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Artigo
Integração física, compartimentação e fragmentação política dos territórios
Por Márcio Cataia
10/11/2011

Por que o mundo não é uma bola de bilhar, liso, sem fronteiras políticas? Essa pergunta feita por um geógrafo, Jean Gottmann, na década de 1950, anima até hoje muitos espíritos nas ciências humanas e no mundo prático da política. 

Há um paradoxo colocado à existência do território político desde sua fundação moderna, com a Paz de Westphalia estabelecida na Europa em 1648. Quanto maior é a integração física do mundo, com o estabelecimento de redes de transporte e comunicações, maior é sua compartimentação em novas unidades territoriais políticas. Integração rima com compartimentação ou, em outras palavras, quanto maior o intercâmbio, mais fronteiras são construídas. À medida que caíram as barreiras físicas de acesso aos lugares, outras barreiras foram erguidas, as políticas. 

De fato, o território sempre suscitou referências identitárias, sociais, políticas, jurídicas e econômicas, acalorando debates sobre as nacionalidades, regiões e lugares que, circundados por fronteiras políticas, individualizam-se jurídica e politicamente. A exaltação política e a exatidão geométrica do território cristalizaram-se, sobretudo, a partir do século XVII. Até então, o território designava a zona que circundava uma cidade e que estava sob sua jurisdição. Como o Império Romano e a cristandade tinham pretensões de universalidade, o termo nunca se aplicou às suas jurisdições completas. O território ressurge nas cidades medievais italianas, mas o seu significado moderno, como área de exercício do poder de um Estado e não mais apenas de uma cidade, emerge quando Estado e soberania passam a compor uma única ordem territorial e as fronteiras que circunscrevem cada território passam a ser respeitadas internacionalmente. Portanto, apesar do termo território ter sua raiz no Império Romano, é somente a partir do século XVII que seu uso político passa a ser mais largo, especialmente em razão do Tratado de Westphalia. Segundo este tratado, cada Estado é soberano em seu território; consequentemente, as interferências nos assuntos internos de um país passam a ser reconhecidas como violação dos direitos internacionais. Assim, surgem na Europa as primeiras fronteiras modernas que demarcam os primeiros Estados-territoriais do mundo. 

A compartimentação do mundo em territórios nacionais resulta do problema fundamental da repartição e distribuição das coisas e pessoas segundo diferentes projetos de uso do espaço humanizado. A compartimentação começou com a circunscrição do primeiro campo, com a construção do primeiro limite e o traçado do primeiro caminho; de uma maneira geral, o espaço destinado ao trabalho é apropriado, delimitado, marcado. Toda forma de vida que se propagou sobre a Terra, sempre tomou a forma de um domínio, dotado de uma posição, uma configuração e um tamanho, um espaço de propagação, cujos pontos extremos são demarcados para a fixação daquilo que é interno e externo. Este é um dos paradoxos fundamentais do uso do território; ele é ao mesmo tempo compartido e dividido, pois os indivíduos se unem no espaço em função de seus projetos, mas também são obrigados a excluir outros para conseguir o mesmo fim. 

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada em 1945 com 51 membros. Em 1989 ela passou a ter 158 membros; em 2000, eram189; e hoje chega a 193 membros. A esse número podem ser agregados territórios independentes mas não reconhecidos e os Estados juridicamente reconhecidos mas de soberania limitada. Ainda que não tenhamos espaço neste pequeno texto para entrar no debate sobre os territórios independentes e os de soberania limitada (os quase-Estados), o que importa é constatar que o processo de compartimentação não está estancado, ou seja, aos 193 membros da ONU ainda teríamos que considerar muitas regiões que lutam por sua independência. O caso mais recente é o do Sudão do Sul, tornado independente depois de doze anos de guerra civil. 

Após a Segunda Guerra Mundial, a busca por soberania é o evento explicativo do processo de descolonização que culminou com a criação de um grande número de novos territórios nacionais. De 1946 a 1989 – antes do fim da União Soviética – quase uma centena de países foram criados como resultado da descolonização. Depois de 1989, a divisão da União Soviética é a maior responsável pela criação de novos territórios nacionais. 

Não há qualquer espaço da superfície terrestre que não tenha sido objeto de apropriação política segundo os critérios de Westphalia. Por isso, hoje, compartimentação é referida à divisão política de um território nacional já existente e que dá origem a uma nova nação, ou a novas nações, como ocorreu com a antiga União Soviética. Apesar dos traumas que, na maioria das vezes, envolvem o separatismo – do qual a Iugoslávia emerge como paradigma –, o surgimento de uma nova nação não implica em perda de soberania para o território cindido, tampouco para o território nascente. Com a compartimentação, a divisão multiplica o princípio da autodeterminação dos povos: a cada nova nação e sua soberania, seu território. São regiões que buscam soberania e, assim, reafirmam o princípio político fundamental de existência do Estado territorial moderno. 

Contudo, especialmente hoje, com a globalização econômica, aos processos de compartimentação somam-se os processos de fragmentação dos territórios. Com a globalização, a Terra é inteiramente compartimentada, e todo e qualquer pedaço da superfície se torna funcional às necessidades, usos e ambições de Estados e empresas transnacionais. Redefinida em função dos atributos do atual período, a compartimentação atual distingue-se daquela do passado recente na medida em que, hoje, à compartimentação associa-se o que Milton Santos chama de fragmentação do território. 

A velocidade é um dos atributos distintivos da atual globalização, sobretudo a velocidade aplicada à transmissão das informações que autoriza a constituição de um comércio planetário capitaneado pelas finanças. No centro das transformações mundiais encontram-se mutações nas condições de mobilidade relativa dos capitais, das técnicas e das pessoas, estas menos móveis. Para os agentes hegemônicos, aqueles que efetivamente têm poder de ação planetária, todas as possibilidades dessa circulação global são exploradas, mas para a maioria da humanidade, esse mundo fluido é apenas uma imagem. 

Ao acelerar a circulação dos capitais, a globalização revoluciona os horizontes temporais dos lugares atingidos pela aceleração, promovendo atritos entre os atores internos. Todavia, isso só pode ser realizado por meio de investimentos de longo prazo no meio ambiente construído, ou seja, sem territórios fluidos, a velocidade não pode ser realizada. Mas, apesar da porosidade das fronteiras dos territórios nacionais, há cada vez mais capital fixo no território, criando uma estrutura de recursos geograficamente organizada que inibe a livre trajetória das circulações. Como afirma David Harvey, a ideia de desmantelar infraestruturas urbanas e grandes obras de engenharia é sempre difícil; portanto, cria-se uma enorme contradição com a crescente necessidade de fluidez. Além disso, as novas circulações, sob o escudo da globalização econômica, exigem adaptações normativas dos territórios nacionais à suas equações de lucro. Veja-se o caso atual da crise na Grécia: a União Europeia – leia-se França e Alemanha – não aceita que a Grécia realize um plebiscito sobre um “pacote de ajuda financeira” ao país, que em outras palavras significa aprofundamento à adesão ao processo de globalização dos capitais. A soberania territorial grega é questionada e o país se fragmenta entre a aceitação incondicional à globalização e a sua recusa. 

Assim, formas e normas são permanentemente mobilizadas, buscando a ilusão de um planeta “liso”, sem fronteiras políticas, homogêneo. Por isso, do ponto de vista da circulação do capital, os territórios nacionais aparecem como uma inconveniência, uma barreira a ser superada, tanto materialmente quanto normativamente. O capitalismo é caracterizado por um esforço permanente de superação de todas as barreiras espaciais à circulação do capital. Tentando impor-se como norma, a globalização demanda formas para a aceleração da circulação; por isso hoje os lugares são “nervosos”: a todo o momento são exigidas adaptações materiais e legais que atritam com o espaço preexistente. 

As tentativas de homogeneização das sociedades, inerente à unificação da economia mundial, têm como corolário a fragmentação das mesmas, pois entre a razão mercantil que se expande e as culturas com seus desejos de afirmação e de pertença, as diferenças aumentam. A vocação transfronteiriça do mercado global se dá mediante processos que buscam a unificação de pontos de interesse do capital e não propriamente a união da totalidade do território. Por estas razões, os conflitos territoriais se exacerbam e a coexistência se torna conflitiva. De um lado, espaços extrovertidos, guiados pelos princípios do mercado global, e, de outro lado, a criação de novas formas de solidariedades domésticas, orientadas por princípios que escapam à racionalidade hegemônica. O caso da realização de grandes eventos esportivos no Brasil acaba de colocar em choque a soberania brasileira e as exigências da Federação Internacional de Futebol (Fifa) para a realização de tais eventos. Essa dialética entre uma racionalidade global, portadora de demandas homogeneizantes, e uma racionalidade nacional, portadora de demandas particulares, é motivo de tensão. 

Como também é motivo de tensão a “guerra fiscal”. Ela, como muitas pesquisas já mostraram, é, em verdade, uma guerra global entre lugares. As grandes corporações elegem nos territórios os pontos de seu interesse e, a partir daí, passam a exigir equipamentos locais e regionais adequados ao seu funcionamento. Além disso, exigem adaptações políticas, mediante a adoção de normas, legislações trabalhistas frouxas e aportes fiscais e financeiros. É a partir desses instrumentos que os lugares passam a concorrer entre si para atrair investimentos, obedecendo ao imperativo da competitividade. Sobretudo, trata-se de tornar o território mais fluido, com aportes informacionais modernos, para atender as demandas das empresas. Os colapsos institucionais (municipais e estaduais) não são menos importantes. Presos a engessadoras políticas de austeridade fiscal e alimentados pela crença de que orçamentos “enxutos” sempre são o melhor meio para uma cidade competitiva (eis a “guerra dos lugares”), reduzem-se os serviços públicos enquanto aumenta a concessão de subsídios fiscais, tributários e infraestruturais, segundo as equações de lucro de cada empresa. Aprisionado pela ideologia da competitividade territorial, os laços regionais nacionais são desconstruídos, e o território é cindido entre lugares concorrendo por investimentos. 

A maior inserção no mundo da globalização sem a consideração da soberania nacional enfraquece ainda mais os laços regionais. A inserção dos países nos novos contextos globais aumenta as diferenciações inter e intra-regionais, produzindo regiões alienadas ao capital internacional, ao mesmo tempo em que produzem-se novos bolsões de pobreza em regiões onde antes não existiam, em razão da absorção de um padrão de tecnificação caracterizado por uma margem crescente de desemprego estrutural (com a adoção de tecnologias poupadoras de força-de-trabalho). Essa alienação, aliada ao colapso do planejamento econômico nacional, tendencialmente fortalece opções de integração regional com o exterior, em detrimento das articulações inter-regionais. Essa “exogamia” coloca em risco as forças centrípetas que agiram para integrar o território nacional. 

A globalização hegemônica, conforme André Gorz, é referida ao imperativo da competitividade que afrouxa as coerções sociais, colocando aqueles Estados que aceitam a supremacia das leis do mercado a serviço da competitividade das empresas. Esse imperativo conduz ao divórcio entre os interesses do capital transnacional e aqueles do Estado nacional, referido à nação. O espaço político do Estado (que deveria abranger a totalidade do território nacional) e o espaço econômico das empresas (constituído por pontos, por fragmentos de interesse do capital transnacional) deixam de coincidir. Ao institucionalizar e materializar interesses do mercado (porque a fluidez requerida pelas empresas é normativa e também infraestrutural), o Estado ordena um território fluido para o mercado hegemônico, um território reticulado por interesses pontuais e setoriais. Ao realizar a política das empresas o Estado renuncia aos pactos de abrangência nacional para realizar pactos de abrangência pontual; para as empresas, a valorização do lugar tem a ver com os pontos de interesse de lucro e não com o entorno: os compartimentos não coincidem com os espaços reticulares de dominação das empresas. Aqui a globalização se inscreve no processo de dominação. 

Contudo, a globalização atual não se restringe à fragmentação, porque há processos em curso que promovem novas solidariedades entre povos e territórios. Por meio de integração solidária, obtida mediante solidariedades sociais, econômicas e culturais, grupos sociais sobrevivem em conjunto. Temporalidades internas, ou, contra-racionalidades, definem formas diversas de convivência com o meio geográfico, criadas a partir do próprio repertório de estratégias que os grupos territorializados desenvolvem ao longo de sua permanência nos lugares. Essas forças de permanência de um grupo, em coalescência com seu meio, para usar uma expressão de Max Sorre, resultam de ordens internas, apesar das influências e interdependências globais. Parte da força política dos movimentos que lutam pela preservação de suas formas de vida vieram de mobilizações internacionais, de ideias que, apesar de se realizarem localmente, compartilharam dos fundamentos mundiais do chamado “direito à diferença”. As forças de circulação exacerbadas neste período têm caráter de dissolução de hábitos, costumes e tradições que desorganizam a vida dos lugares, mas também são fontes de proposição de novas formas de convivência, novas iconografias, pois a realização cada vez mais densa do processo de globalização enseja o caldeamento, ainda que elementar, das filosofias produzidas nos diversos continentes. Aqui a globalização se inscreve, sobretudo, no processo de emancipação e busca desenhar uma nova federação de lugares, distante dos processos de fragmentação. Essa globalização age mais num mundo em que a velocidade não traduz a vida de relações dos lugares, tampouco a dominação é sua matriz. 

Esse recorte analítico orienta a distinguir entre as forças do mercado global, desorganizadoras da vida de relações e a força das ideias veiculadas por uma outra globalização, conforme Milton Santos. Sendo o nexo entre as forças globais e os lugares, os territórios nacionais solicitam pactos de abrangência também nacional e segundo parâmetros de um projeto que possa servir a todos, lugares e pessoas, de maneira mais justa e digna para evitar os processos de fragmentação. 

Marcio Cataia é professor no Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).