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Entrevistado por Por Flavia Natércia e Luciano Valente
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Entrevistas
Gilles Lipovetsky
Para Lipovtesky, vivemos um período em que as grandes ideologias que marcaram a modernidade, perderam força, forma e estabilidade. Nas sociedades contemporâneas, o interesse por temas públicos tornou-se à-la-carte: os cidadãos podem, eventualmente, mobilizar-se por uma questão ou outra, e logo em seguida deixar de manifestar interesse.
Por Flavia Natércia e Luciano Valente
10/09/2008

Professor de filosofia da Universidade de Grenoble, pesquisador do Conselho de Análise da Sociedade da mesma instituição, Gilles Lipovetsky é um dos mais conhecidos pensadores de questões acerca da atualidade. Publicou dez livros sobre uma ampla gama de assuntos, como artes, educação, psicologia, política, luxo, moda, cultura da mídia, consumo e ética. O fio que reúne sua obra é a condição do homem moderno, que vive, segundo ele, na era do hiperindividualismo, hiperconsumismo, perdido em meio ao excesso de informações e sem valores para se apegar. Procurando entender esse homem da sociedade atual, Gilles Lipovetsky, com sua filosofia, dá novos traços na definição do indivíduo hipermoderno, como ele definiu na entrevista que concedeu à ComCiência.

ComCiência - Em 1983, o senhor publicou o livro A era do vazio, no qual diz que nossa sociedade sofre de uma falta de interesse pela esfera pública. O senhor acredita que essa tendência tenha se aprofundado desde então?
Lipovetsky - O que eu quis dizer em A era do vazio era que vivíamos um período em que as grandes ideologias que marcaram a modernidade, como o nacionalismo, o socialismo, a revolução e o progresso, tinham perdido sua força, forma e estabilidade no mundo contemporâneo. Acho que isso continua verdadeiro. Atualmente, a descrição deva ser que, nas sociedades contemporâneas, o interesse por temas públicos é variável, tornou-se à-la-carte. Isto é, os cidadãos podem, eventualmente, mobilizar-se por uma questão ou outra, e logo em seguida deixar de manifestar interesse. Penso que não seja um desinteresse absoluto, um vazio absoluto e niilista. É um estágio em que os cidadãos mobilizam-se em função de seus interesses, e não de maneira sistemática ou em função de uma problemática do dever da cidadania. Hoje, por exemplo, nota-se um grande interesse pelas grandes questões climáticas, como o aquecimento global, mas essas grandes questões afetam diretamente a vida das pessoas. As pessoas voltam-se menos para causas anônimas ou abstratas, pois se mobilizam mais por coisas que podem concernir diretamente à sua existência, como a ecologia e o clima. Elas também se interessam por suas cidades e os lugares onde moram. Penso, por exemplo, no interesse de muitas pessoas pelas associações, que se mobilizam pela defesa de algum aspecto da vida social – os pobres, os portadores de deficiências, as crianças doentes. Entendo, então, que não haja um desinteresse absoluto, e sim um interesse que se manifesta menos em função de perspectivas universalistas.

ComCiência - É por isso que o senhor fala do vazio, e não do nada em seu livro?
Lipovetsky - O vazio era uma metáfora. Não é um vazio absoluto. Hoje, o vazio, se eu tivesse de defini-lo, é antes uma desorientação, um vazio de referências estruturantes que não vem do fato de não existirem, mas de simplesmente terem se tornado flutuantes e muito numerosas. Podemos tomar diversos exemplos. Tomemos um ao acaso: a arte. Por muito tempo houve uma definição clara da arte. Hoje a arte, a não-arte, o marketing, tudo se mistura. O que é arte hoje? Bom, tudo isso se tornou muito vago. Essa perda de referência também se encontra no casamento, por exemplo, hoje há homossexuais que têm o direito de se casar ou reivindicam este direito. Então, o que significa o casamento a partir do momento em que os gays podem se casar e querem adotar crianças? Há também uma mistura na oposição direita x esquerda no plano político. Hoje as pessoas de esquerda aceitam o mercado e o capitalismo. Então, para muita gente, a oposição direita x esquerda já não é mais clara. Estamos, portanto, numa situação de confusão, de complexidade... Não estamos no vazio puro, mas sim perdidos entre tantas referências... Um outro exemplo: a moda. Por muito tempo, no domínio da moda, as coisas eram claras: havia a moda e os démodés. Era uma oposição muito clara e que mudava a cada seis meses. Hoje, a oposição da moda e dos démodés se tornou vaga, confusa, portanto eu diria que, mais do que uma “era do vazio”, vivemos a “era do vago”, a era da confusão, a era da desorientação.

ComCiência - Podemos pensar, então, que as causas comuns, questões como a ecologia ou o aquecimento global, podem se tornar efetivamente uma outra tendência na sociedade de hiperconsumismo?
Lipovetsky - Claro. Há, de um lado, o colapso das grandes ideologias da história, mas ao mesmo tempo elas se recompõem por certos “grandes discursos”. Primeiramente, os direitos do homem; em segundo, a ideologia médica – há uma espécie de obsessão pela saúde hoje em dia – e, por fim, a preocupação com o ambiente e a natureza. É algo extremamente importante. Todo mundo sabe bem que a lógica de hiperconsumismo não poderá ser seguida indefinidamente e que há limites ligados à natureza. Tudo isso foi interiorizado, cada vez mais, as preocupações relativas à natureza vão se tornar essenciais. Agora há toda uma pesquisa motivada pelo aumento do preço do petróleo: motores limpos, motores elétricos que, ao mesmo tempo, vêm para responder a esses custos crescentes, e também às preocupações ligadas ao aquecimento global e emissão de gás carbônico. O ambiente pode ser uma causa mobilizadora. É um bom sinal, quer dizer que o individualismo não é completamente cego e deixa a porta aberta para uma tomada de consciência dos problemas do futuro.

Com Ciência - O homem da atualidade, que persegue um ideal elevado de beleza, que desfruta de uma tecnologia cada vez mais acelerada e que está submetido a um excesso de informação - o qual suscita um sentimento de desinformação - chegará a uma espécie de limite ou crise?
Lipovetsky - A crise já existe. Sobre a beleza, a época em que vivemos é marcada por uma espécie de exigência cada vez mais forte dirigida aos padrões corporais, especialmente para as mulheres. Nunca o corpo foi tão solicitado, sendo objeto de trabalho, ginástica, body-building, regimes etc. E isso é vivido como uma forte pressão, como as feministas falam: uma “tirania da beleza”. Mas, ao mesmo tempo, nunca houve tantos casos de pessoas obesas. Nos Estados Unidos quase 40% da população está com sobrepeso. Isso, evidentemente, explica-se em parte pelo aniquilamento das tradições, mas também por um universo de consumo no qual há informações complexas, múltiplas e contraditórias. O consumidor fica perdido. Hoje, muitos não sabem como se alimentar, por exemplo. Aí também há um estado de confusão que se choca frontalmente com as exigências estéticas. Então a crise é, a princípio, subjetiva. Há uma crise, porque muitas pessoas vivem mal, as mulheres ficam mal, por exemplo, por estarem gordas demais, vivem mal quando fazem regimes nos quais fracassam. A situação, de hiperconsumismo na qual estamos, acarreta uma situação de crise, tanto numa escala global, com o problema do ambiente, quanto na escala individual, com a multiplicação das depressões, das ansiedades, das angústias, das tentativas de suicídio. Há, portanto, com a sociedade de hiperconsumo, uma fragilização dos indivíduos que faz com que o bem-estar material cresça, mas ao mesmo tempo a existência se torne mais difícil, mais geradora de ansiedade. As pessoas têm menos defesas pessoais para enfrentar as crises. Então, creio que o século XXI vai ver se desenvolver esse tipo de processo que está ligado à individualização pelo fato de que os planos conectivos tradicionais, religiosos, são menos fortes que antes, menos estruturantes que antes, e isso acarreta uma fragilização das pessoas, uma espécie de desequilíbrio que se traduz por toda essa espiral de problemas subjetivos.

Com Ciência - Na sua análise, as mulheres são as principais vítimas dessa ordem, dessa sociedade de hiperconsumo?
Lipovestky - Sim, primeiramente, porque os estudos mostram que 80% das compras são feitas pelas mulheres. A consumidora majoritária em nossa sociedade é a mulher. Em segundo lugar, a relação com a beleza é muito mais importante para as mulheres. Parece-me que as mulheres são mais vítimas do consumo que os homens. O indivíduo-consumidor, hoje, assim como no começo do século XX, continua sendo a mulher, porque é ela que se ocupa da casa, das crianças. São elas que se ocupam mais delas mesmas, de seus corpos, de sua aparência, portanto, o consumo é um fenômeno muito mais importante para as mulheres do que para os homens. Vale ressaltar que o consumo não envolve somente aspectos frívolos. Hoje há uma sociedade que liga o consumo à causa das questões de saúde. Há uma inquietação sobre o que se come, o que se bebe e o que se respira. Todos os elementos que encontramos numa casa são suscetíveis de fazer mal à saúde e, como as mulheres ocupam-se mais das crianças, há toda uma relação extremamente preocupante com relação a esse domínio de consumo. Portanto, sim, as mulheres são as primeiras vítimas.

ComCiência – Mas é possível dizer que uma nova revolução individualista está sendo gestada?
Lipovetsky – Não, a revolução individualista coincide com a modernidade, em meados do século XVIII. Vivemos uma segunda revolução individualista depois nos anos 1960, 1970, que chamo de hipermoderna para distingui-la da primeira, que era moderna. Acredito que haverá um aprofundamento da lógica individualista, que vai mudar coisas muito contraditórias ao mesmo tempo: todas as demandas de diversão, de consumo, de jogos, de atividades lúdicas, de viagens, as demandas de participação, de atividade... O consumo não pode satisfazer completamente às pessoas. No século XXI, haverá todo um conjunto de comportamentos nos quais vamos ver pessoas que querem fazer mais por elas mesmas. Fotos, filmes, escrever blogs na internet, participar de associações... Não creio que haja uma nova revolução individualista sendo preparada, e sim um aprofundamento dessa segunda revolução individualista, que irá - como eu dizia antes - produzir muita inquietude. Cada vez mais as pessoas procuram soluções individuais para seus problemas, sofrimentos, para suas existências e não vejo nenhum discurso, nenhum programa capaz de colocar fim a essa dinâmica. Não entendo que a modernização ou que os problemas do ambiente vão parar a lógica individualista. Todos esses fenômenos podem, de certa maneira, responsabilizar mais o individualismo, torná-lo mais ansioso e, sem dúvida, medicalizado. Por muito tempo buscaram-se soluções políticas para as desgraças da modernidade e, hoje, buscam-se soluções... talvez pela educação, pelos remédios, terapias, até por novas formas de religião. Mas creio que todas essas dinâmicas aprofundam a dinâmica individualista, e não preparam uma nova revolução.

Com Ciência - Nossa sociedade desprovida de valores morais coletivos reflete-se na educação das crianças. Qual é o desafio da educação das crianças neste momento de crise?
Lipovetsky - Inegavelmente, há uma crise múltipla na educação. No primeiro nível, há um fracasso geral na aquisição dos saberes mais elementares. Mesmo nos países ricos da Europa e da América, há entre 10 e 20% da população que não escrevem e nem lêem corretamente. É um fracasso escandaloso. Há, portanto, um desafio enorme a se enfrentar. É preciso que a escola saiba encarar tais desafios, já que não há nada de impossível. Não devemos aceitar que os cidadãos das sociedades desenvolvidas não dominem saberes tão fundamentais. Há uma crise da escola, porque a escola se choca agora contra os mass media. Antes, a escola laica chocava-se com a religião. Hoje, a escola laica choca-se com a televisão e a internet. E nós vamos ter de transformar muito os métodos da educação a fim de que a escola integre a capacidade que temos hoje de ter uma informação ilimitada e fácil. Portanto, um dos novos desafios é recompor o que devem saber os cidadãos. Isso não está claro, pois os saberes e as informações são superabundantes, pode-se ter tudo no plano da informação. A escola ainda não compreendeu isso. Portanto, é preciso repensar o que deve ser uma cultura geral, para se orientar dentro do saber e para permitir ter algumas grandes linhas referenciais importantes, para poder depois orientar-se dentro da superabundância de informação. A escola também deve oferecer aos jovens não somente saberes, mas também experiências que ampliem seus horizontes. A época em que escola só transmitia saberes fundamentais corresponde a um período passado. Hoje é mais complicado, porque tudo está aberto às pessoas. Deveríamos abrir a escola para o mundo exterior. As pessoas mudam muito em função das experiências, dos encontros com outras pessoas e com coisas que elas não conhecem. E assim teríamos uma escola mais dinâmica e estimulante, por exemplo, se as profissões diversas pudessem chegar à escola para mostrar aos jovens todas as possibilidades que há de viver neste mundo. Os jovens conhecem, de fato, um mundo bem pequeno, o mundo em torno deles, de seus pais e de seus amigos. A escola deve fazê-los experimentar outras coisas. Esse é o grande desafio que transformará os métodos fundamentais da escola. A escola não sofre de falta de valores, mas de referências para construir o século XXI. Ela deve ser mais aberta, mais experimental.

Com Ciência - Pode-se dizer que, com o excesso de informações e imagens no mundo, o que diversos filósofos assinalaram, a escola deve se tornar um espaço para vivência, experimentação, e não somente para conhecer as coisas abstratamente?
Lipovetsky - Exatamente. A experimentação, eu esclareço, evidentemente não é a única função da escola. Se a escola trouxesse pessoas de fora para falar de seus trabalhos, levasse os jovens às diferentes empresas para ver como é a vida exterior, poderia contribuir muito para ampliar horizontes. A escola deve, a princípio, fornecer ferramentas conceituais e teóricas, mas apenas isso não basta, pois o mundo hoje é aberto, variado, mutante. Creio que uma escola mais aberta a experiências mais humanas – e não somente teóricas – seria mais estimulante. Um lugar de vida, e não simplesmente um lugar onde se aprende a base para situar-se no futuro. Não quero voltar aos erros da educação permissiva, em que se permitia que as experiências fizessem qualquer coisa com os jovens, o que para mim foi um erro. Nós devemos, ao contrário, restabelecer a disciplina nas escolas. Devemos ensinar os jovens a ver que ser um adulto é respeitar determinado número de regras, é aprender, é progredir e, para isso, é preciso trabalhar. A escola deve colocar isso, mas não por meio da violência ou do terror, simplesmente porque essa é a condição para ser um adulto responsável. É preciso fazê-lo. É preciso impor aos jovens um certo número de planos para que eles se construam, porque não se pode educar uma criança somente em função do prazer, isso não existe e não é possível. Há necessidade de limites, de restrições e de disciplina para que se forme alguém capaz de dominar seu ambiente. Mas também é preciso abrir a escola às novas dimensões do mundo e ampliar os horizontes dos jovens. O caminho não está unicamente nos livros. No caso da escolha das profissões, por exemplo, para proporcionar paixões aos jovens, deve haver contatos, encontros. Não há paixão sem encontros. É essa situação que cria a paixão. E, tendo contato, experiência com encontros, com pessoas que não são seus professores. Isso seria enormemente rico para o futuro.