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Reportagem
Picaretices e malandragens: o uso da mentira na literatura
Por Cintia Cavalcanti
10/04/2013

Retratado na literatura desde o final da Idade Média, o uso social da mentira povoa o imaginário coletivo fazendo emergir, em culturas distintas, personagens que, por conta de suas motivações mais íntimas – ou ainda pela ausência delas –, utilizam de sua astúcia para ludibriar os outros. Rompendo com a moral medieval, a obra Decameron, de Giovani Bocaccio, escrita entre os anos de 1348 e 1353, marca o início da grande prosa italiana, na qual desponta a figura do sagaz e desonesto Ser Ciappelletto, protagonista da primeira das dez novelas que a compõem. Dois séculos depois, a obra de autor desconhecido Vida del Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades dá início à trajetória da novela picaresca clássica espanhola, subgênero literário narrativo da ficção em prosa no qual se consagra a figura do pícaro, “um anti-herói, por excelência”, como pontua Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira, doutoranda do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Capa de uma das edições de 1554 do Lazarillo de Tormes

Se nas novelas de cavalaria são exaltados os feitos do herói, personagem com inúmeras virtudes que o tornam capaz de arriscar sua própria vida em benefício dos outros, a picaresca dá espaço a um protagonista que, na ausência de virtudes mais elevadas e na ânsia de atingir seu objetivo máximo – o proveito próprio –, narra suas aventuras, as quais, em geral, abarcam um projeto pessoal de ascensão social e incluem o uso da trapaça, conforme explica Oliveira, autora do artigo “A formação de um ‘homem de bem’: Lazarillo de Tormes, a paródia e a denúncia social”. Mas o que de fato faz das histórias de Ser Ciappelletto e Lazarillo de Tormes, originadas em tempos e espaços diferentes, narrativas similares, além do protagonismo de seus anti-heróis? Para Doris Natia Cavallari, do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo, o principal ponto em comum entre a novela “Ser Ciappelletto” (Senhor Ciappelleto) e o romance Lazarilho de Tormes é a confissão paródica dos personagens.

Como explica Cavallari em “A confissão paródica: um estudo do romance picaresco e do Decameron de G. Boccaccio”, as obras apresentam uma paródia da confissão ritual a fim de dessacralizá-la, uma vez que na tradição católica, a confissão é um ritual que marca a tentativa de purificação do homem na busca pela salvação e, naquelas narrativas, a confissão é subvertida, encerrando a tentativa de enganar o próximo, de aproximar-se dos bons e parecer digno e, mais especificamente, no caso de Lazarillo, de alcançar a felicidade da vida terrena. Em tom satírico, ambas denunciam de maneira caricata a realidade social da qual emergem, fazendo de Ser Ciappelletto e Lazaro “expoentes de mundos em crises, de sociedades decadentes que procuram, inutilmente, resistir ao caos, através da valorização excessiva das aparências, das castas e da honra”, descreve a autora.

Ser Ciappelletto, um notário desonesto e amante de todos os vícios, tem na confissão a um frade, no leito de morte, um meio de não deixar dois amigos que o hospedavam em má situação. Lazaro, por sua vez, faz uso do mesmo artifício através de uma carta que é dirigida a “Vossa Mercê”, uma autoridade solicitante, a fim de esclarecer o “caso”, desmentindo as calúnias sobre o envolvimento de sua mulher com o padre, seu protetor, defendendo, assim, a situação confortável em que vive. Nas narrativas, ambos os personagens fazem uso da astúcia e da esperteza; o primeiro, tendo em vista a manutenção de seu status na sociedade, e o segundo, em busca de ascender na escala social.

A busca pela ascensão social é traço comum na motivação dos protagonistas do núcleo clássico da narrativa picaresca espanhola, da qual também fazem parte as obras Guzmán de Alfarache e El Buscón, escritas entre o final do século XVI e início do século XVII. É neste traço do pícaro que se insere a crítica à imobilidade social numa sociedade de estrutura circular, estratificada em castas e fechada, da qual os personagens são frutos e, ao mesmo tempo, protótipos. No primeiro romance picaresco, Lazaro atinge seu objetivo passando a ser reconhecido socialmente, ainda que ocupando o grau mais ínfimo de um servidor público, o cargo de “pregoeiro” – isto é, com a função de apregoar pela cidade os leilões de vinhos, as execuções e outras atividades de interesse público. Já na obra considerada o marco final do núcleo clássico, Don Pablos, protagonista de El Buscón, conclui que os seus esforços para ascender socialmente são em vão e termina a história afirmando: “nunca melhora seu estado quem muda somente de lugar e não de vida e de costumes”. Para Cavallari, a novidade dessa última obra está na paródia que ela faz ao próprio gênero picaresco, não apenas desmascarando a sociedade, mas desnudando o próprio pícaro.

Recebendo novas características no decorrer do tempo, o anti-herói picaresco foi sofrendo transformações e transfigurações nas demais obras pertencentes a esse gênero, sem, no entanto, se distanciar radicalmente do modelo iniciado pelo Lazarillo e continuado e alargado pelo Guzmán e pelo Buscón, como explica Altamir Botoso, licenciado em letras pela Universidade de Marília e doutorando do Departamento de Letras Modernas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em “ A recriação do pícaro na literatura brasileira: o personagem malandro”, publicado na revista Letrônica, Botoso argumenta que graças a “essa variedade, demonstrou ser o pícaro um ente ficcional dinâmico, sempre aberto a novas possibilidades, a adquirir novas características e a aclimatar-se tão bem em terras estrangeiras”. Assim, a partir de seu fabuloso êxito, o romance picaresco originado na Espanha atravessou fronteiras, fazendo com que seus descendentes tomassem novos rumos e renascessem segundo o solo e o espírito que os nutriu.

Picaresca à brasileira ou uma nova tradição literária?

Na literatura brasileira, o romance Memórias de um sargento de milícias, obra de Manuel Antonio de Almeida, escrita entre 1852 e 1853, estreia o que se convencionou chamar de romance malandro. O protagonista Leonardo Pataca, à semelhança de vários pícaros, é astuto, vive ao sabor da sorte, é espontâneo e avesso ao trabalho. “C onsidero o malandro como uma evolução do personagem picaresco no Brasil”, afirma Botoso. Ele ressalta que, embora não seja correto afirmar que ele seja um pícaro brasileiro, no sentido estrito, suas semelhanças com o ancestral espanhol permitem considerá-lo pertencente à linhagem de anti-heróis que povoam as literaturas do mundo todo. Botoso explica que, apesar de apresentar algumas diferenças em relação ao pícaro clássico, Leonardo Pataca tem outros atributos que os aproximam: tal como os pícaros, ele perambula por vários espaços, quer integrar-se à sociedade sem fazer esforço e quer ter uma vida boa sem trabalhar.

Antonio Candido, em Dialética da malandragem, estudo que é referência fundamental para a caracterização do romance malandro, refuta que a obra Memórias de um sargento de milícias descenda, de fato, da novela picaresca de origem espanhola. Para Candido, a despeito de algumas semelhanças entre os protagonistas, falta à obra o que Darcy Damasceno chamou de “marcas peculiares do gênero picaresco”. “De fato, a análise da picaresca espanhola faz ver que aqueles dois livros nada motivaram de significativo no de Manuel Antônio de Almeida, embora seja possível que este tenha recebido sugestões marginais de algum outro romance espanhol”, diz o crítico no referido artigo.

Das diferenças entre Leonardo Pataca e os narradores da picaresca clássica, talvez a que mais salte aos olhos seja a influência do meio para a formação do caráter do protagonista. Como explica Oliveira, da UFF, o pícaro é o resultado do meio, começando pela falta de condições materiais para suprir suas necessidades vitais à educação que recebe dos adultos, de modo que tem de aprender a sobreviver por conta própria, utilizando as ferramentas que possui: astúcia e esperteza. Suas carências – material, afetiva e sexual – o tornam um enganador pragmático. Por outro lado, lembra Candido, ainda que Leonardo Pataca, bem como os pícaros, possua origem humilde, e como alguns deles, irregular, não enfrenta um choque áspero com a realidade, pois embora seja abandonado pelos pais, seu padrinho, o Compadre, cuida dele satisfazendo todas as suas necessidades materiais.

Assim, enquanto é a brutalidade da vida e as dificuldades que experimenta que fazem do pícaro um mentiroso dissimulado, Leonardo Pataca, por sua vez, nasce malandro feito, “como se se tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das circunstâncias”, analisa Candido em seu estudo. São, portanto, as motivações por detrás dos atos que tornam os personagens distintos em essência. “As mentiras contadas por Leonardo parecem até pueris perto daquelas que os pícaros contam”, compara Botoso, da Unesp. A passividade do protagonista de Manuel Antônio de Almeida faz com que ele seja levado pelas circunstâncias ao avesso dos pícaros que burlam para enfrentar a sociedade que lhes é hostil.

Se para Candido, a despeito das afinidades entre o malandro Leonardo e o pícaro espanhol, as diferenças que os separam não permitem inferir que façam parte da mesma estirpe, para Botoso, “ater-se tão somente a elementos como a autobiografia, o serviço a vários amos e o choque áspero com a realidade, para caracterizar o pícaro ou um provável romance picaresco, revela-se insuficiente”. Tendo ou não recebido influências do personagem da Espanha medieval, o fato é que a partir das Memórias, a figura do malandro se arraigou profundamente na literatura e no imaginário brasileiro, fazendo emergir na novelística brasileira o romance malandro, que se consolida com a publicação de Macunaíma, de Mário de Andrade, em 1928, e amplia-se com os malandros do pós milagre econômico.

O malandro na literatura de cordel

A incorporação da figura do malandro pela literatura brasileira não foi exclusividade do gênero do romance. Como discorre o sociólogo Marcio Alexandre de Barbosa Lima, é através da literatura oral de cordel que o estereótipo do malandro se perpetua no imaginário popular, especialmente no Nordeste do Brasil, ensinando aos subjugados como canalizar sua raiva através da astúcia e do engano, cumprindo uma função de socialização de um espírito de resistência. Em Literatura de cordel e uso da mentira, ele mostra que ao fazer uso da mentira, personagens como João do Grilo, de Ariano Suassuna, e Cancão de fogo, de Leandro Gomes de Barros – chamados amarelinhos –, dão legitimidade às suas ações por meio de justificativas como matar a fome ou vingar-se de injustiças, tornando-as moralmente valorizadas. “Cancão mente para comer; João também. Além da comida, ambos enganam, com suas mentiras, os patrões que maltratam seus funcionários”, pontua Lima.

Pícaros, malandros, amarelinhos são personagens similares e ao mesmo tempo peculiares, que revelam através do deboche ou do tom satírico sociedades em crise, onde não há espaço para o altruísmo. Como conclui Cavallari, da USP, “o discurso irônico desmascara todos os pecados dessa sociedade e, de certa forma, justifica os seus atos”.