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Resenhas
Por dentro da enxaqueca
Oliver Sacks escreve sobre o mal que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. É mais do que uma simples dor de cabeça
Fábio Reynol
09/05/2007

"Posso estar atendendo um paciente que conheço bem, sentado do outro lado da mesa, olhando firmemente para ele. De repente, percebo que algo está errado (...) algo impossível e contrário à ordem da natureza. E então subitamente eu 'percebo' – está faltando parte do rosto do paciente: parte do nariz, uma bochecha ou talvez a orelha esquerda. Embora eu continue a ouvir e falar, meu olhar parece petrificado – não consigo mover a cabeça – e uma sensação de horror, do impossível, apodera-se furtivamente de mim."

A narração é de um psicoterapeuta que sofria de um mal que há milênios atormenta parte da população. Uma enfermidade que inspirou trechos dos romances de Lewis Carrol e ajudou a dar os tons melancólicos nos de Virgínia Woolf. Sigmund Freud, que também sofria desse mal, era fascinado por essa doença que atinge ao mesmo tempo o corpo e a mente. Entre suas vítimas estão personalidades tão notórias e diversas como Elvis Presley, Joana D'Arc, Blaise Pascal, Karl Marx, Charles Darwin, Júlio César, entre inúmeros outros. Por tudo isso, o neurologista Oliver Sacks escolheu essa instigante protagonista para inaugurar sua carreira literária.

Enxaqueca foi publicado originalmente em 1970, reunindo conhecimentos multidisciplinares sobre a doença, baseado principalmente no acompanhamento pelo autor de mais de dois mil portadores de enxaqueca. Em 1992, com mais centenas de casos engordando sua experiência clínica e com dados científicos mais recentes, Sacks voltou à sua primeira obra para ampliá-la e atualizá-la. O resultado são 429 páginas dedicadas à enxaqueca, um mal que, nas palavras de Sacks, "quanto mais se avança sobre ele, mais difícil se torna explicá-lo". O leitor médio irá entendê-lo contanto que se muna de um bom dicionário para decifrar os termos técnicos, o que não chega a comprometer a fluência da leitura.

Já no prefácio, o autor procura quebrar um arraigado mito, o de que a enxaqueca é um tipo de dor de cabeça. Na verdade, a cefaléia é apenas um de seus muitos sintomas e sequer é obrigatória, sendo que em alguns casos enxaquecosos nem se manifesta. Toda a parte I do livro é dedicada ao histórico da enfermidade e à descrição das diversas formas de enxaqueca. A parte II discorre sobre as circunstâncias causadoras das crises. Os aspectos fisiológicos e as prováveis origens biológicas da doença compõem a parte III e a IV aborda o tratamento.

Náusea, distúrbios de humor (passar de frenesi ao torpor), auras (sensações visuais, sonoras ou olfativas), aversão à luz e ao som, alucinações, escotomas (cegueira em determinadas áreas visuais) e dor de cabeça são algumas manifestações da enxaqueca. As auras visuais estão entre os sintomas mais famosos. Um capítulo inteiro é dedicado ao tema que conta com desenhos das visualizações feitos por enxaquecosos. Luzes cintilantes, formas geométricas brilhantes, desenhos complexos (fortificações) são manifestações da aura, um termo cunhado há mais de duzentos anos para designar o sintoma.

Os escotomas, por sua vez, podem ser ainda mais misteriosos. Imagine-se enxergando apenas metade de uma cena. Não se trata de fechar um olho. Os dois olhos estão bem abertos, mas só identificam a metade direita, por exemplo, do campo visual. Não é à toa que quando uma pessoa tem uma enxaqueca pela primeira vez, pode achar que está sofrendo um derrame ou mesmo morrendo. A palavra escotoma significa "sombra, escuridão". Essas "sombras" dependem do hemisfério do cérebro atingido. Um escotoma lateral faz desaparecer metade da imagem, um escotoma no centro do cérebro deixa a pessoa enxergando apenas os lados, ignorando o centro. Quando o escotoma é central e bilateral ao mesmo tempo, a visão pode ser ainda mais bizarra. O paciente enxerga apenas um "aro" da realidade tendo o centro e a periferia obscurecidos, é a chamada doughnut vision (visão de rosca). O caso narrado no início desta resenha é um exemplo de escotoma negativo que não obscurece a visão, mas a própria realidade.

Os gatilhos das crises são inúmeros e variam para cada paciente. As manifestações enxaquecosas podem ser causadas por predisposição genética, auto-sugestão ou mesmo eventos externos diversos como mudanças climáticas (ventos, tempestades...), barulho, odores, emoções violentas (raiva súbita, medo), exaustão, ingestão ou jejum, reação a drogas, movimentos passivos (balanço de um barco), alterações hormonais, etc. Nesse mar de circunstâncias, o diagnóstico e a terapia são um desafio para o médico e a subjetividade presente em muitos casos impossibilita até mesmo uma pesquisa científica mais profunda.

"A enxaqueca, em sua condição de reação, é prontamente receptiva ao condicionamento, podendo assim estar secundariamente ligada a uma enorme variedade de circunstâncias idiossincráticas da vida do indivíduo". Para Sacks, isso pode fazer com que a doença se condicione à simples expectativa de sua ocorrência. Ou seja, se o paciente costuma ter crises durante uma tempestade, a mera intuição de que uma grande chuva irá cair pode dar início a uma crise. O autor compara isso à chamada "febre da rosa", uma precipitação alérgica desencadeada quando o paciente apenas olha para uma rosa desenhada num papel.

Apesar de não generalizar a auto-sugestão como gatilho de todas as crises de enxaqueca, o neurologista conclui que esse tipo de manifestação pode complicar o entendimento sobre a enfermidade. "Uma conseqüência disso, e da relação entre pacientes sugestionáveis e médicos especuladores, é que praticamente qualquer teoria sobre enxaqueca pode vir a gerar os dados nos quais ela se fundamenta", analisa o autor.

Outro difícil obstáculo para o conhecimento da enxaqueca é que a complexidade de seus sintomas não permite estudá-la em animais. Ao contrário de vírus ou bactérias inoculadas em cobaias, a enxaqueca envolve uma série de eventos que precisam ser narrados pelo paciente, o que torna a pesquisa em animais impossível. Segundo Sacks, não poderíamos nem mesmo identificar como "enxaqueca" qualquer anomalia semelhante detectada em animais.

Ao especular sobre as origens biológicas da enxaqueca, Sacks associa a doença aos mecanismos primitivos de "medo passivo", uma reação natural ao perigo identificada por Charles Darwin. O autor da Teoria da Evolução descobriu que, sob ameaça, um animal poderia ter uma postura de medo ativo (ficar aterrorizado) ou medo passivo (ficar estarrecido). Este mecanismo é bem conhecido em animais como o gambá que simula a morte em situações de perigo. Oliver Sacks então infere que a enxaqueca possa ter se originado dessas reações de medo passivo. Com a evolução social e fisiológica, o ser humano começou a se organizar em unidades sociais maiores e ganhou um sistema nervoso mais elaborado, com isso, as reações naturais igualmente se refinaram. Um cérebro mais sofisticado permite o desenvolvimento de reflexos mais numerosos e a aura enxaquecosa, por exemplo, estaria entre eles.

Relatos sobre a enxaqueca são escritos há mais de dois mil anos. O grego Hipócrates que viveu no século V antes de Cristo, já se debruçava sobre ela. Porém, muitos documentos foram elaborados por especialistas enxaquecosos que mandaram a objetividade às favas ao abusar dos contornos românticos: "há sinais (nos pacientes) que indicam o desenvolvimento da inteligência e da sensibilidade precoces, de um temperamento crítico e ponderado" (Greppi – 1955).

Mais importante do que entender a doença, porém, é compreender a sua relação com o paciente. Para Sacks, a terapia mais eficiente é ouvir o enxaquecoso. Para isso, o neurologista recorre a Hipócrates que preconizava o tratamento do paciente e não da doença. O que nem sempre significa a cura. Um matemático recém-curado da enxaqueca voltou ao consultório de Sacks para que lhe fosse "devolvida" a enfermidade. A enxaqueca o deixava prostrado nos finais de semana, mas proporcionava surtos criativos nos dias seguintes. Sem a doença o homem se sentiu privado de sua criatividade. Muitas vezes, o paciente simplesmente não está disposto a se dedicar ao tratamento por considerar a doença um mal menor do que a terapia. Para Sacks, o terapeuta precisa respeitar essa posição e auxiliar o paciente em sua autodescoberta.

"Enxaqueca" dá um panorama amplo demais da doença para a maioria dos curiosos comuns. Detalhista ao extremo, o livro às vezes emperra em descrições pormenorizadas de casos e nas caracterizações da enxaqueca. Com isso, aumenta o seu valor como obra de consulta clínica e científica, mas é uma pedra no sapato de quem não tem a doença. Os enxaquecosos, talvez, sejam os que têm mais a ganhar; menos pelo conhecimento teórico do conteúdo e mais pelos inúmeros convites ao auto-conhecimento e ao entendimento do papel da dor em sua vida. O estudo da enxaqueca, doença de sofisticação e complexidade digna do cérebro humano, tem ensinado muito sobre por que os seres humanos "podem precisar adoecer" (palavras de Sacks) de vez em quando.