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Entrevistas
Denise Bernuzzi Sant´Anna
Para historiadora, a atual onipresença do direito e do dever de se embelezar se sustenta nos progressos da ciência e da indústria, no papel preponderante da publicidade, na liberação sexual, feminina e corporal, crescente desde a década de 1960
Marta Kanashiro
07/07/2009

Por meio de livros como Corpos de passagem (Estação Liberdade, 2001) ou Políticas do corpo (Estação Liberdade, 1995), e vários artigos e conferências, Denise Bernuzzi de Sant'Anna vem abordando, há mais de 10 anos a questão do corpo na contemporaneidade. Professora de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Denise doutorou-se em 1994, na Universidade de Paris VII, com uma tese sobre a história do embelezamento feminino. Nesta entrevista para a revista ComCiência, a historiadora procura fazer emergir o processo de construção do conceito de beleza como forma de politizar esse debate e defende: “A beleza corporal é uma relação. Não existe em si mesma, como às vezes se imagina! Também o corpo existe numa trama de relações ... politizar o embelezamento seria uma maneira de compreender as razões sociais dos nossos gostos e necessidades de cuidar da aparência”.

ComCiência - O belo, ou a beleza, são conceitos dinâmicos que encontram diferentes representações ao longo da história e em culturas diversas. Em que está ancorada esta idéia na atualidade, nas sociedades ocidentais contemporâneas? É possível marcar distinções com relação a culturas orientais ou não ocidentais da atualidade?

Denise Sant’Anna - Sem dúvida há uma diversificada história da beleza, muito rica para o entendimento das mudanças nos padrões de comportamento, dos gostos e das maneiras de tratar o corpo ao longo do tempo. A vontade de rejuvenescer e de conquistar a beleza é milenar. Entretanto, a partir do século XX, menos do que um dom de Deus, a beleza tende a ser o resultado de um trabalho que cada um realiza segundo seus próprios recursos: malhação, cirurgia, cosméticos, meditação ... ser belo não é somente um dever mas, principalmente, um direito. E um direito amplo, que, ao contrário de épocas passadas, inclui adolescentes, idosos, ambos os sexos e todas as camadas sociais.

A atual onipresença do direito e do dever de se embelezar está sustentada nos progressos da ciência e da indústria, no papel preponderante da publicidade, na liberação sexual, feminina e corporal crescente desde a década de 1960. Se outrora os cuidados com a alma eram tão ou mais importantes do que aqueles com o corpo, hoje vive-se uma espécie de inversão: o corpo se tornou a parte principal do ser, é para ele que fazemos nossos principais sacrifícios e é dele que esperamos os maiores prazeres ou recompensas. No entanto, há quem escape disso; existem algumas maneiras de lidar com o corpo que tendem a considerá-lo uma passagem para a expansão da sabedoria; e elas ocorrem tanto no mundo oriental, quanto em culturas ocidentais.

ComCiência - Como se dá a passagem, ou quais elementos de permanência e ruptura, da beleza física, como reflexo da beleza divina, para a atual aliança que a senhora detecta em seus artigos entre beleza corporal e os investimentos em saúde, esportes e moda?

Denise Sant’Anna - Quando a beleza deixa de ser considerada a prova da existência divina para ser a expressão principal da subjetividade de cada um, em cada momento da vida, ser belo torna-se, mais do que nunca, algo permeado pelas flutuações da moda e dos interesses de mercado. Se por um lado ganhamos em liberdade para fazer com nosso corpo aquilo que queremos, independente da nossa origem, idade e condição social, por outro ganhamos também em responsabilidades e solidão. O custo/benefício individualizou-se como nunca no âmbito dos cuidados com o corpo! Antigas fronteiras entre beleza esportiva, beleza específica de misses, ou de cada região do planeta, tenderam a ser relativizadas em nome de uma BELEZA INTERNACIONAL, existente full time. Já na década de 1960, a expressão "beleza internacional" começava a ser utilizada, mas hoje nem é mais preciso falar assim, sabe-se que para ser bela deve-se seguir minimamente os padrões universais, amplamente difundidos por revistas, televisão, cinema etc. Somos mais livres do que nossos avós para utilizar cosméticos, praticar esportes, cuidar do corpo e cultuá-lo. E, ao mesmo tempo, somos mais exigentes do que eles nesse assunto, pois quanto mais o corpo se expõe (barriga, seios, pernas, etc) mais intenso e freqüente deve ser o trabalho de depilá-lo, bronzeá-lo, massageá-lo ... tornando-o mais e mais fotogênico, pronto para ser mostrado publicamente em qualquer hora e local.

ComCiência - Em um de seus artigos, a senhora parece afirmar que a proliferação do nu feminino, considerado belo e saudável no século XX, está relacionada com “instigar o desejo humano a estar sempre disponível, pronto para ser acessado”. Pode-se dizer que o corpo é, nesse sentido, um veículo de investimento do capitalismo, uma vez que abarca o desejo a ser capturado pelos movimentos do capital?

Denise Sant’Anna - Sim, o corpo foi muito estudado como sendo um objeto de rendimento para o trabalho nas fábricas, por exemplo: meio de obter lucros, instrumento de produção. A seguir, ele foi analisado várias vezes como sendo objeto fundamental de consumo e de lazer. Hoje poderíamos dizer que o corpo é tudo isso e, também, uma trama de sentimentos que envolvem a potência de expandir a própria vida. Mas corremos o risco de empobrecer o entendimento dessa potência e de traduzi-la pela obrigação de obter prazer incessante, como se o corpo fosse uma fonte inesgotável de sensações deliciosas, no qual o sofrimento não tem mais razão de existir. A idéia de um desejo sempre prestes a se manifestar, potente e sem falhas, é fruto desse equívoco: pensar que o desejo é, sempre, prazer sem tréguas, felicidade sem contrário, euforia sem limites.

ComCiência - No número 56 da Revista e, do SESC São Paulo, a senhora menciona a crônica “Moedeiros falsos e falsificadores da mulher”, de José de Alencar, escrita em meados do século XIX, comparando a fabricação da beleza naquela época e na atualidade, representada pela miss Brasil 2001, que se submeteu a uma série de intervenções cirúrgicas para obter padrões competitivos de beleza. Quais as principais mudanças que a senhora apontaria entre essas duas representações?

Denise Sant’Anna - A primeira delas é a passagem entre uma época em que os produtos de beleza eram, em geral, exteriores ao corpo, utilizados de modo provisório, (anquinhas, laquê, antigos rouges) para uma época em que a beleza deve fazer corpo com o corpo (próteses, depilação definitiva, aquisição de músculos pela ginástica). A distinção entre ser bela e parecer bela foi, durante décadas, tolerada e, até mesmo, desejada. A partir da década de 1970, sobretudo, os conselhos de beleza dirigidos à mulher investem na idéia de que todas podem ser belas desde que comprem novos produtos e técnicas que, ao contrário dos velhos truques de beleza, prometem a modificação profunda da aparência e do organismo. A segunda é a passagem entre uma mulher que ainda não era totalmente sujeito do seu corpo para uma referência feminina que aposta na transformação da mulher em proprietária do seu capital beleza-saúde-auto-estima. Essa tríade rege o universo do embelezamento atual e tende a justificar numerosas práticas de embelezamento outrora consideradas radicais, imorais ou então desnecessárias. Quando a saúde e a beleza são vistas como capitais, o trabalho de melhorar o estado físico torna-se infinito.

ComCiência - E como poderiam ser analisados casos como o de Débora Rodrigues, mulher sem-terra que posou nua para a revista Playboy em 1997, ou de Cristiane Andrade, a catadora de lixo que se tornou modelo?

Denise Sant’Anna - Esses acontecimentos têm relação não apenas com o poderio da mega indústria da beleza mas, igualmente, com o papel da mídia na vida das pessoas. Além disso, há a galopante valorização da tendência que podemos chamar de "qualquer um deve se tornar alguém": vive-se sob a coação de que devemos vencer sozinhos e graças não apenas aos esforços no trabalho ao longo dos anos, mas por meio dos dotes físicos conquistados rapidamente. Ora, a mídia concentra grandes poderes e exibe as conquistas de alguns, como se elas fossem acessíveis a todos. Hoje, há um crescimento impressionante dos programas de TV feitos com pessoas comuns, anônimas, mas cujas histórias, também comuns, ao serem narradas e mostradas via TV tendem a agregar algum SIGNIFICADO especial à vida banal das pessoas! Vivemos uma época de grande aversão à tendência de "passar despercebido", de não ser especial para alguém. Busca-se ficar percebido, marcar presença, ser lembrado, procurado, tornar-se absolutamente necessário, e não supérfluo! E é pela aparência física que se pode obter isso de modo mais rápido e com grande impacto. Mas por que essa ânsia em marcar presença? Ora, vivemos numa sociedade que tanto cultua o corpo como não cessa de aviltá-lo, comercializá-lo, desprezá-lo. O corpo reina e padece por toda a parte. Nossa sociedade não cessa de desvalorizar as singularidades das pessoas e de torná-las desnecessárias, sem significado, incertas. E as passarelas, a TV, a publicidade, prometem justamente o contrário. Enquanto tudo parece incerto e instável (relações, emprego, vontades) o próprio corpo tende a ser considerada a única coisa que resta.

ComCiência - Para a senhora a prática cotidiana da beleza na atualidade relaciona-se com a obtenção de prazer pessoal e com o cuidado de si. Como esses campos, e ainda a relação entre individual e coletivo, compõe o processo de construção da beleza hoje?

Denise Sant’Anna - Houve um tempo em que a propaganda de cosméticos costumava recomendar à mulher: seja bela para o seu marido ou namorado. Essa tendência ainda existe, lógico, mas juntamente com outra: seja bela para si mesma, "curta esse prazer". Muitas vezes temos a impressão de que a beleza é o meio mais seguro de obter sucesso, poder e significado.

ComCiência - Fazer emergir os processos de construção do conceito de beleza é uma forma de politizar essa esfera?

Denise Sant’Anna - Sem dúvida, e para isso seria preciso politizar também a vida urbana, as relações amorosas, e as relações consigo. A beleza corporal é uma relação. Não existe "em si mesma", como às vezes se imagina! Também o corpo existe numa trama de relações. Além disso, politizar o embelezamento seria uma maneira de compreender as razões sociais dos nossos gostos e necessidades de cuidar da aparência. Desse modo, perceberíamos que aquilo que hoje nos é extremamente necessário e natural em matéria de beleza, no futuro poderá, talvez, perder completamente o sentido!