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Reportagem
Um desafio de peso para as políticas públicas
Por Marta Avancini
10/02/2013

Quase metade da população adulta brasileira (48,5%) está acima do peso e 15,8% está obesa. Esses dados alarmantes são da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel Brasil 2011), publicada no ano passado pelo Ministério da Saúde, e apontam para um cenário em que a doença ganha contornos de epidemia no país.

"A exemplo do que ocorre em outras partes do mundo, principalmente países em desenvolvimento, o Brasil está vivendo um cenário de transição nutricional", explica Deborah Malta, diretora de Vigilância de Doenças e Agravos do Ministério da Saúde. Ou seja, se há pouco mais de uma década o principal problema brasileiro no campo da segurança alimentar era a desnutrição, hoje o cenário se inverteu com o avanço da obesidade, atingindo adultos, crianças e jovens.

Os números indicam que o problema vem se agravando ao longo do tempo. Em 2006, quando o Ministério da Saúde implantou a Vigitel Brasil com o apoio do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), eram 42,7% os brasileiros que estavam acima do peso e 11,4% podiam ser classificados como obesos. O problema atinge um pouco mais os homens do que as mulheres. O estudo aponta que, entre 2006 e 2011, a proporção de homens com sobrepeso passou de 47,3% para 52,6% e a de mulheres, de 38,8% para 44,7%.

O avanço da obesidade tem um impacto direto sobre a saúde pública, já que quanto maior a massa gordurosa adquirida e estocada no corpo, maior o risco associado com doenças correlatas, principalmente as chamadas doenças crônicas não transmissíveis (circulatórias, câncer, diabetes e respiratórias), que são as que mais matam no Brasil e no mundo - além do excesso de peso se associar também à esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado) e ao ovário policístico (desenvolvimento de cistos no ovário).

O sobrepeso também é prejudicial - e não apenas a obesidade -, pois a condição de estar acima do peso também configura um risco relativo de se contrair essas doenças, o qual tende a aumentar na mesma proporção que o aumento do peso. Pesquisas apontam uma correlação positiva de 2% entre sobrepeso e câncer de mama e de 66% entre obesidade e diabetes. O Ministério da Saúde estima que sejam gastos, por ano, US$ 299,9 milhões - cerca de R$ 600 milhões - com cuidados e internações hospitalares diretamente relacionados à obesidade e ao sobrepeso.

Contextualizando o problema

O aumento do poder aquisitivo da população, especialmente a mais pobre, associado às mudanças de estilo de vida que favorecem o sedentarismo - mais tempo em frente à televisão e ao computador - e dos hábitos alimentares são alguns dos fatores centrais que explicam essa tendência de aumento da incidência de sobrepeso e de obesidade no Brasil e no mundo.

Um estudo do coordenador do Nupens/USP, Carlos Monteiro, com base na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada periodicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que os brasileiros estão ingerindo quantidades cada vez maiores de alimentos industrializados - pães, biscoitos, refrigerantes, embutidos etc. - em detrimento dos chamados alimentos minimamente processados, como arroz, feijão, frutas ou verduras. Em 1987, os alimentos ultraprocessados (industrializados) respondiam por 21,6% das calorias adquiridas pelas famílias brasileiras, e os pouco processados, por 44,7%. Vinte e dois anos mais tarde, em 2009, a participação dos ultraprocessados na dieta saltou para 30,1% e a dos alimentos naturais caiu para 39,2%. Já a prática regular de exercícios físicos, segundo a Vigitel Brasil 2011, faz parte da rotina de 30% dos brasileiros; mas 14% declararam ser totalmente sedentários e 27% passam pelo menos três horas por dia em frente à televisão.

O sobrepeso e a obesidade, contudo, não afetam todos os grupos populacionais da mesma maneira. As pesquisas indicam que fatores como a escolaridade e a renda parecem estar associados a maior ou menos incidência de sobrepeso e obesidade. "A escolaridade parece ser fator de interferência mais para mulheres do que homens, incidindo em 50% para mulheres com pouca instrução e 31% com maior escolaridade", afirma Dennys Esper Cintra, professor de nutrigenômica e pesquisador do Laboratório de Genômica Nutricional da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Tendências

As análises das séries históricas e por grupo etário também ajudam a dimensionar o avanço do sobrepeso e da obesidade no Brasil. As análises de Monteiro, da USP, revelam avanços importantes da doença desde a década de 1970 - principalmente, entre as crianças, os adolescentes e os adultos jovens. Considerando apenas os meninos de cinco a nove anos, a prevalência de excesso de peso aumentou 3,1 vezes: passou de 10,9% em 1976 para 34,8% em 2010. Na faixa etária de 10 a 19 anos, o aumentou foi ainda mais significativo (5,8 vezes) - em 1976, 3,7% dos garotos deste grupo etário estavam acima do peso; em 2010, eram 21,7%. Entre os homens adultos (20 anos ou mais), a prevalência de sobrepeso passou de 18,5% em 1976 para 50,1% em 2010.

"Os dados são claros. Se esse ritmo de crescimento se mantiver, em pouco tempo vamos chegar aos níveis de sobrepeso existentes nos Estados Unidos", diz a nutricionista Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da Universidade de Brasília (UnB). Projeções realizadas pelo Nupens/ USP apontam que, se o atual ritmo de crescimento da prevalência se sustentar, em 12 anos, 64,2% da população adulta terá sobrepeso e, em 16 anos, 27,1% será obesa - ou seja, como prevê Recine, da UnB, atingiremos índices semelhantes ao dos Estados Unidos, que concentra as maiores taxas do mundo.

"As pessoas estão ficando cada vez com menos tempo para comer em casa, fazendo substituições por fast-food e alimentos ultraprocessados. A própria aculturação faz com que a adoção de hábitos americanos tenha vindo para ficar", analisa Rosana Radominski, endocrinologista e presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). Por isso, ela enfatiza a importância da educação alimentar. "Há necessidade de que a educação alimentar comece em casa já nos primeiros anos de vida e que os pais deem o exemplo desde cedo. O hábito de comer vegetais, por exemplo, tem que ser incorporado".

De olho nas crianças

O avanço do aumento de peso entre crianças e adolescentes merece especial atenção, na avaliação da SBEM. Uma análise realizada pela entidade com base em resultados da POF/IBGE indica que, em 20 anos, o crescimento foi mais acelerado nesses grupos do que entre os adultos. Em 1989, o sobrepeso afetava 15% dos meninos e 11,9% das meninas de 5 a 9 anos; em 2009, a prevalência passou a ser, respectivamente, de 34,8% e 32%. A obesidade, por sua vez, que afetava 4,1% dos meninos e 2,4% das meninas duas décadas atrás, passou a afetar, respectivamente, 16,6% e 11,8%.

Assim como ocorre com os adultos, as crianças estão praticando pouca atividade física e consumindo alimentos ultraprocessados em excesso. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2011, realizada pelo IBGE, mostrou que 43% dos adolescentes avaliados não realizam atividade física com intensidade suficiente (300 minutos em sete dias) e que 79,5% deles passam pelo menos duas horas por dia assistindo televisão. O mesmo estudo mostra que 50,9% do universo pesquisado consome guloseimas - como balas e chocolate - cinco dias por semana e que 36,2% comem biscoitos industrializados com a mesma frequência. Em contrapartida, 31% têm o hábito de se alimentar com frutas e verduras frescas.

No caso específico dessa faixa da população, a publicidade é apontada como um fator fundamental para o aumento da obesidade, na medida em que colabora para estimular o consumo de biscoitos, bolos, doces, iogurtes, dentre outros alimentos ultraprocessados, influenciando diretamente seus hábitos alimentares. "A Organização Mundial da Saúde considera que a publicidade desempenha um papel central no aumento da obesidade, na medida em que estimula o consumo de alimentos ultraprocessados", diz Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Instituto Alana, organização não-governamental que atua em prol do desenvolvimento saudável da infância. "A publicidade destinada à infância tem o efeito de estimular hábitos de consumo muito precocemente. A criança vê na tevê e acha que é verdade, pois ainda não desenvolveu os mecanismos para filtrar a natureza comercial dos anúncios", completa. Dentre as atividades do Instituto Alana estão campanhas pela regulação da publicidade destinada ao público infantil e da venda de alimentos atrelados a brinquedos - prática comum em cadeias de fast-food.

Enfrentando o desafio

Embora seja classificada como uma doença, o enfrentamento da obesidade impõe uma série de desafios no campo das políticas públicas, pois se trata de um problema que envolve vários tipos de fatores: conforme mostram as pesquisas, aspectos como renda, escolaridade, além de hábitos e valores culturais têm impacto sobre a incidência do sobrepeso e da obesidade. É por isso que alguns especialistas afirmam que o mundo está perdendo a batalha contra a obesidade - como Jeffrey Friedman, da Universidade Rockfeller, em artigo publicado na revista Science.

No campo da medicina, as drogas tradicionalmente adotadas para tratamento da obesidade têm demonstrado efeitos colaterais importantes e acabaram sendo retiradas do mercado em várias partes do mundo. Em outras palavras, os malefícios são maiores do que os benefícios. "Com isso, não há praticamente nenhuma terapia medicamentosa capaz de auxiliar contra a evolução da obesidade. As drogas modernas são caras e ainda estão em estado experimental", pontua Cintra, da Unicamp. "A única estratégia eficaz continua sendo a cirurgia bariátrica (de redução do estômago) que, no entanto, é estratégia de risco e mutiladora, já que mais de 80% da área do estômago é inutilizada", continua. Além disso, não é incomum que os pacientes submetidos à cirurgia apresentem um quadro psicótico e muitos, inclusive, voltam a ganhar peso após a intervenção.

Dietas radicais ou extremamente restritivas - que costumam atrair muitas pessoas aos spas ou colaboram para aumentar a venda de revistas - ou a automedicação com substâncias controladas, como as anfetaminas, pode surtir o efeito contrário ao desejado: a interrupção abrupta da ingestão de alimentos aciona um sistema relacionado aos genes "poupadores de energia" que resulta em mais fome e vontade de comer. "O corpo percebe a ausência de alimentos e interpreta isso como escassez. Como instinto de sobrevivência, reduz o gasto energético, ativando mecanismos da fome ao limite", explica Cintra. O detalhe é que essa condição se mantém, mesmo depois que a pessoa interrompe a dieta e volta a comer normalmente, o que favorece a ingestão excessiva de alimentos e facilita a evolução para o sobrepeso ou a obesidade.

Paralelamente, as políticas voltadas para a educação alimentar e o estímulo à prática de exercícios têm sido adotadas em vários países, inclusive o Brasil. O Ministério da Saúde enfoca a obesidade sob a perspectiva da prevenção de doenças crônicas não-transmissíveis. Nesse sentido, o Plano de Enfrentamento às Doenças Não Transmissíveis, lançado em 2011, inclui algumas metas relativas à obesidade, a serem cumpridas até 2022. "Nossas metas são estabilizar o avanço da obesidade e sobrepeso em adultos e reduzir entre as crianças", afirma Deborah Malta, do Ministério da Saúde. Segundo ela, vários países têm adotado metas semelhantes, diante da dificuldade de reduzir a incidência de obesidade.

Dessa forma, o Ministério da Saúde aposta em estratégias de prevenção, tais como o programa Academias da Saúde, que prevê a criação de academias de ginástica vinculadas a unidades de saúde, seguindo um modelo bem-sucedido no município de Belo Horizonte e no estado de Pernambuco. Segundo Malta, experiências internacionais demonstram que a existência de espaços públicos destinados à prática de exercício físico favorece a criação desse hábito na população. Já existem 155 Academias da Saúde em funcionamento em todo o país, e o objetivo é chegar a 2 mil. Além disso, o Ministério da Saúde tem atuado em parceria com o Ministério da Educação em ações voltadas para a melhoria da qualidade da merenda escolar e realizado ações junto à indústria alimentícia destinadas a modificar a composição de alimentos processados, reduzindo a quantidade de sódio e outros componentes nocivos à saúde.

Essa estratégia, no entanto, apresenta limites, na opinião da coordenadora do Opsan/UnB. "Tratar a obesidade somente como um fator de risco para doenças crônicas é uma limitação", afirma Elisabetta Recine. A nutricionista defende que obesidade é uma doença em si, cujo tratamento depende de ações multissetoriais, já que é multideterminada - ou seja, ela é causada por um conjunto de fatores. "No Brasil e no mundo, não existe um setor que, sozinho, dê conta do problema". É por isso que ela defende a implementação do Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade, elaborado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), lançado em outubro de 2012. O plano abrange um conjunto de ações, diretrizes e objetivos visando ao aumento da produção de alimentos saudáveis, ao acesso da população a eles, além de iniciativas no campo da legislação, como a regulação de publicidade de alimentos. "Mas sua implementação depende de compromissos políticos, o que ainda não ocorreu", conclui Elisabetta.