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As reservas extrativistas e as populações tradicionais

Um novo conceito, que não exclui o homem do que se entende por natureza, que busca, ao contrário, transformar a maneira como este interage com a floresta. Essa é a proposta inovadora e inédita que fundamenta algumas iniciativas de grande mérito que surgiram nos últimos anos na Amazônia, as reservas extrativistas com desenvolvimento sustentável. Essas reservas estão conseguindo aliar a necessária preservação de áreas de grande biodiversidade com um implemento na qualidade de vida da população que já habitava essas localidades. Enfrentando inimigos do calibre de posseiros e madeireiros da região, e criando uma nova forma de pensar o bem-estar, que tenta desligar-se do padrão de consumo presente na sociedade contemporânea, essas iniciativas vêm obtendo sucesso e servindo como um interessante modelo de estratégia de conservação.
O projeto do Alto Juruá, uma dessas iniciativas, é coordenado pelos antropólogos Manuela Carneiro da Cunha, Mauro Almeida e pelo biólogo Keith Brown. Mauro Almeida, natural do Acre e professor da Universidade Estadual de Campinas, conta, nessa entrevista, um pouco sobre a experiência desse projeto, suas dificuldades e conquistas.


Com Ciência - Como surgiu o projeto de reserva extrativista do Alto Juruá?
Mauro Almeida - O primeiro projeto que surgiu foi parte de um movimento sindicalista, dentro da área onde hoje fica a reserva. Foi iniciado no começo dos anos 80, buscando a formação de delegacias sindicais. Nessa época, os delegados sindicais atendiam os seringueiros quanto à reivindicações tradicionais, porque operava-se no sistema de barracões e havia o monopolio do comércio. Os conflitos se aguçaram depois de 1980, em 82, 83, 85, quando a área começou a ser arrendada por períodos curtos aos arrendatários, para explorar mais ainda os seringueiros, que tinham pouco tempo para tirar lucro. A partir de 1987, 88, o último desses arrendadores, sr. Orley Cameli, que depois viria a ser governador do Acre, começou a planejar a exploração de madeira. A exploração de madeira numa área de reserva tem um caráter bem predatório. Então, tudo isso somado cria um clima de insatisfação, de inquietação na área.

Com Ciência- Quem participava do movimento?
Almeida
- Quem estava dentro disso eram as lideranças sindicais, das quais um rapaz chamado Chico Jinu, era um delegado sindical. Ele realizava reuniões, insistia contra a violência dos patrões, feitas para obter o pagamento das dívidas. Existiam várias espécies de violência. Enquanto isso, em Brasília, em uma reunião amazônica com lideranças sindicais, foi fundado o Conselho Nacional dos Seringueiros, do qual participou Chico Mendes. Nessa reunião, os participantes, dos vários estados da amazônia, Acre, Amazonas, Pará, Belém, Amapá, propuseram uma reforma agrária especial pros seringueiros, que seria baseada na criação das reservas extrativistas. Especificaram que queriam que as reservas extrativistas fossem criadas como terras indígenas, ou seja, sem lotes individuais, em vez disso, um território inteiro da união, destino ao usufruto exclusivo dos índios. Em 88, os seringueiros do Alto Juruá, que estavam em conflito com os patrões, conseguiram financiamento com o BNDES para montar sua própria cooperativa de comercialização, e ficar livre do sistema de barracão. Fui um dos autores desse projeto, e o outro foi o representante do Conselho Nacional dos Seringueiros, designado pela própria área. Com esse projeto acirrou-se o conflito com os patrões, porque agora os seringueiros estavam levando suas próprias mercadorias e os patrões queriam manter o monopólio. Os conflitos aconteceram durante o ano de 1989. Violência, corrupção, facada, essas coisas.

Com Ciência - Desse novo conceito de reserva surge o projeto?
Almeida
- Durante esse período foi elaborado o projeto como uma solução para o conflito social, e também de uso da área, que ia virar uma área de exploração madeireira. Surge a proposta de criação da reserva extrativista baseado na experiência da cooperativa financiada pelo BNDES. Um grande número de entidades se envolveu nessa luta. Eu continuava atuando, mas nessa época a Unicamp fez um convênio, assinado pelo reitor. A Unicamp participou até no setor jurídico. Nessa época o reitor era o Paulo Renato, que mandou telegramas e cartas, protestando contra o que estava acontecendo na área. A procuradoria geral da república, a Embrapa, outras instituições, ONG's, de fato fizeram uma campanha. No final do ano de 1989, havia sido preparado o projeto de criação da reserva, que foi criada em janeiro de 1990. Em 1988, que foi o ano de início da cooperativa, o Chico Mendes estava vivo ainda. Durante esse ano foi feito o projeto de realizar aquela cooperativa. E a morte do Chico Mendes em dezembro de 1988 contribuiu decisivamente para que saísse o financiamento. Em 1989 foi quando realmente movimentamos os recursos, beneficiado por esse clima do assassinato do Chico Mendes, e da criação da reserva também.

Com Ciência -Já existia esse modelo de reserva extrativista?
Almeida
- Não, ela foi a primeira reserva criada como uma unidade de conservação dentro do IBAMA, uma área de meio milhão de hectares. O que já ocorria desde 1987 é que o INCRA estava atendendo às reivindicações dos seringueiros e criando assentamentos destinados para extrativistas. Era uma modalidade de assentamento, mediante uma portaria. A diferença é que esta foi a primeira criada por um decreto presidencial como uma unidade de conservação. Um vantagem disso para os seringueiros, é que se podia ter uma área de meio milhão de hectares, ou então, um milhão de hectares - como ocorreu logo depois, na Reserva Chico Mendes, em Xapuri - que era transformada por decreto presidencial em uma unidade de conservação extrativista destinada aos seringueiros, passando por cima portanto dos títulos inteiramente grilados, ilegítimos, mas que eram títulos, sem necessidade do processo que o INCRA colocava em ação nestes casos, que significava indenização, avaliação. Você só desapropriava se o dono quisesse, na prática. Através do IBAMA cortou-se essa burocracia, e foi criada a área, a questão jurídica aconteceria depois. De certa maneira, a criação da reserva como uma unidade ambiental, de uma lado era uma solução do interesse dos seringueiros, de ter um terreno que não fosse loteado, e de outro do INCRA, de ser um território da união, por usufruto. Por outro lado, facilitava a desapropriação.

Com Ciência - No projeto de criação da reserva é questionado o conceito de bem-estar baseado na soma do consumo. Qual é a alternativa a este conceito?
Almeida
- Um das alternativas é a noção de qualidade de vida baseada nas capacidades humanas. O bem estar está ligado ao que você é capaz de fazer. Se você é capaz de dançar, é capaz de cantar, de estudar, de trabalhar, de gostar de alguém, isso tudo é parte da noção de natureza humana plenamente desenvolvida. Enquanto consumo é uma coisa que você tem agora e pode não ter daqui a pouco. E as capacidades humanas ninguém tira de você. Isso se traduz num investimento precoce na saúde das crianças e no desenvolvimento destas capacidades. Como eu falei, no plano físico mesmo, de acesso ao prazer, ao conhecimento, este é o principal componente da noção de bem estar. É uma idéia antiga, que está baseada no conhecimento da própria antiguidade, e tem sido defendida recentemente pelo economista que ganhou o Nobel, o Amartia Sen.

ComCiência: Quais as principais dificuldades enfrentadas para a implantação e manutenção da reserva do Alto Juruá?
Almeida:
Várias. A primeira foi a dificuldade legal constitucional. Não existia uma lei que permitisse isso. A outra dificuldade foi o alto custo de organização da população numa área de floresta. Juntar as pessoas numa cidade significa pegar um ônibus e se reunir num prédio de escola. Ao passo em que numa floresta deste tipo, onde moraram caçadores e pescadores, significa pegar o barco, andar dois dias, andar a pé dois dias, ficar longe de casa durante uma semana e depois voltar. Um custo muito alto de materiais para a ação coletiva. Outra dificuldade é o momento em que você começa a melhorar a vida das pessoas, o sucesso econômico que as pessoas cobram da situação. Aí tem o desafio de desenvolver tecnologias que sejam refinadas, produtos que sejam aceitos por mercados bastante exigentes, por que o caminho para estas populações não é a produção daquelas commodities de antigamente, a borracha bruta, a matéria prima bruta, e sim certos produtos para consumidores muito especiais e bastante exigentes. O urucum, que vai ser usado para batom por umas mulheres americanas que querem um produto orgânico. A borracha que vai ser usada pela Hermès para fazer umas bolsas politicamente corretas, na França. São produtos bastante diferenciados. Mas a dificuldade na verdade é a preparação deste capital humano que eu estava mencionando antes para que elas sejam capazes, no futuro - e já estão fazendo isso agora - administrar autonomamente, gerenciar e governar este território.

Com Ciência - Como foi organizado o livro Enciclopédia da Floresta e como aconteceu o financiamento dele?
Almeida
- Depois que a reserva foi implantada, não só por ser a primeira experiência de uma unidade de conservação ligada às populações tradicionais, enfrentando todas as dificuldades que eu falei, surgiu o plano de traçar um diagnóstico completo da situação no momento da implantação e avaliar a capacidade de essa experiência adquirida dar certo. Tanto no plano econômico quanto no plano ecológico ambiental e também no plano social. Esse projeto fazia parte originalmente - foi pensado em 1990 e feito em 92 - de um outro conjunto de mini projetos, uns com o desenvolvimento de produtos, outros para manejo agrícola e agroflorestal, saúde, educação, metas de fortalecimento da qualidade de vida, e outros ainda voltados particularmente para os conhecimentos tradicionais e o monitoramento da qualidade ambiental. A Enciclopédia da Floresta saiu deste último componente e obteve um financiamento autônomo. As outras áreas, mais ligadas ao desenvolvimento humano, saúde, educação, desenvolvimento econômico, transporte e produção, acabaram sendo absorvidas dentro de um projeto com recursos da comunidade européia e está na segunda fase de implantação. Este último componente, que era uma diagnóstico da diversidade biológica e social da reserva e o desenvolvimento de métodos para monitorar o que ia acontecer com a diversidade depois de criada a reserva, foi transformado em um componente separado e estava a procura de financiamento.

Com Ciência - O que houve então?
Almeida
- Em 1993 apareceu uma competição da Fundação MacArthur, nos Estados Unidos. Encaminhamos o projeto para este concurso, com a coordenação da Manuela Carneiro da Cunha, o professor Keith Brown (Instituto de Biologia/Unicamp) e eu. O projeto concorreu com cerca de cem outros, de universidades americanas e estrangeiras, e foi um dos cinco escolhidos. Foi o único projeto selecionado dirigido por universidades de terceiro mundo. Com estes recursos, que não eram uma coisa gigantesca não, eram aproximadamente 300 mil dólares, tivemos dinheiro pra fazer um estudo de conjunto da reserva, incluindo um quadro geológico, morfológico, solo, vegetação e da diversidade biológica. Inventariar coisas que não eram conhecidas antes. Por exemplo, hoje sabemos que existe na área uma biodiversidade para certos grupos de vegetais que é maior do que em todos os outros territórios estudados na América do Sul, de qualquer floresta tropical conhecida. No caso das borboletas tem 1600 espécies identificadas. É o número máximo conhecido. Tem-se uma indicação que isso acontece com outras espécies também, tem dezesseis espécies de primatas, que é o máximo que se poderia encontrar numa região tropical. Esses são números interessantes, porque são de uma área habitada não só por indígenas mas também por seringueiros. Mostram que, dentro de certos limites de densidade demográfica, de padrão de distribuição de população e do tipo de atividade mantida, pode-se, ao mesmo tempo, manter uma cobertura de floresta, de no caso 99%, e uma altíssima biodiversidade. A questão é como manter isso para o futuro. Dentro do projeto do Alto Juruá faz-se um trabalho de assessoria e fortalecimento das instituições locais e finalmente começamos a investir na formação de pesquisadores seringueiros, tendo início já em 95, terceiro ano do projeto. Começamos a formar os seringueiros, com um trabalho de fazer mapas, diários, registrando os animais caçados e avistados na caça, a atividade agrícola, alimentação, esses aspectos da vida na floresta. Existem diários pessoais também, afetivos. E isso começou a ser um canal de expressão intelectual e científica da própria população. Essa atividade nós transportamos também para o segundo projeto, e depois para o terceiro, iniciado este ano, nos concentrando então na formação de uma equipe de cinquenta monitores ambientais e sociais. Todos eles já estão fazendo isso desde 95.

Com Ciência - Qual a população total da reserva é e quantos são os monitores?
Almeida
- Temos cerca de 800 famílias, no total 5 mil pessoas. Os monitores são mais ou menos cinquenta deles.

Com Ciência - Qual o nível educacional dos monitores?
Almeida
- Alguns eram quase completamente analfabetos. O Chico Jinú começou a trabalhar comigo como pesquisador em 1987 e era um dos sindicalistas ativos desde 1981. Ele aprendeu, como a maior parte dos outros, não frequentando a escola, mas com a mulher dele e tinha muita dificuldade com a leitura. Ao longo do contato com a atividade sindical, da criação da reserva, tendo sido o primeiro presidente da associação e depois o segundo, ele desenvolveu muito a capacidade de escrever, de ler. Taí uma pessoa com grande talento. Ele conserta rádio, gravador, televisão, essas coisas. Hoje ele trabalha com computador. O irmão dele, Roxo, numa das visitas eu eu fiz ao Jinu na mata, disse que queria também fazer pesquisa. Ele fazia uns garranchos, não conseguia escrever, só umas letras do nome. É um exemplo de pessoa que hoje escreve razoavelmente bem. Os outros já tinham escrita básica. Havia situações diferentes, desde aqueles que praticamente se alfabetizaram fazendo diários e registros e atas, e outros que já tinham uma base de escrita, geralmente por aprender com outra pessoa. Essas várias pessoas entraram pro projeto em situações diferentes. Não há um objetivo de ensinar a escrever, isso é um subproduto da atividade principal, que é fazer pesquisa, analisar os dados e publicar forma de trabalhos

ComCiência - O livro está pronto desde 97?
Almeida
- É um dos primeiros produtos desse projeto de pesquisa iniciado em 93 que foi até 96, - a pesquisa continuou, com o segundo e com o terceiro projetos- e o resultado disso foi esse volume Enciclopédia da Floresta. Mas vai haver outros volumes com o resultado da pesquisa. Enciclopédia da Floresta é um componente deste projeto e o objetivo era colocar no papel o conhecimento tradicional dos seringueiros e dos indígenas. Principalmente visando mostrar que estes seringueiros deslocados do nordeste pra amazônia - na verdade já são a primeira e segunda geração - são pessoas que traziam do nordeste uma cultura complexa, de conhecimentos da natureza. Na amazônia eles tiveram que reelaborar esta cultura, em grande parte em contato com as populações indígenas, mas trazendo também muita contribuição deles. Para nós isso refletia a riqueza deste tipo de conhecimento, comparado com as outras populações indígenas da região.

Com Ciência - Porque a demora na publicação?
Almeida
- Não acho que demorou tanto, são três anos. O problema inicial era juntar todo o trabalho de um grande número de colaboradores, 30 ou 40 trabalhos. Quando os primeiros entregaram, ainda se passou um ano ou dois até os últimos entregarem. Na primeira vez que o prof. Keith Brown entregou o relatório para publicar tinha 760 espécies de borboleta, agora está em 1600. A cada viagem de campo os dados se alteram, no caso de muitos dados foi preciso refazer as pesquisas, como no caso dos índios Ashankina, que não eram objeto inicial do projeto e foram agregados no projeto da Enciclopédia da Floresta, significando um ano de pesquisa e elaboração de texto pela antropóloga Margareth Mendes e por Moisés Pianko, um Ashaninka do rio Amônia. No caso dos índios Kaxinawá foi semelhante. Em alguns casos você tinha o texto final pronto, no caso dos índios Ashankina, porque tinham poucas pessoas trabalhando. No caso dos seringueiros tinha um grande número de autores trabalhando, um com vegetação, outro com a construção da casa, outro com o cotidiano, foi um trabalho muito complicado de editar o livro. Pegar todos estes pedaços feitos em ritmos diferentes e dar um ponto final, colocar num formato de publicação de ampla circulação.

Com Ciência - Qual o objetivo da publicação?
Almeida
- Tomamos a decisão de dar visibilidade a essa riqueza de conhecimento, riqueza cultural de uma população que costumava ser vista como muito pobre culturalmente. A idéia era atingir essa visibilidade lançando uma publicação de ampla circulação. Daí a idéia de fazer uma publicação bonita, atraente para o leitor e com uma editora de âmbito nacional, que fizesse o livro realmente circular. Originalmente a gente tinha a idéia de fazer duas publicações simultâneas: uma publicação nacional e uma série de fascículos de custo mais baixo, para circulação local entre os próprios seringueiros. Uma das dificuldades era essa, o custo disso era muito alto, então foi necessário buscar outras fontes de financiamento e foi necessário concentrar numa publicação só, pelo menos no começo, embora eu ainda pretenda fazer a publicacão da série de fascículos, começando no ano que vem com a colaboração de algumas entidades. Foi necessário buscar outras fontes de dinheiro e reduzir o âmbito da publicação. Passou a girar com uma contribuição da Fapesp, para completar o trabalho de edição preliminar do texto, e depois do Ibama, que passou a contribuir com uma parte bem significativa do custo de produção. Aí entrou uma outra questão em cena, que era como acertar o aspecto jurídico de uma co-edição entre o Ibama, a Companhia das Letras. O aspecto jurídico terminou sendo resolvido em janeiro desse ano. Como é uma produção meio complicada ela demora mesmo.

Com Ciência - O livro sai quando?
Almeida
- Está previsto para janeiro do ano que vem.

Com Ciência - O projeto reúne especialistas de diversas áreas. O trabalho interdisciplinar é muito difícil?
Almeida
- Eu não acho muito não. Eu acho bastante bom e agradável, talvez porque eu já tenha me acostumado com isso. O que exige é abertura de cabeça para continuar aprendendo depois de velho e circular entre coisas e linguagens diferentes. Depois é muito bom, porque significa aprender mais coisas. Este projeto tem participantes que são muito bons. Uma das coisas que facilita o trabalho interdisciplinar neste caso é que você tem pesquisadores de ponta, de altíssimo nível em todas as áreas. Quanto mais uma pessoa sabe sobre o assunto, conhece, tem um conhecimento profundo e não apenas superficial, mais ela tem facilidade para se comunicar com quem não sabe, para ensinar. Uma pessoa como o Keith Brown, que é um dos coordenadores, um grande cientista, um sábio, com um conhecimento profundíssimo e extensíssimo em vários assuntos, de ecologia, da distribuição geográfica das espécies, biogeografia, de química, de ecologia química, de zoologia, borboletas em particular e várias outras coisas, é o tipo de pessoa que pode passar o dia inteiro com os seringueiros na floresta dando aula sobre a interação química entre insetos e plantas de uma maneira fascinante que todo mundo gosta. Eu aprendo também. Tenho uma profunda confiança neste tipo de pesquisador. O Adão José Cardoso, já falecido, que era a pessoa que trabalhava com os sapos, tinha essa mesma capacidade de juntar um conhecimento bastante profundo com uma orientação fácil e até carisma. Ele era extremamente popular com os seringueiros, que gostavam de sair com ele e ir pra mata de noite, pegar sapo e cobra, botar num saco, andando num charco com água pela cintura, em plena noite. O Henrique é geólogo, do Instituto de Geociências (Unicamp), especialista em pedra e em um sistema de sensoreamento remoto. Na verdade, em parte se especializou ao longo do projeto na aplicação deste sistema de sensoreamento remoto, ou seja, a interpretação de imagens de satélites, a problemas ecológicos. Sobretudo o da classificação e identificação da vegetação e da ação antrópica sobre esta vegetação. E a turma que trabalhava com vegetação, especialistas internacionalmente reconhecidos, pessoas com enorme competência, uma delas o Marcos Silveira, que trabalha com a equipe do New York Botanical Garden. Mas uma das pessoas principais nessa área durante o nosso projeto foi uma botânica francesa chamada Laure Emperaire, que trabalha no Brasil há muitos anos, cuja mãe, Anette Leming-Emperaire, foi uma importante arqueóloga que trabalhou muito no Brasil. Quer dizer, uma pessoa muito ligada ao Brasil, tinha essa capacidade também, de trabalhar no campo com os seringueiros, fazendo uma pesquisa de importância extremamente elevada no plano botânico. Sei que essas coisas todas se misturavam, botânica, zoologia, geologia de solos, pedologia, tinha antropólogos, um economista também na brincadeira, e de repente eu estava atuando como orientador científico de dois biólogos da Unicamp, de um economista da PUC-SP, além dos meus alunos da antropologia. Eu nunca senti dificuldade não. A dificuldade era mais de trabalhar com uns colegas antropólogos do que com essa turma de biólogos, geocientistas, botânicos.

"Surgiu a percepção nos anos 80 que havia a superposição das áreas de riqueza biológica e de riqueza natural e, por outro lado, de populações pobres"

Com Ciência - A amazônia é ocupada por grupos diferentes, alguns povoando a região há muito tempo. Qual o critério para classificá-los como populações tradicionais?
Almeida - A noção de populações tradicionais não é um instrumento de classificação de grupos da amazônia. Ela não se refere à amazônia em particular, aliás. Ela passou a circular em vários níveis, no nível governamental, no nível das instituições internacionais, nos planos de governo, de bancos financiadores, começou a circular no começo da década de 1980, identificando grupos que se associavam a duas idéias: o conceito de desenvolvimento sustentado, que aparece na década de 80; e populações que antes eram chamadas de nativas, populações pobres. Surgiu a percepção nos anos 80, enfim, de órgãos públicos, bancos e outras entidades, que havia a superposição das áreas de riqueza biológica e de riqueza natural, e por outro lado, de populações pobres nestas áreas. Ao mesmo tempo em que se começou a falar no desenvolvimento sustentado. Então a junção dessas coisas todas levou ao surgimento de um novo ator do desenvolvimento, as populações tradicionais. Legalmente este nome passou a existir, sendo citado na lei que criou as reservas extrativistas, está num órgão do Ibama, que se chamou Centro Nacional de Populações Tradicionais, está em documentos de entidades multilaterais, que analisam recursos para investimento. Passou a ser um rótulo, que designa um tipo de grupo social que se identifica como um agente do processo de desenvolvimento sutentável, que têm baixo impacto sobre o meio ambiente, e é visto desta maneira pelo resto da sociedade. Eu não acho que esta expressão tenha um significado em si mesma, ou seja, populações tradicionais como um grupo humano que tenha caraterísticas tal e tal. Vou dar um exemplo: Houve um tempo em que o governo queria criar uma legislação especificando quem seria índio. Então quem seria índio? Índio é quem tem características tradicionais indígenas. E que características são essas? Sei lá...falar a língua indígena, andar nu, fazer rituais de tal tipo...como é que você pode fixar caraterísticas desse tipo e dizer que só é índio Kaxinawa, que só é índio Kayapó quem tem essas caraterísticas? Então o Kayapó que estudar numa escola e souber falar português, souber andar na cidade, não é mais Kayapó? E quem decreta? Um funcionário da Funai? Eu acho que não. Na época em que houve esse embate jurídico esta proporsta foi derrotada, a partir da idéia de que era índio quem se identificava como tal e era reconhecido pela sociedade como índio. Quem vai dizer quem é Kayapó são os Kayapó. Assim como quem é brasileiro é definido pela legislação brasileira. A gente pode adotar pessoas, pode ter naturalização. Eu acho que esta definição é politicamente adequada. No caso das populações tradicionais é a mesma coisa. Não queremos dizer que quem é população tradicional é quem anda descalço, quem não sabe ler e escrever, quem mora lá no meio do mato. As populações tradicionais são aqueles grupos, que já sendo habitantes a algum tempo daquela região, estão entrando neste processo de desenvolvimento com baixo impacto ambiental, visando as melhorias de qualidade de vida. É assim que o grupo se auto-identifica atualmente como tradicional.

Com Ciência - E como funciona na prática?
Almeida
- Na prática significa o seguinte, atualmente existem várias linhas de financiamento e várias possibilidades de conseguir terra, que você obtem, se você se definir como população tradicional. Como na reserva extrativista, eu tenho que ir no Ibama e fazer uma reivindicação de criação de reserva extrativista, que é uma figura destinada a populações tradicionais. O que eles vão ver lá é se o grupo que habita essa região tem um potencial, uma organização, se o território está em bom estado, enfim, se as propostas apresentadas por este grupo, são capazes de manter esta área mais ou menos em condições, o que vai dar origem depois ao plano de manejo. Então ela é uma população tradicional. Ninguém vai tirar a carteira de identidade para ver se é descendente de caboclo, ou se tem cultura tradicional. Agora, é claro que uma colônia do Paraná, que chegaram nesta mesma região aqui, tem um requerimento de terra para o Incra, vai ter maior dificuldade, porque falta uma base histórica para esta reivindicação. Se o grupo está morando lá, da mesma maneira que um posseiro, ele tem como base da sua reivindicação, o fato de que ele já está naquele território. A ligação com o território é o primeiro passo importante. Depois você se compromter a usar no futuro, de uma maneira conservacionista, digamos assim. Quem faz isso se encaixa hoje na definição de tradicional. Aí não importa se está usando calça jeans, se gosta de rock, o problema é deles. Essa é a posição que o movimento está adotando.
Eu acabo de vir de Brasília, de uma reunião de quase cem trabalhadores extrativistas, da amazônia, com o perfil que acabei de descrever. Eles estão sendo mapeados pelo Ibama a partir de seus projetos, de suas demandas. Todo mundo que atualmente está organizado numa associação, envia projetos pedindo verbas de financiamentos para desenvolvimento com um perfil de conservação na amazônia e baseia-se numa presença histórica anterior, está nesse mapeamento.

Com Ciência - É possível separar a militância política do trabalho intelectual, diante de problemas tão graves quanto os que acontecem entre índios, seringueiros e garimpeiros? Almeida - É difícil. Depende do que você chama de militância política. Dá para fazer uma certa separação da militância certamente partidária. Se você trabalhar num projeto que significa terra e riquezas naturais você está numa arena de interesses conflitantes, entre políticos, representantes daqueles que estão prejudicados na sua atividade. Então é frequente que os antropólogos que trabalham com populações indígenas sejam perseguidos e vítimas de processos ou coisas desse tipo. Isto acontece com a professora Nádia Farage (antropóloga da Unicamp) Ela chegou à noite para iniciar um trabalho preliminar de demarcação de área indígena e no dia seguinte acordou com cinquenta fazendeiros que a expulsam da área, em situação de risco de vida. Isso em meio a uma campanha de imprensa, com todos os jornais acusando-a de estar indo lá tirar a terra dos fazendeiros e dar pros índios, criando um clima de alta animosidade, com risco de vida.

Atualizado em 10/11/00

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