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O preço da solidão
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Resenhas
O preço da solidão
A pequena Matilda encontra na ciência e em seus experimentos uma válvula de escape para seus dramas pessoais, nessa história de uma família estereotipada, infeliz e solitária.
Por Carolina Octaviano
09/12/2010

Terceiro filme dirigido por Paul Newman, cultuado ator e diretor norte-americano, O preço da solidão (ou The effect of gamma rays on Man-in-the-moon Marigolds, título original, em inglês) é uma adaptação da peça homônima do dramaturgo Paul Zindel, e aborda o drama de uma família desestruturada, comandada por uma mãe solteira, agitada e “neurótica”, que vive entre a realidade medíocre que a cerca e o desejo de viver o chamado “sonho americano”, sempre almejando mudar de vida, ter uma casa com jardim, montar seu próprio negócio e ter uma televisão que pegue o canal seis.

Beatrice vive com suas duas filhas Ruth e Matilda. E, enquanto Matilda é o estereótipo de uma criança tímida, calada e considerada nerd, que tem a ciência como seu maior foco de interesse, Ruth é uma típica adolescente fútil norte-americana interessada em garotos e em ser uma cheerleader, desempenhando o mesmo papel que foi de sua mãe, no passado, como sugere o desenrolar da trama. Ao contrário do que ocorre nas famílias convencionais, Matilda é tida como o problema e Ruth como um modelo. Beatrice é uma personagem conturbada, com trejeitos, modos de se vestir, pensar e falar que revelam a infelicidade e a simultânea dualidade entre inconformismo e conformismo com relação ao rumo que sua vida tomou.

O estereótipo do cientista é tratado de dois modos diferentes no filme: primeiro, observa-se que, em Matilda, começam a florescer características estereotipadas dos cientistas como o uso dos óculos, a solidão que a rodeia, a não preocupação com a aparência física, a inteligência exacerbada, entre outros. Já Godman, o professor de ciências de Matilda, é visto como uma salvação pela garota, passando uma ideia fraternal e de acolhimento em detrimento de uma realidade não muito boa. O professor assume um papel bastante semelhante ao que a ciência pode representar em alguns casos como, por exemplo, a busca da cura para determinadas doenças: a esperança de que, um dia, tudo irá melhorar e o que um dia foi um problema não existirá mais. E é deste modo que se pode entender o relacionamento entre a estudante Matilda e seu professor de ciências. Godman oferece a ciência como uma válvula de escape para os problemas enfrentados por Matilda.

Nesse longa-metragem, tudo tem um ar pesado, triste, melancólico e, boa parte da história se passa na casa da família, que vive suja, com um clima carregado por conta da bagunça e das paredes pintadas de um tom escuro de marrom, passando para o espectador toda tristeza, melancolia e solidão que envolve essa família. Aquela atmosfera caótica, na verdade, parece ser um contraponto para o vazio de seus personagens centrais. Até mesmo a presença de uma senhora idosa (Annie), que é cuidada pela família e nem fala ou ouve, colabora para o sentimento de angústia e tristeza em que o filme se passa.

Para fugir do ambiente de mediocridade que a rodeia, Matilda começa a realizar experimentos com margaridas douradas que foram submetidas à radioatividade, sendo supervisionada pelo professor de ciências Goodman, que vê na menina um talento a ser lapidado, acreditando em seu potencial, ao contrário do restante da família, que diz que a ciência é bobagem e que Matilda deveria se importar com outros assuntos. A aversão da família à ciência se torna ainda maior quando Matilda vira motivo de piadas e risadas no colégio que frequenta. Beatrice, que se importa demasiadamente com as aparências e a imagem que tem perante os outros, diz, logo nas primeiras cenas: “Não gosto da ideia de que os outros riam de você, Matilda. Quando eles riem de você, quer dizer que eles riem de mim também, e da sua irmã”.

Graças ao experimento com as margaridas douradas, Matilda é escolhida como uma das finalistas da feira de ciências anual do colégio, fazendo com que Beatrice entre em crise, já que não sabe o que vestir, falar ou como se portar, caso a filha seja a vencedora da premiação. Outro fator que deixa a mãe ainda mais perturbada é que ela terá que enfrentar seus fantasmas do passado, que viveu naquela mesma escola, tendo sido vítima de chacota pelos colegas. Beatrice ensaia a frase “My heart is full” (Meu coração está cheio) inúmeras vezes, procurando a entonação precisa para pronunciá-la na possível premiação da filha, para que, desse modo, possa impressionar os outros e, assim, perder o estigma de louca e perturbada que adquiriu quando era jovem. Como ela vive de aparências e futilidades, ao contrário da filha caçula Matilda, ela vê em seu discurso a possibilidade de mudar o que os outros pensam dela. Na primeira cena do filme, inclusive, há um paralelo que demonstra as diferenças entre a mãe e a filha mais nova: enquanto Matilda está em um laboratório científico realizando experiências, Beatrice está escolhendo perucas em uma loja da cidade.

Beatrice chega atrasada e bêbada para a premiação da filha. Trajando seu vestido mais chique, para impressionar os demais, se esforça ao máximo para não demonstrar que está sob efeito do álcool. Em vão, já que todos os presentes no ginásio percebem que ela está alterada. Goodman, o professor, ao perceber o estado de Beatrice e o constrangimento dos demais, tenta segurá-la, mas é empurrado por ela, que consegue descer as escadas para dizer a única frase (tão ensaiada) de seu discurso: “Meu coração está cheio”. A mãe repete isso algumas vezes e, ao perceber que uma colega de Matilda ri dela, vira-se para a garota e, aos berros, repete novamente a tal frase, ao mesmo tempo em que todos lançam a ela olhares de piedade.

Trata-se de uma história que afirma fortemente a autenticidade como valor moral. Apesar da solidão, da tristeza que vivia e de toda sua angústia, Matilda era a única personagem verdadeiramente autêntica no enredo, não se importando com as risadas dos colegas ou com o menosprezo de seus familiares, o que a fazia ser menos vazia e ter um propósito legítimo na vida. Ela sabia que a ciência a faria ser alguém e, em seu discurso, diz que a descoberta da ciência foi decisiva em sua vida, já que a fez perceber o quão importante ela era para si mesma, em cada átomo que a compõe. “Eu acredito, com todo meu coração, que chegará o dia em que a humanidade vai agradecer a Deus pela estranha e bela energia do átomo”, afirma. Não é à toa que ela chama de “estranha” essa energia: não se trata de um mero deslumbramento pela ciência, desprovido de senso crítico: “Meu experimento mostrou alguns dos efeitos estranhos que a radiação pode produzir e como ela pode ser perigosa e se não for manejada corretamente”, alerta.

O preço da solidão (The effect of gamma rays on Man-in-the-moon Marigolds)
Direção: Paul Newman
Ano: 1972