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Reportagem
Banalização de testes genéticos preocupa pesquisadores
Por Susana Dias e André Gardini
10/02/2006
Os testes genéticos estão se tornando um produto acessível e banal. Laboratórios espalhados pelo país oferecem a possibilidade de investigar a propensão a doenças futuras, como câncer de intestino e de mama, bem como diagnosticar má formação genética nos fetos já nas primeiras semanas de vida. Também é possível identificar se baixa estatura, desempenho sexual e perda gestacional podem ter causas associadas ao patrimônio genético. Resultados rápidos dos exames, precisos e tranqüilizadores é o que oferecem os laboratórios mas, para pesquisadores, a disseminação de testes genéticos no mercado e o impacto de seus resultados na vida das pessoas, têm sido preocupantes.

A crença ilimitada na tecnociência tem levado muitas pessoas a fazerem exames genéticos para identificar a possibilidade de terem algumas doenças no futuro, mas a identificação de genes “anormais” cria dilemas éticos. No caso do câncer de mama, por exemplo, aumentaram assustadoramente os casos de mulheres que retiraram as mamas como medida preventiva (o procedimento médico é chamado de mastectomia bilateral profilática). Essa prática é indicada e aprovada por grande parte da comunidade médica dos Estados Unidos. No Brasil, segundo a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Marlene Braz, esse procedimento não é recomendado pelos médicos, que ainda preferem fazer exames tradicionais, como apalpar os seios e as mamografias. “O diagnóstico genético não implica que se possa fazer algo que impeça o aparecimento do tumor”, alerta Braz. Além disso, a maioria dos casos de câncer de mama tem causas desconhecidas, e o gene que pode ser identificado nos testes genéticos – o BRCA1 mutado – é responsável por somente 5% a 7% dos casos registrados. Ou seja, mesmo que a mulher obtenha um resultado negativo, não há garantias de não devolver câncer no futuro.

Braz ressalta que “as pessoas que teoricamente necessitariam de cuidados médicos, não os procuram, enquanto os fóbicos, hipocondríacos e neuróticos são os que mais demandam” e os laboratórios têm encontrado nas pessoas com esse perfil um crescente mercado consumidor. Ao entrar no grupo de “risco genético”, muitas pessoas passam a fazer vários exames recorrentes, transformando suas vidas em uma verdadeira via crucis. O pânico de descobrir-se com alta propensão ao desenvolvimento de doenças que não têm cura ou que exigem uma vigilância exaustiva, como câncer, Alzeihmer, ou Huntington gerou casos de suicídio entre pacientes. Em sua pesquisa com mulheres que fizeram o teste para detectar o gene BRCA 1, realizada em 2001, Braz percebeu a existência de uma crença ilimitada na tecnociência, alimentada pelo jornalismo científico, como algo que daria conta, não apenas de diagnosticar um gene mutante, mas também de prevenir o câncer.

A vice-presidente da Sociedade Brasileira de Genética Clínica (SBGC), Dafne Dain Gandelman Horovitz alerta para a necessidade de um controle para abusos em relação aos testes genéticos. Ela conta que um grupo de geneticistas levou ao Comitê de Ética da SBGC a denúncia, publicada em jornais e revistas de grande circulação, de que uma clínica de emagrecimento oferecia testes para “risco cardiovascular”, ainda em desenvolvimento, como se fosse um check up comum e totalmente confiável. Da maneira como eram oferecidos, pacientes aceitavam fazer os exames sem refletir sobre a sua validade.

Nesse caso, a SBGC, que não tem poder de fiscalização, apenas emitiu uma notificação dizendo que aquele serviço não era recomendado, dadas às incertezas científicas. No entanto, Horovitz ressalta que falta um dispositivo legal, ou uma legislação que restrinja tal prática: “existem apenas normas e recomendações. O Projeto Diretrizes da AMB Associação Médica Brasileira lança algumas recomendações dentro de cada área que, espera-se, resultem na melhoria da qualidade dos procedimentos médicos, baseados em evidências científicas”.

Responsabilidade genética

O exame pré-natal, concebido para verificar e diagnosticar doenças e alterações que possam comprometer a saúde materna e fetal tem propiciado o contato das mulheres com o aconselhamento genético. Além das recomendações costumeiras é cada vez mais freqüente a indicação para a realização de testes genéticos para garantir o sucesso da gravidez, especialmente na rede particular. Tais exames são solicitados mesmo quando os testes tradicionais não sugerem a existência de qualquer problema com a criança ou com a mãe.

Daniela Ripoll, pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação e Ciência como Cultura (GEECC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acompanhou durante seu doutoramento várias sessões de aconselhamento genético. Para ela, as clínicas e hospitais atuam como instâncias educativas poderosas. Nelas as pessoas aprendem a ser “responsáveis geneticamente” por meio de uma “educação genética moral”. Ter filhos com más formações genéticas passa a ser uma (ir)responsabilidade da mulher e familiares, que devem aprender a não gerar filhos socialmente indesejáveis. “Antes, quando alguma criança sofria, tragicamente, dos efeitos de algum gene anormal ao nascer, podia-se atribuir tal fato a um desígnio de Deus, ou, então, culpar o destino ou a natureza. Ou seja: ninguém poderia ser culpado daquele sofrimento porque ninguém poderia ter feito nada para previni-lo”, analisa Ripoll.

Atualmente, parte-se do pressuposto de que o aconselhamento genético permitirá que as pessoas tomem decisões “conscientes”, “autônomas” e “responsáveis”, tanto no âmbito familiar quanto no âmbito da saúde pública. Nas sessões, as pessoas tomam conhecimento da probabilidade de apresentarem alguma doença genética ou, ainda, de seus filhos desenvolverem certas doenças. Espera-se, após a sessão, que os indivíduos tomem decisões acertadas, aprendendo assim a “gerenciar seus corpos” causando o menor prejuízo possível para a sociedade. Para tanto, mães e familiares devem considerar não apenas o custo emocional de ter uma criança com deficiência, mas os fardos sociais e econômicos de uma prole fora dos padrões de normalidade. Mas todas essas decisões precisam ser voluntárias. (Leia mais no artigo “Educando cidadãos e cidadãs geneticamente responsáveis através da prática do aconselhamento genético”).

O conceito de aconselhamento genético foi criado em 1947 pelo geneticista Sheldon Reed, em oposição a antigas práticas científicas em nome de uma “melhora racial”. A proposta de Reed era que ao conceito fosse atribuída uma conotação de neutralidade, desvinculada das práticas eugênicas.

Cristina Guilam, no artigo “Diagnóstico pré-natal e aconselhamento genético: algumas questões” que consta do livro recém-lançado Admirável nova genética, destaca que o ideal de neutralidade é o grande valor a ser defendido em oposição à eugenia. No entanto, a busca de um ideal de neutralidade nesse caso é fortemente questionada por pesquisadores que defendem não existir aconselhamento genético que não interfira nas escolhas reprodutivas, o que o aproximaria de um propósito eugênico. Há ainda autores que argumentam que a eugenia está longe de ser uma questão do passado, estando presente, por exemplo, nas testagens pré-natais. Segundo escreve Guilam, passar por um screening pré-natal para detectar uma condição particular, “expressa uma atribuição de valor social sobre a qualidade ou valor dos fetos e crianças, baseadas somente no seu material genético e cromossômico”.

Além da questão da neutralidade e não-diretividade, há uma outra dúvida que envolve o aconselhamento genético: as sessões devem ser coletivas ou individuais? Em um centro público de doação de sangue de Brasília, as pessoas que apresentavam o traço falciforme em seus exames, eram convidadas a participar de uma sessão coletiva de aconselhamento genético. Débora Diniz, no artigo “Confidencialidade, aconselhamento genético e saúde pública: um estudo de caso sobre o traço falciforme”, argumenta que o aconselhamento genético em grupo não preserva a privacidade dos doadores, e o sigilo das informações genéticas deixa de existir. O argumento do centro público de que a sessão coletiva gera conforto, uma vez que os pacientes se encontram em uma situação semelhante é hipotético, e jamais foi confrontada por qualquer análise sobre o efeito moral dessa prática na vida das pessoas. “O aconselhamento coletivo converte-se em um momento de extremo constrangimento para os doadores, pois não apenas traços de identidades genéticas são explicitados, mas informações sobre raça e reprodução são também negociados”, explica Diniz.


Formas de eugenia atuais

Uma das conseqüências mais visíveis e alarmantes do uso de testes genéticos pré-nascimento é o aumento no número de abortos no país. Pesquisadores da área de medicina genética têm argumentado que essas práticas não podem ser consideradas eugênicas, pois não se trata de escolher a cor da pele ou dos olhos das crianças, como defendiam os nazistas, mas de evitar a propagação de doenças ou anomalias, como a síndrome de Down e Turner. Além disso, as decisões caberiam às pessoas e não seriam impostas pelo Estado.

Para Ripoll, assistimos na atualidade um deslocamento de uma política eugênica de Estado, arbitrária, coercitiva e repressiva, que se utilizava da eutanásia, da esterilização e do extermínio, para uma política também eugênica, de estímulo ao comportamento e posicionamento responsável dos sujeitos frente ao seu genoma e a sua reprodução. “Assim, por mais detestável e repulsivo que esse pensamento pareça ser em princípio, não deixamos de ser eugênicos – somos eugênicos, hoje, de outras formas. Todos queremos bebês perfeitos e saudáveis, e muitos são os esforços feitos para que isso aconteça – aconselhamento genético, testagens e screenings genéticos, mais toda a parafernália de procedimentos e testagens pré e pós-natais, etc”, analisa.

Além disso, para Ripoll o foco na autonomia de decisão dos indivíduos desconsidera que as decisões das pessoas sejam influenciadas pela cultura, pela realidade econômica ou ainda pela pressão de amigos e familiares. Valores que são coletivos terminam configurando opções individuais de caráter eugênico, que são alcançados mesmo sem que os testes sejam obrigatórios ou impostos por lei.