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Artigo
Silêncio e religião em tempos de comunicação generalizada
Por Léa Freitas Perez
10/09/2013

antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento

(Arnaldo Antunes)

 

Silêncio vem do latim silentium e se refere, segundo o Dicionário Aurélio, ao estado de quem se cala, bem como à privação de falar ou ainda à interrupção de ruído. Percebe-se, assim, que é uma palavra que não se define por si só, mas em relação de oposição, de contrariedade e de falta em relação à fala e ao ruído, log o, como privação de algo que diz e que faz mover. Silêncio remete, assim, seja como vazio ou como ausência, talvez mais ainda como inatividad e, a uma concepção de mundo, como lugar da fala e da presença plena de matéria. A isso, se convencionou chamar de metafísica da presença – outro nome para a crença na linguagem (e toda crença tem um acento religioso, queiramos ou não admitir), mais ainda do discurso instituído, como fundamento da existência e da ordenação do mundo. A isso Derrida (2008) chamou, muito apropriadamente, de fonologocentrismo , que poderíamos exemplificar do seguinte modo: existo porque falo e porque minha fala nomeia minha existência, dando-lhe presença (sentido e realidade), logo, toda forma de existência e de expressão da existência que prescinde da linguagem falada é negada, desautorizada e mesmo considerada falsa.

A física do univer so fala que, antes da criação da matéria, existia um grande vazio, um silêncio que contemplava o infinito hipotético, e, por via de consequência, a criação da matéria trouxe o movimento e, com ele, a presença do objeto que causa barulho, ruído, e, com eles a fala, que identifica, tipifica, enfim, define o objeto, sua existência como presença. Vamos, assim, nesse percurso, pouco a pouco nos aproximando da esfera religiosa, na qual o silêncio é um tema cardinal: voto de silêncio, silêncio de Deus, silêncio diante de Deus, oração silenciosa, silêncio monástico, silêncio obsequioso, entre outros.

Deus, com a criação da matéria, rompeu com o silêncio, o grande vazio do infinito hipotético. A criação divina, o universo, é fiat lux, pronunciado por Deus no primeiro dia do gênesis. “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ e a luz foi feita” (Gênesis 1:3)1. Na teologia cristã, Deus é a luz das luzes, o iluminado que ilumina. Jesus é considerado a luz do mundo. O uso religioso da noção de iluminação ocorre em inúmeras religiões, que têm seus iluminados, como Buda, que teria atingido o “último estado de iluminação”, o parinirvana. É também amplamente usada em termos seculares, notadamente para se referir ao movimento intelectual ocorrido nos séculos XVII e XVIII, e do qual brotaram, entre outros, o discurso da ciência e da racionalidade em oposição à religião. Fiat lux da modernidade e do desencantamento do mundo.

O fiat lux bíblico é o verbo. Quem de nós nunca ouviu (é sempre de escuta que se trata) o célebre trecho do Evangelho segundo S. João:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio Dele, e sem Ele nada do que foi feito se fez. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a Sua glória, como a glória do unigênito do Pai (1, 1-14).

Mas Deus, não importa qual seja sua nomeação, que pode variar de religião a religião, é absconditus : sua imensidão, maravilhosa em si e por si, é pura impenetrabilidade, ou seja, mistério. A sua obra contém dentro de si uma incompreensibilidade tal que extingue qualquer interrogação e torna vã não só a contestação, mas também qualquer tentativa de decifrar o seu sentido . Lo go, está para além de toda e qualquer linguagem e ação, preservando a condição misteriosa do deus, o supremo, o intangível, o totalmente outro, o inefável, a que toda religião aponta. A sua criação já diz tudo, o famoso silêncio de Deus é aquele do não ter nada a acrescentar, pois tudo já foi dito e não foi dito na linguagem das palavras, pois foi dito e feito no plano do mistério, da impenetrabilidade, da incompreensibilidade.

Do ponto de vista da ação misteriosa e maravilhosa da criação divina, que se faz carne e habita entre nós, são vãs todas e quaisquer tentativas de responder, seja pela palavra, seja pela ação, quem é Deus, ou seja, o mistério da verdade. Diante de uma tal realidade, que prescinde do realismo do real, só nos resta o silêncio contemplativo, a intimidade e a comunicação com Ele. O silêncio é, assim, a condição absoluta para que se possa escutar a palavra de Deus. Silêncio é, portanto, escuta contemplativa. No entanto, nesse nosso mundo, excessivamente comunicativo, barulhento e ruidoso, o silêncio é assustador e aterrorizante. Tudo se passa como se, somente através da ação falante e barulhenta, pudéssemos afugentar o medo primordial da solidão, da incompletude, enfim, da morte, o último e eterno silêncio vocação do ser. Fugimos do silêncio por medo de sua realidade avassaladora, que nos remete aos nossos limites, à nossa fugacidade e à nossa fragilidade. O silêncio obriga o ser a conviver consigo próprio, a ouvir sua consciência e pronunciar o seu próprio fiat. Reza a lenda que o pai da teoria da relatividade, Albert Einstein, teria dito: “Penso 99 vezes e nada descubro. Deixo de pensar, mergulho no silêncio, e a verdade me é revelada”. Um cientista iluminado? Certamente, mas não necessariamente um religioso, embora a religião tenha sido uma de suas grandes questões. Partilhava com o filósofo Espinosa a ideia, talvez pudéssemos dizer, a crença, de que Deus é a “substância infinita”, dotada dos atributos da extensão e do pensamento.

Em As formas do silêncio (1995), Eni Puccinelli Orlandi nos ensina que o silêncio atravessa as palavras, existe entre elas, ou indica que o sentido pode sempre ser outro, ou, ainda, é aquilo que nunca se diz. Evidenciando variados modos de existir do silêncio, postula que o silêncio tem uma progressão histórica desde o “mais silêncio” do mundo dos mitos até o “menos silêncio” das explicações científicas. Para o que aqui quero argumentar, Orlandi traz uma observação fundamental, quando nos propõe não pensar o silêncio como falta, mas sim a linguagem como excesso, de modo que a palavra é que aparece como movimento em torno do silêncio. É para isso, me parece, que aponta o silêncio de Deus, que pode ser bem ilustrado através do silêncio monástico que, ao implicar o reconhecimento da insignificância pessoal, permite a transcendência ao fundar uma contenção, uma disciplina da reserva, uma arte da reticência – como propõe o abade Dinouart (2001) – fundamentais, quero aqui defender, para esse mundo excessivamente falante, em que tudo se fala e tudo se diz nas redes sociais sem reserva alguma, na clausura do discurso e do tumulto das palavras, nos liberando do cultivo de si, que é por natureza silencioso através de uma pretensa partilha da experiência mais comisera, mas que não necessariamente gera intimidade e comunhão.

José Mattoso (2009) nos mostra a existência histórica de uma associação entre a vida monástica e o silêncio como fato constante na civilização europeia e também na oriental, ainda que suas formas e seus conteúdos tenham variado enormemente. O fato é que uma constante existe: a da busca, através do silêncio, do mistério, da misteriosa realidade milagrosa da vida, que a cria e a transfigura. Todavia, nos lembra que estamos diante de um paradoxo (no qual este meu texto também está inserido), qual seja de que “no caso do silêncio, só podemos atingir as palavras, não o mistéri o” (p.70), mistério, digo eu, que elas encerram e epifanizam. Diz Mattoso que mesmo os monges que consagram sua vida ao silêncio contemplativo e que “julgaram poder falar da sua relação com ele, ao transmitirem as suas intuições ou experiências, acabaram sempre por falar do caminho que a ele leva e não dele próprio” (p.70).

Maria Cristina Pereira (2011) observa que na grande maioria dos textos reguladores da vida monástica, na Idade Média, quando tratavam do claustro, definiam “os períodos de proibição ou de permissão de conversa – o que era compreensível, visto que o claustro, por sua estrutura, era um lugar propício à sociabilidade, enquanto o silêncio era considerado uma obrigação, além de uma das virtudes monásticas fundamentais” (p. 73). O abade Odon de Cluny dizia mesmo que um monge sem silêncio não é um monge.

O silêncio é um caminho, uma busca do ultrapassamento do excesso de palavras, em busca do verbo, único capaz da ação criativa e expressiva. Nesse nosso mundo de inflação comunicativa, de excesso de palavra, de abusiva exposição da banalidade, inclusive da banalidade do mal, o testemunho da vida monástica pode nos ajudar a pensar na nossa clausura da fala, do nosso excesso de palavras, que nos são demandados pela cultura de consumo. Os monges, em sua renúncia e em seu ascetismo, nos podem ajudar a pensar que ser contemporâneo não é necessariamente ser atual, que a renúncia e o ascetismo do consumo, inclusive da palavra, podem ser revolucionários. Obviamente não estou propondo que nos tornemos monásticos, que a via religiosa é o único caminho da salvação, pois é disso que se trata na nossa humanidade demasiadamente humana. Não! O que estou querendo dizer é que o silêncio, de cuja prática os monges são mestres, pode nos ajudar a tornar menos pesada e mais instigante a vida, que é a única que nos resta viver. A vida monástica, enquanto modo de vida, moldado por uma experiência religiosa singular, não é fuga, é uma opção ao mesmo tempo marginal e implicitamente crítica em relação à sociedade instituída. Como muito bem observa Vattimo (2000), a experiência religiosa é a experiência de um êxodo, de uma partida para uma viagem de retorno, que reativa um vestígio adormecido, reabre uma ferida, faz reaparecer algo que fora removido, nos possibilitando compreender que a experiência religiosa do silêncio que os monges nos ensinam pode nos sensibilizar para vermos em nós u m sentimento de dependência, uma consciência de que, como bem diz Vattimo, a nossa liberdade é iniciativa iniciada.

João Tauler, místico dominicano medieval, disse , na esteira de santo Agostinho (“esvazia- te para poderes encher-te”): “por isso deves calar-te. Então, o Verbo deste nascimento poderá ser pronunciado em ti, e tu poderás ouvi-lo; mas nota bem: se quiseres ser tu a falar, tem ele de se calar. A melhor maneira de servir o Verbo é calar e escutar”. Reza outra lenda que Luther King, que muito provavelmente também poderíamos chamar de iluminado e de místico, disse: “No final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos”.

A obra da mística, o próprio termo sugere, é nos mostrar que o visível, o falante, é parte do invisível e do não falante, ou seja, é da ordem do mistério. E o mistério é aquilo que é segredo e deve permanecer secreto, não dito, mas experienciado. Como diz Boff, “mística significa, então, a capacidade de se comover diante do mistério de todas as coisas. Não é pensar as coisas, mas sentir as coisas tão profundamente que percebemos o mistério fascinante que as habita”, o inominável, o inefável.

Léa Freitas Perez é professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e líder do Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis.

Notas: 1-Luz é, nos termos da física, uma onda eletromagnética visível pelo olho humano

Referências bibliográficas

Orlandi, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: Unicamp, 1995.
Derrida, Jacques Derrida; Vattimo, Gianni (org.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
Derrida, Jacques. Gramatologia . São Paulo: Perspectiva, 2008.
Mattoso, José. “Taciturnidade e silêncio: para a história do silêncio monástico”. D idaskalia xxxix (1), 2009.
Boff, Leonardo. “Mística e religião”. Em www.leonardoboff.com/site/vista/2004/ago06.htm
Pereira, Maria Cristina Correia Leandro. “ Paradisus corporalis est quies claustralis : usos e sentidos do claustro beneditino no Ocidente medieval”. Acta Scientiarum. Education (33)1, 2011.
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
Luz é, nos termos da física, uma onda eletromagnética visível pelo olho humano.