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Artigo
Formação de pessoal qualificado no Brasil: limitações estruturais do sistema de ensino
Por Antonio MacDowell de Figueiredo
10/05/2013

Em face de suas amplas e evidentes implicações, a quantidade insuficiente de profissionais qualificados de nível médio ou superior, disponíveis no mercado de trabalho brasileiro, em praticamente todos os setores de atividade, constitui um entrave decisivo à realização das atuais necessidades e perspectivas de desenvolvimento do país. Além desse aspecto quantitativo, se também considerada, em média, a real e efetiva qualificação técnica dos profissionais que ingressam no mercado de trabalho, as implicações decorrentes tornam-se ainda mais críticas.

Não obstante a escassez, o problema tem sido tratado sem que, da identificação precisa das suas reais causas estruturais, resulte a proposição consequente de soluções radicais. De fato, a falta de quadros técnicos qualificados pode ser considerada, em última análise, o traço mais visível de uma insuficiência mais ampla, que diz respeito à efetiva formação de níveis médio e superior pelos respectivos sistemas de ensino. Não por coincidência, segundo a Confederação Nacional da Indústria, atualmente mais de 90% das empresas defrontam-se com dificuldades para suprir suas demandas por pessoal especializado, especialmente engenheiros e técnicos. Atualmente, o Brasil forma, por ano, cerca de 38 mil engenheiros para uma demanda anual de cerca de 90 mil profissionais.

Dada a magnitude do problema, em seus aspectos quantitativos e qualitativos, enquanto não for definida e implementada uma efetiva ação estratégica e sistêmica de política educacional, que ampla e necessariamente incida sobre as causas estruturais da carência, medidas setoriais serão pouco mais que paliativos circunstanciais. Dentre estas, por exemplo, um eventual incentivo à imigração de engenheiros formados em outros países. Programas setoriais em curso, tais como o Plano Nacional de Qualificação Profissional – Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (PNQP-Prominp) e o Programa de Recursos Humanos – Agência Nacional de Petróleo (PRH-ANP), tenderão a alterar os seus enfoques, de modo a suprir as carências da formação escolar formal. De modo que, sob vários aspectos, a solução de cada problema setorial é indissociável da solução do problema mais geral.

Como ilustração representativa, dados de 2011 mostram que, dos profissionais capacitados pelo PNQP, 32,8% tinham emprego antes de ingressarem nos cursos; 80,7% passaram a tê-lo após os cursos. O crescimento da empregabilidade foi maior entre os egressos dos cursos de nível fundamental (de 21,2% para 60,3%) e de nível médio (de 30,0% para 64,4%). No entanto, a escolaridade formal dos que frequentaram os cursos de nível básico do PNQP foi de apenas 20,1% de nível fundamental, sendo 61,1% de nível médio completo e 11,6% de nível superior, completo ou incompleto. Para os cursos de nível médio do PNQP, apenas 35,0% tinham escolaridade formal de nível médio. Os demais tinham formação de nível superior, completo ou incompleto. Esses resultados são incontroversos. Eles podem indicar, por um lado, que o aumento da empregabilidade, em cada nível dos cursos do PNQP, deve-se mais a que parte significativa dos participantes já têm nível de escolaridade formal além daquela para a qual os cursos são formatados; por outro, que a qualidade da escolaridade formal, em cada nível, de fato não atende às exigências dessa formatação, no nível correspondente.

A partir de uma apreciação sistêmica dos ciclos formais de ensino, evidenciam-se as limitações estruturais a que estes estão submetidos em virtude de suas deficiências. A figura mostra resultados dos ciclos de formação do sistema de ensino brasileiro, dos anos 1994 a 2009. Eles correspondem, em sequência, a 8 anos de ensino fundamental, 3 anos de ensino médio e 5 anos de ensino superior. Esses dados são do Censo Educacional, coletados pelo Inep/MEC. Com pequenas diferenças, os resultados dos ciclos de formação 1995/2010, 1996/2011 e 1997/2012 não alteram significativamente as conclusões.


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A sequência mostra que, ao final do ensino fundamental, foram aprovados apenas 42,3% daqueles que, 8 anos antes, matricularam-se na sua primeira série. Destes, 37,4% matricularam-se, no ano seguinte, na primeira série do ensino médio. Após 3 anos, 28,9% foram aprovados na última série deste ciclo. No ano seguinte, 20,5% ingressaram no ensino superior. Em 2009, o número de egressos do ensino superior foi apenas 12,5% do número daqueles que, em 1994, ingressaram no sistema de ensino. Esses números falam por si.

No ensino fundamental, entre os períodos 1998/1991 a 2007/2000, mantém-se no entorno de 40% o número de estudantes aprovados na oitava série em relação ao número de matrículas na primeira série. Recentes avaliações indicam que, destes, cerca de 46% não entendem o que leem nem conseguem articular ideias por escrito. Ou seja, apenas cerca de 22% estariam aptos a passar para o nível médio de ensino. Não por coincidência, o Censo 2010 do IBGE revela que, da população do país, 45% não têm ensino fundamental completo.

O número de matrículas na primeira série do ensino fundamental é declinante, de cerca de 6,58 milhões, em 1994, para 3,22 milhões, em 2010. No ensino médio, a razão entre o número de aprovados na terceira série e o número de matrículas na primeira série declinou, de 58,9%, no triênio 2000/1998, para 48,8%, no triênio 2008/2006. Vale dizer, o insucesso atinge mais da metade dos alunos.

Especificamente em relação à carência de engenheiros, via de regra localiza-se a origem do problema no reduzido número de estudantes que ingressam no ensino superior com opção pelos cursos de engenharia; ou na insuficiência de sua formação básica em matemática, física e química. Para resolver o problema, propõe-se: aumento das vagas de ingresso aos cursos de engenharia, programas de recuperação e complementação da formação escolar, oferta de bolsas a alunos de graduação de engenharia, aumento da atratividade dos cursos mediante reestruturações curriculares. Ocorre que, de uma forma geral, pelo menos nas universidades públicas, nos exames de ingresso já foram atingidos níveis qualitativos de corte que não podem ser ainda mais reduzidos; não há, pois, mais egressos do ensino médio em condição de acesso ao ensino superior. Nesse contexto, as ações de recuperação deveriam ser tão extensas que prolongariam significativamente a duração dos cursos; e, por certo, desvirtuariam os objetivos de formação de instituições de nível superior.

Outras proposições visam remediar as carências de formação dos engenheiros via cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado acadêmico e mestrado profissional) ou pós-graduação lato sensu (cursos de especialização, atualização etc.). Para tanto, por exemplo, recorrem a um aumento da oferta de bolsas de estudo e a uma redução das restrições para concessão; e que as empresas estimulem seus engenheiros à obtenção de diplomas ou certificados de cursos de pós-graduação. Essas medidas têm alcance evidentemente limitado, tanto pelo fato de os atuais valores das bolsas não competirem com os níveis de remuneração para engenheiros recém-formados quanto porque, nas empresas, a pouca disponibilidade de engenheiros impedem-nas de implementar extensos e efetivos programas de qualificação profissional. De resto, todas essas proposições são estruturalmente inócuas, pois não atacam a origem das consequências que procuram tratar.

Claramente, o sistema de ensino não cumpre a sua função. No ensino fundamental encontra-se o principal obstáculo, limitante das possibilidades de formação de nível médio. As conhecidas deficiências quantitativas e qualitativas desse nível apenas agravam o problema. Na sequência, as insuficiências qualitativas acumuladas nesses dois ciclos limitam também as possibilidades de formação do nível superior.

O que fazer? A modificação desse quadro, em termos da necessária expansão do alunado dos níveis médio e superior e dos ganhos de qualidade a conquistar, requer a formação qualificada e a manutenção continuada de uma numerosa força de trabalho docente. Objetivamente, não estão presentes as condições necessárias para melhor qualificação dos docentes do ensino fundamental. Este é, porém, um requisito incontornável para melhoria da qualidade do alunado dos demais níveis de ensino. Dados do Censo Escolar de 2011 mostram que cerca de 25% (mais de 530 mil) dos professores que trabalham nas escolas de educação básica do país cursaram apenas até o ensino médio ou o antigo curso normal, não tendo diploma de nível superior. Para o ensino médio, além da inexistência daquelas condições, impõe-se a necessidade de formação de um grande contingente de docentes em áreas específicas (matemática, física, química, biologia).

Os egressos dos cursos de licenciatura são os futuros docentes dos níveis de ensino fundamental e médio. Recorrentemente, dirigem-se aos cursos de formação de professores os alunos menos qualificados nos exames de acesso ao ensino superior. Esses cursos estão dentre os de menor desempenho nos processos de avaliação realizados pelo MEC. Paradoxalmente, portanto, os seus egressos são aqueles que, não obstante as suas deficiências de formação, recebem a incumbência de melhorar os padrões qualitativos do ensino fundamental e do ensino médio!

Por outro lado, dos egressos dos cursos de pós-graduação deveriam vir os docentes para o ensino superior e para a própria pós-graduação. No entanto, em especial nas áreas das engenharias, um significativo incremento nos valores de remuneração num mercado de trabalho muito aquecido destrói a competitividade dos valores das bolsas de estudo. Vale dizer, é ameaçada a própria reprodução do atual corpo docente de alta qualificação.

Em termos estratégicos, isso significa que, no Brasil, a cada vez menos gente, mal formada, será atribuído o encargo de gerar a riqueza para sustentar mais gente, das gerações anteriores e também mal formada, e promover o desenvolvimento do país. Não há país que tenha chegado a estágio significativo de desenvolvimento com uma população declinante e mal formada.

Sem surpresa, a situação é inversa nos países que oferecem os melhores sistemas de formação fundamental e média. A partir da premissa de que “a qualidade de um sistema de ensino não pode exceder a qualidade de seus docentes”, esses países adotam procedimentos estratégicos e sistemáticos para atrair, desenvolver e reter estudantes talentosos para formação do corpo docente dos níveis fundamental e médio, assegurando-lhes condições satisfatórias para lidar com alunos de todos os níveis socioeconômicos. Por exemplo, na Finlândia, na Coreia do Sul e em Cingapura, 100% dos docentes de ensino fundamental e médio são recrutados no terço superior dos graduados de melhor desempenho acadêmico. Em 2008, na Coreia do Sul, o salário médio desses docentes era 119% e 105% do salário médio, respectivamente, de advogados e de engenheiros. No mesmo ano, em Cingapura, esses percentuais eram 114% e 212%.

Por contraste, no Brasil, a causa estrutural mais importante dentre aquelas que produzem as carências quantitativas e qualitativas do sistema educacional é a formação dos quadros docentes. À semelhança do que viabilizou a implantação e o desenvolvimento bem sucedido do Sistema Nacional de Pós-graduação, eliminar tais carências requereria a proposição e consequente implantação de uma solução radical baseada em, pelo menos, três vertentes:

  • valorização da atividade docente nos níveis de ensino fundamental e médio mediante significativa melhoria dos padrões de remuneração, para torná-los, num horizonte de 4 anos, competitivos relativamente a outras atividades profissionais;
  • adoção dos conceitos de tempo integral e de dedicação exclusiva à escola para o pessoal docente destes níveis de ensino;
  • adoção de padrões de desempenho docente e implantação do correspondente sistema de avaliação da atividade docente.

Embora essas considerações pareçam uma digressão, fora do contexto de carências setoriais específicas, reitera-se a necessidade de ter em conta a natureza e a magnitude do problema. A formação de pessoal docente é um obstáculo real e incontornável à realização das perspectivas de desenvolvimento do país. Não há alternativa senão superá-lo.

Antonio MacDowell de Figueiredo é professor da Escola Politécnica e do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe-UFRJ); presidente do conselho deliberativo da Coppe/UFRJ; ex-secretário nacional do Ensino Superior – Sesu/MEC.