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Inovação e desenvolvimento: entraves e causas históricas
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Artigo
Inovação e desenvolvimento: entraves e causas históricas
Por Mario Sergio Salerno
10/07/2013

Este texto discute inovação, não discute ciência. São coisas diferentes. O gargalo da inovação, hoje, está no sistema produtivo brasileiro. O Estado tem agido para incentivar o desenvolvimento da inovação, mas é muito amarrado juridicamente, o que torna suas ações difíceis e lentas.

A inovação vem sendo tratada quase como sinônimo de desenvolvimento, e há várias razões para tanto, pois ela tem forte relação com o crescimento econômico. Em sua versão contemporânea, tem laços com escolaridade, conhecimento científico, infraestrutura de informação e comunicação, conformando a chamada "sociedade do conhecimento". Há muita confusão, mesmo nos meios acadêmicos, entre descoberta, invenção e inovação. Vamos especificar, portanto, o que entendemos por inovação.

Descoberta é um conceito físico ou científico (descoberta do átomo, do sal, do Brasil) que precisa ser validado socialmente. Invenção está relacionada a artefatos, sendo um construto físico ou intelectual (invenção do avião), e a patente protege uma invenção, que pode ser também relativa a uma forma, ou desenho de utilidade. Inovação é um conceito econômico, sendo algo novo ou que seja percebido como novo, que gera negócio, que gera ou captura valor no mercado. Inovação, portanto, é relacionada a mercadorias (bens e serviços comercializáveis).

Assim, não bastam muitas ideias e boa ciência se não há quem as transforme em produtos que possam ser comercializados com sucesso. Na sociedade atual, o agente que faz essa transformação e lança os produtos para comercialização é a empresa. Portanto, não há inovação sem empresa, mas pode haver inovação, ainda que restrita, com conhecimento tradicional ou com conhecimento científico muito consagrado e difundido (mecânica clássica, p. ex., é mais do que o necessário para explicar uma grande inovação das últimas décadas, o container, que revolucionou o transporte de mercadorias – e é uma caixa de metal!).

Durante certo tempo as interpretações dominantes sobre inovação baseavam-se no modelo linear: a ciência levaria à tecnologia, e esta a produtos inovadores. Esse modelo linear caiu em descrédito há muito tempo, substituído por análises mais próximas à realidade, como os enfoques da tripla hélice (inovação resultante das interações entre estado, ciência e empresa) e dos sistemas nacionais de inovação (inovação como fruto de uma perspectiva sistêmica, incluindo instituições, regulação, panorama político-institucional etc.).

Ou seja, ciência é bom, e deve ser incentivada por ser um bem em si, mas não basta, pois não leva automaticamente à inovação. É preciso engenharia e, fundamentalmente, é preciso empresa. As características do tecido industrial brasileiro, sua constituição histórica e a governança das principais cadeias de valor por multinacionais, que majoritariamente desenvolvem pesquisa e produtos no exterior, aliadas à crise do Estado e à rigidez que lhe foi imposta ao fim da ditadura, ajudam a explicar a baixa taxa de inovação no Brasil. Vejamos com mais detalhes esses pontos, com as devidas comparações internacionais, inevitáveis.

Apesar de tardia em seu espraiamento – a pós-graduação no Brasil desenvolve-se principalmente a partir dos anos 1970 – a ciência brasileira, no geral, tem crescido em quantidade e qualidade, se a medirmos por publicações. A participação brasileira na ciência mundial (cerca de 3% das publicações, contra 0,9 % em 1996 e 1,75% em 2003) é hoje o dobro da participação nas exportações internacionais (1,5% em 2011).

Medir inovação não é fácil. O indicador tradicional P&D/PIB é sintético, mas P&D pode revelar esforço para inovar, mas não inovação diretamente – há países com altos gastos de P&D/PIB com desempenho inovador aparentemente mais baixo do que outros com menos gastos relativos. Mas é possível dizer que a inovação cresce no Brasil. O panorama institucional mudou radicalmente nos últimos anos: Lei de Inovação de 2004, viabilizando subsídios, facilitando a relação com universidades e prevendo compras governamentais de bens tecnológicos; Lei do Bem em 2005 com incentivos fiscais para P&D e fixação de mestres e doutores na empresa; amplo financiamento pela Finep e facilidades várias do recente plano Inova Brasil.

Contudo, parece que a inovação no Brasil vai mais devagar do que em outros países: a Índia é conhecida pelo software; a Coreia por inúmeras empresas de eletrônica e mecânica sofisticadas; a China avança em muitas áreas, como eletrônica, automobilística, baterias para veículos elétricos e outros. Uma característica desses países, similar à de países centrais (EUA, Alemanha, França, Japão) é a presença de fortes empresas com sede e poder decisório nos respectivos países.

Várias pesquisas já mostraram que há relação direta entre a sede de engenharia e o valor produzido em um país. O esforço para inovar, medido como dispêndio interno de P&D relativo ao faturamento da empresa, não contando gastos com royalties, é maior nas empresas de capital brasileiro do que nas estrangeiras no Brasil. Sendo tudo o mais constante, o esforço para inovar da brasileira é 81% maior do que o da filial da estrangeira aqui localizada.

Se é possível apontar empresas inovadoras líderes de setores e de cadeias ou redes de valor na Coreia, na China, no Japão, nos EUA e em todos os países desenvolvidos, no Brasil isso é muito difícil. Mesmo na soja há predomínio de tradings internacionais. Braskem, Embraer, Embraco (que apesar de estrangeira tem seu centro de P&D no Brasil) são algumas das exceções que confirmam a regra. A imagem do Brasil não é a de país com forte indústria, e muito menos inovadora. Poucas empresas fazem propaganda de terem tecnologia brasileira.

Há determinantes históricos para esse panorama. O país foi dos últimos a contar com indústria: a Coroa Portuguesa a proibia e só em 1808 foi editado ato permitindo indústria no Brasil, cronologia exposta no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Após a crise de 1929 foram introduzidas políticas para acelerar a industrialização: Getúlio Vargas incentivou as indústrias de base (aço, álcalis, petróleo), com foco em estatais, uma vez que não havia outros capitais disponíveis; Juscelino incentivou a industrialização mais leve, com foco na indústria automobilística e em multinacionais. Os Planos Nacionais de Desenvolvimento dos governos da ditadura militar buscaram promover a complementação da estrutura produtiva, com petroquímica (com relativo sucesso, vide atualmente Braskem e Oxiteno), eletrônica (a Lei de Informática foi um fracasso) e outros.

Apesar de avanços recentes, a conformação da indústria brasileira ainda é aquela dos anos 80, passando pela crise de endividamento dos anos 80/90, oriunda do aumento substantivo das taxas de juros (lembremo-nos que o capital básico para o desenvolvimento dos anos 70 foi estrangeiro, via dívida, seja do Estado, seja das empresas). Não há indústria eletrônica e microeletrônica relevante no Brasil, e o mesmo pode-se dizer sobre a química fina e a farmacêutica. Essa lacuna ajuda a explicar a fraqueza brasileira em patentes, pois esses setores são grande patenteadores.

Mas há multinacionais em todos os países. Por que no Brasil é diferente? Em alguns, como Japão e Coreia do Sul, o desenvolvimento recente (anos 70 para Japão e 90 para Coreia) é fruto de política deliberada de criação de grupos nacionais, com fortes restrições às empresas estrangeiras, que só passaram a ter mais liberdade depois que o tecido "próprio" estava construído. Em outros países, as multinacionais foram atraídas para a formação de polos exportadores. A China combinou as duas coisas: atração para exportação e incentivos às empresas chinesas.

No Brasil, as empresas estrangeiras vieram para aproveitar o mercado interno. A regra era trazer para cá produtos em ciclo descendente nos países centrais, e postergar ao máximo o lançamento de novos produtos. O ícone dessa orientação é a Zona Franca de Manaus, uma zona franca para importar. Assim, o tecido industrial brasileiro é voltado para dentro, dominado por empresas estrangeiras cujas atividades de P&D e de desenvolvimento de produto só marginalmente estão no Brasil. Falta empresa para inovar.

Adicionalmente, por razões históricas, foi construído no Brasil um Estado cartorial, amarrado, com baixo poder de iniciativa. Note-se bem, trato de Estado, não de governo, ainda que haja governos mais pró-inovação do que outros. Tomemos a Embraer para exemplificar. O Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (CTA) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) foram criados nos anos 50 e foram feitos projetos de aviões – inclusive do Ipanema e do Bandeirantes, mas faltava empresa. Por decreto, a Embraer foi criada nos anos 60 e o Estado deveria comprar prioritariamente seus produtos e serviços. Hoje, tal processo seria impossível. O executivo está acuado, pois os órgãos de controle internos e externos extrapolam funções e limitam na prática a ação: por que razão um funcionário (concursado ou nomeado) vai comprar uma briga com o Tribunal de Contas da União (TCU)? Quem o defende depois? E se ele é acusado por engano pela imprensa, quem vai acioná-la?

O artigo 20 da Lei de Inovação prevê o instrumento de compras governamentais. Por ele, as diversas instâncias do Estado podem contratar o desenvolvimento de produtos e processos, como forma de incentivar a inovação. Trata-se de uma das formas mais efetivas de incentivo, diga-se de passagem, pois desse instrumento nasceram os trens bala de França, Japão, Coreia, Itália ("semi-bala", mas muito inteligente, pois não requer nova via, economizando bilhões para o Estado italiano). Dele também saíram a mais importante empresa do segmento de semicondutores, ação do Estado francês (nasceu de um laboratório de eletrônica da Agência Nuclear Francesa); várias inovações na indústria aeronáutica norte-americana (Boeing, por meio de compra militar); o supercomputador japonês; várias empresas chinesas – a lista é infindável.

Entre 2004 e 2011 houve enorme discussão sobre a efetividade do artigo 20 da Lei de Inovação. Alguns advogados diziam que o artigo é autoaplicável. Outros, que não poderia ser aplicado, pois, ao não especificar o que aconteceria se a empresa contratada não conseguisse fazer o desenvolvimento (sempre há o risco, senão não haveria necessidade de incentivo), ela seria obrigada a devolver todo o aporte público. Em 2 de agosto de 2011, o Decreto 7.539 deu nova redação à regulamentação da lei, especificando os procedimentos em caso de fracasso: como atestá-lo, como interromper um contrato etc. Apesar disso, três anos depois, vários agentes do Estado ainda têm medo de utilizar tal instrumento, o que atestei em conversa com graduado general da área de ciência e tecnologia do Exército. Pois é, nem as Forças Armadas conseguem desenvolver seus projetos. Imagine se nos EUA, na França ou na China as Forças precisassem divulgar seus projetos de desenvolvimento e fazer licitações tornando-os públicos.

Muitas universidades ainda dificultam a relação com empresas. Quando da Lei de Inovação, que faculta às universidades e institutos públicos ou estabelecerem acordos prévios de propriedade intelectual com empresas ou realizarem os procedimentos licitatórios tradicionais previstos na Lei 8.666, os jurídicos de algumas universidade federais de grande porte estabeleceram que se deveria seguir a 8.666, embora o procedimento nesse caso pudesse gerar incoerências ou situações esdrúxulas como uma empresa que financiou um projeto não poder se beneficiar dele, e outra, concorrente, que não o financiou e não se envolveu, ganhar a licitação de comercialização.

O governo do estado de São Paulo, alguns anos atrás, enviou à Assembleia Legislativa projeto de lei de inovação paulista estabelecendo que as universidades e institutos (leia-se: USP, Unicamp, Unesp, IPT, IAC...) deveriam seguir a 8.666 e não os novos procedimentos previstos na Lei de Inovação. O trâmite para a mudança desse ponto levou tempo enorme, com várias audiências públicas um tanto surrealistas, com alguns membros do governo pedindo a mudança do projeto que o governo enviou à Assembleia.

Felizmente, o panorama está mudando. Já há regulamentação especial para compras de defesa e uma boa discussão sobre como suplantar alguns problemas da lei de incentivos fiscais para inovação. É absolutamente necessário mudar a estrutura industrial e a mentalidade, além de destravar procedimentos (os cientistas conhecem os obstáculos para certas importações, e isso se multiplica no caso empresarial). De todo modo, a discussão ganha corpo. A Faculdade de Direito da USP discute as propostas de mudança nas leis que regem a inovação, com efeitos altamente didáticos para os futuros advogados; a presidenta adota publicamente o discurso de apoio à inovação; o orçamento da Finep foi significativamente aumentado (ainda que não haja fonte predefinida de recursos; assim como a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e diversas instâncias do MCTI estão desenvolvendo estudos e propostas de intervenção para suprimir ou contornar gargalos e obstáculos para inovação.

E, melhor de tudo, parece estar nascendo na sociedade a consciência da importância da inovação. Há propagandas de empresas se autointitulando "inovadoras" e um bom número de novas empresas nascendo, crescendo, inovando. Minha experiência na Poli, certamente limitada, mostra que dos anos 80 até meados dos 2000, o imaginário dos alunos era trabalhar em uma grande empresa. Hoje, se perguntados, 30 ou 40% afirmam que gostariam de abrir sua própria empresa. Quem sabe não engatamos num novo estilo de capitalismo, com empresas que nascem "de baixo", crescem inovando, aproveitando a inteligência e a juventude brasileira?

Mario Sergio Salerno é professor titular do Departamento de Engenharia de Produção da Poli-USP, coordenador do Observatório da Inovação e Competitividade da USP e do Laboratório de Gestão da Inovação da Poli.