baym, por exemplo, apontam que o caráter lúdico e transgressor da linguagem utilizado nas primeiras comunidades online, fóruns e BBSs eram caracterizados pelo humor ácido representado através dos emoticons e de práticas culturais como “trolling” – em português, “trollagem” (o ato de sistematicamente desestabilizar uma discussão provocando as pessoas envolvidas no grupo).

Um bom exemplo seria o acréscimo da letra Z ou uma utilização de palavras que soam como um ronronar típico dos gatos, que gera o humor dos LOLCats, caracterizado por uma imagem que combina uma fotografia de um gato com um texto humorístico, cuja grafia é propositalmente incorreta, parodiando os erros da gramática da internet. LOLcat é um palavra composta da abreviatura LOL (Laugh Out Loud, que em português significa "rindo muito alto").

O termo troll, por sua vez, “começou a ser utilizado a partir de fóruns e listas de discussões nos primórdios da internet, e o termo foi baseado no troll do folclore escandinavo, um ser horrendo e anti-social que aparece nos contos infantis. A primeira referência à palavra troll no contexto de anonimato na rede pode ser encontrado no arquivo da Google Usenet e foi empregado pelo usuário Mark Miller, em 08 de fevereiro de 1990” (Amaral & Quadros, 2006).

Esse tipo específico de linguagem irônica estava associada, sobretudo, à identidade dos primeiros usuários, bastante vinculados à cultura nerd (Fontanella, 2011) dos primórdios da rede. No entanto, à medida que a popularização e a monetarização aumenta, sobretudo com a ideia mercadológica de Web 2.0, se amplia a participação de um maior número de grupos sociais e constroem-se discursos que tendem a minimizar ou repudiar determinadas práticas, levando-as a um certo nível de marginalidade em fóruns de nicho, como, por exemplo, o 4Chan, fonte de boa parte dos memes da internet, como os próprios LOLCats citados acima e o desenho da máscara para a cara de troll (trollface).

 



Com o aumento crescente das funções de linguagem nas redes sociais, a Web 3.0, ou Web Semântica, é incorporada ao cotidiano através do uso das tags e da vinculação de funções ao próprio sistema (como no caso de digitar o @ e o nome do amigo no Facebook ou utilizar o # antes de uma hashtag no Twitter), complexificando os usos e apropriações das mesmas. Por um lado, há um aprendizado e uma cognição específicas que devem ser potencializadas e apreendidas e, por outro lado, percebemos apropriações criativas que só fazem sentido dentro de um determinado contexto e que trabalham com níveis diferentes de intertextualidades e referências que só podem ser compreendidas na imersão e na vivência cotidiana de tais dinâmicas: o conhecimento arqueológico dos memes, dos virais, das gírias e até mesmo das funcionalidades e ferramentas funcionam como moeda de disputa do capital social dos usuários mais familiarizados com os menos familiarizados.

Tais funções e práticas da linguagem nos sites de redes sociais permitem que grupos aparentemente tão distintos como os ciberativistas políticos e fãs de algum determinado artista teen mobilizem-se com o mesmo ardor em torno da tentativa de colocar a sua hashtag no Twitter. Antoun e Malini (2011), por exemplo, abordam as práticas de resistência dos ativistas, sobretudo, no caso da censura à hashtag #wikileaks pelo Twitter. Os autores classificam tais mobilizações foucaultianamente como biolutas na cibercultura, demonstrando que as disputas estão nas ruas e nas redes de forma concomitante.

Já os fãs e anti-fãs de artistas voltados a um público infanto-juvenil, como Justin Bieber, Restart ou Luan Santana, buscam a visibilidade dos ídolos e se organizam sistematicamente de forma a banir as hashtags negativas sobre os mesmos, repercutindo diretamente em mudanças no algoritmo dessa rede e na edição dos trending topics, conforme indicou o executivo-chefe do Twitter, Dick Constolo, em entrevista recente na Folha de S. Paulo. As próprias bandas, conscientes do uso das tags pelos fãs, já procuram formas de incentivar esse engajamento como forma de visibilidade, convocando os fãs a utilizarem as hashtags em determinados dias da semana ou horários.

Outros dois exemplos interessantes para pensarmos a linguagem das redes sociais também estão relacionados à construção de identidade, seja pela vinculação a uma disputa de classe social, seja pela popularização da linguagem da subcultura gay na internet, sobretudo através de blogs e twitters de personagens como a blogueira “Katylene”.

Em termos de classe social, percebe-se a utilização do termo “orkutizar” como um verbo para se referir pejorativamente a um tipo de postagem de conteúdo e a práticas da classe C no Orkut. O uso de tags com #todaschora, #corrao ou #bonsdrinks propositalmente escritos de forma errada também remete a essa percepção, mas ressignificado em um contexto de apropriação criativa que legitima quem utiliza tais tags como “atualizado com a linguagem das redes”. A tag #classemediasofre e o tumblr (microblog) que mostra postagens via Facebook e Twitter de momentos de percepção de um ethos relacionado a uma determinada classe social é também ressignificado de forma irônica, indicando por vezes uma vinculação a esse grupo e uma percepção da própria condição social do sujeito que reclama do preço de um iPad no Brasil comparando-o com os Estados Unidos, por exemplo.

Já a linguagem da subcultura gay foi difundida no contexto urbano dos clubs e boates LGBT a partir do final dos anos 80 e anos 90, mas ganha novas conotações e significados em sua inserção nas redes sociais, com um vocabulário e grafias que emulam a forma vocal da palavra como “buatchy” (boate) ou “shorey litroz de glitter” (expressão indicativa de contentamento e adoração a um determinado fato). Tais termos têm sido disseminados, sobretudo, através de blogs e redes sociais que valorizam e tornam visíveis a cultura gay através do humor, e recentemente figuraram até mesmo na novela das 21h mais recente da Globo, produto midiático considerado por muitos autores como “agente central do debate sobre a cultura brasileira e a identidade do país” (Lopes, 2003).

Assim, percebe-se que a disputa simbólica pelo espaço das redes é uma disputa de diferentes identidades e grupos sociais em suas demarcações de “territórios” através de estratégias de linguagens características. Nesse contexto, há uma ressignificação das práticas comunicacionais dentro e fora da própria internet em um fluxo de reconfigurações que só pode ser apreendido enquanto fenômeno a partir da diversidade cultural e de suas ressonâncias nas sociabilidades envolvidas nas ruas. O mundo codificado das redes digitais “influencia nossa vida com mais intensidade do que tendemos habitualmente a aceitar” (Flusser, 2007, p.127).

Adriana Amaral é docente do programa de pós-graduação em ciências da comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pesquisadora de produtividade do CNPq.

Referências bibliográficas:

Amaral, A.; Quadros, C. Agruras do blog: o jornalismo cor-de-rosa no ciberespaço. Razón y Palabra, v. 53, p. 03, México, 2006. Disponível em: http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n53/amaralquadros.html

Baym, N. Personal connections in the digital age. Cambridge: Polity Press, 2010.

Donath, J. "Identity and deception in the virtual community". In: Kolloch, P. e Smith, M. Communities in cyberspace. Londres, Reino Unido: Routledge, 1998. Disponível em: http://smg.media.mit.edu/papers/Donath/IdentityDeception/IdentityDeception.pdf. Acesso 05/07/2006.

Flusser, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. SP: Cosac-Naify, 2007.

Fontanella, F. "Bem vindo à internets: os subterrâneos da internet e a cibercultura vernacular". Anais do GP de Cibercultura do XI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2011.

Lopes, M. I. V. "Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Revista Comunicação & Educação, São Paulo, v. 1, n. 26, p. 17-34, 2003.

Martins, L. "Usuários do Twitter se mobilizam para emplacar assuntos". Folha de S. Paulo, 11/08/2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/958215-usuarios-do-twitter-se-mobilizam-para-emplacar-assuntos.shtml