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Shindo Renmei: lembranças da Segunda Guerra

Exercendo pela segunda vez o mandato de vice-prefeito da cidade de Suzano (SP)- e já reeleito para a terceira -, o cirurgião médico Kazuhiro Mori é filho e sobrinho de duas pessoas que foram assassinadas pela Shindo Renmei, a seita nacionalista que, nos anos 40, matava os imigrantes japoneses que acreditavam na derrota do Japão na Segunda Guerra.

Sobre a influência desse episódio em sua vida pessoal e na imagem da colônia japonesa no Brasil, o Dr. Kazuhiro Mori dá um depoimento exclusivo à revista Com Ciência.

"O delegado dizia: 'Mori, você tem um rádio em casa, ele pega o Japão, todo mundo sabe. Mas, pelo amor de Deus, quando você for pegar de madrugada a irradiação japonesa, cobre com um cobertor, para ninguém escutar'."

Com Ciência - O senhor já leu o livro do Fernando Morais, Corações Sujos?
Kazuhiro Mori
- Ainda não li. Mas aqui vai, vamos dizer, uma interpretação minha, aquilo que eu sinto. Tudo aquilo que eu nunca falei para ninguém, nunca conversei com ninguém, vai todo mundo acabar sabendo. Porque não tem jeito, tem livro, tem revista, saiu no Fantástico, essa coisa toda. Não adianta mais fazer segredo da coisa. No lugar onde eu vivi, estudei e fiz a faculdade de medicina, nunca ninguém soube dessa coisa que aconteceu na minha família, porque eu não abria a boca quanto a isso. Mesmo porque eu sempre senti que a imigração japonesa, que se iniciou em 1908, de início foi considerada, até a década de 40 - vamos dividir o período da imigração japonesa no Brasil em antes da Segunda Guerra e depois da Segunda Guerra- não só pelos historiadores, mas por pessoas que fizeram a História do Brasil, fizeram livros de Geografia, os sociólogos do Brasil, sempre consideravam a imigração japonesa uma imigração não benéfica.

Com Ciência - Que motivos o senhor vê para isso?
Mori
- Porque a questão, por exemplo, da assimilação, da aculturação, era negativa. Eu estava no 3o. ou 4o ano do ginásio e me doía muito porque, no livro de Geografia, quando estudava o problema da corrente migratória no Brasil, constava a imigração japonesa como uma imgiração não benéfica. Era maléfica, era prejudicial. Isso me deixava muito triste. Mas depois da guerra, os nipo-brasileiros tiveram outro tipo de comportamento e outro tipo de atuação. E hoje nós sabemos, toda a sociedade brasileira sabe, que a imigração japonesa foi altamente benéfica e está trazendo a sua contribuição, o seu lado positivo, no grande trabalho da construção chamado "construção da nação brasileira". Isso eu me sinto um tanto orgulhoso levando-se em consideração a minha descendência. Eu sou nissei, filho direto de japoneses, meus pais eram japoneses.

Com Ciência - Como o senhor avalia o episódio da Shindo Renmei?
Mori
- É um episódio que é uma mancha negra da vida dos nipo-brasileiros no Brasil. Se tudo aquilo que aconteceu fosse em função de sentimento, de tradição, de formação propriamente dita do japonês, que achava que japonês nunca perdeu uma batalha, uma guerra, que o japonês é um povo diferente, eu até aceitaria, porque eles foram criados desta forma desde crianças. Mas a verdadeira história da Shindo Renmei - eu não sei se quem está fazendo este livro está fazendo bem, em sua profundidade -, a verdadeira história tem um fundo econômico, é uma página vergonhosa porque nasceu de um pequeno grupo de pessoas, não muito íntegras, pessoas maldosas, pessoas de formação moral não respeitável. Eles fizeram nascer a Shindo e, em função dos japoneses serem muito fanáticos, falaram: "vamos ganhar dinheiro com isto." Espalharam pelo Brasil afora, pelos quatro cantos do Brasil, espalharam: "não, o Japão não perdeu a guerra, o Japão ganhou a guerra". E começaram a vender passagem de volta para o Japão e aqueles que pudessem comprar passagem teriam os seus primeiros lugares para serem repatriados ao Japão. Quem acompanhou toda a evolução da guerra sabe que o Japão não tinha condição de continuar nela. Depois de fins de 43, no início de 44, coisa estava difícil.

Com Ciência - Como o senhor ficou sabendo da morte do seu pai e do seu tio?
Mori
- Eu era estudante e eu morava num pensionato em Araçatuba, cidade vizinha de Bilac. Eles foram assassinados no período da noite, talvez 8 horas da noite, uma coisa assim. Meu tio era meu pai de criação. Ele tinha um estabelecimento, um bar muito grande, um dos maiores bares da cidade de Bilac, e, sob o ponto de vista econômico, não era uma pessoa que tinha privações ou dificuldade, estava bem de vida. De repente, numa noite, talvez assim 9 horas da noite, vem um telefonema de Bilac: "Olha, pega um táxi e volta em casa correndo." Peguei um táxi imediatamente e voltei. Mas, no caminho, eu senti que algo de grave tinha acontecido. Eu já temia por esse tipo de ataque, qualquer coisa.

Com Ciência - No livro Corações Sujos, o Fernando Morais aponta que um dos motivos dos assassinatos do seu pai e do seu tio poderia ser o fato de eles estarem bem de vida. O senhor acha que isso é verdade?
Mori
- Não, não acredito. Porque meu pai verdadeiro, que foi assassinado junto com o meu tio, era alfaiate, mas aposentado. Quem já estava tocando a alfaiataria eram meus dois irmãos mais velhos. Agora, o meu tio não era uma pessoa assim um "imigrante lavrador". Lá no Japão ele tinha cursos, ele tinha instrução, ele era funcionário público. Como a família resolveu vir para o Brasil, ele resolveu vir também junto. Mas era pessoa mais esclarecida, mais estudada. Agora, antes de ter o seu bar, ele já tinha uma casa comercial de secos e molhados, fundou uma sociedade, uma empresa maior, ele foi diretor-gerente dessa sociedade - eu tinha seis, sete anos de idade, mas eu me lembro - e depois ele desfez a sociedade. Mas ele não era nenhuma pessoa abastada, rica. Eu tinha condição, por exemplo, de estudar. Nem todos na época tinham condição de fazer o curso ginasial, porque precisava ir numa outra cidade maior. E ele não queria que eu estudasse. Falava: "Não, para que estudar? Vai acabar a guerra e nós vamos todos embora para o Japão."

Com Ciência - O seu pai e seu tio sabiam que o Japão tinha perdido a guerra?
Mori -
Ah, sim. O meu tio tinha um diário onde ele tomava nota. Ele tinha a evolução todinha desde o início da guerra até o término, tudinho escrito à mão, porque ele fazia o diário da irradiação que ele pegava de Tóquio. E, naquela época, os japoneses não podiam ter rádio. A polícia levou tudo embora. Como meu pai de criação, meu tio, era uma pessoa bem quista em Bilac, o delegado e a polícia, eram todos companheiros e amigos, o delegado dizia: "Mori, você tem um rádio em casa, ele pega o Japão, todo mundo sabe. Mas, pelo amor de Deus, quando você for pegar de madrugada a irradiação japonesa, cobre com um cobertor, para ninguém escutar, porque senão fica ruim para mim, senão vou precisar levar embora esse rádio" E ele ficou com esse rádio durante todo o período de guerra.

Com Ciência - Depois do fim da guerra sua família não quis voltar para Japão?
Mori
- Depois que terminou a guerra, depois de talvez uns 10 dias mais ou menos, no meio de agosto de 45, um dia o meu tio me telefona lá para o pensionato em Araçatuba e disse assim: "volta em casa um pouco que papai quer conversar com você." Eu jantei em casa, ele fechou o bar mais ou menos lá por onze horas da noite, tomou um banho no o-furô, ele me fez sentar numa mesa e, muito triste, com lágrimas nos olhos, começou a conversar comigo. Disse: "É, filho, o Japão perdeu a guerra." Aí eu falei - "Pai, você está cansado de saber, está no rádio, tem a imprensa, jornal, tudo." E ele disse: "Eu pedi para você voltar porque eu quero conversar com você o seu futuro no Brasil.". E continuou, "Olha, eu tinha o grande sonho de toda a família nossa ir embora para o Japão. Mas hoje todo o plano mudou completamente. Não adianta nem pensar em ir embora para o Japão, uma nação destruída, não tem nenhuma estrutura. Já, que você nasceu aqui, que você é brasileiro, eu quero fazer um pedido: eu quero que você se torne um bom e um grande brasileiro. Tudo que daqui para a frente você tiver que pensar, tiver que fazer, tiver que falar, você vai falar como brasileiro e sua pátria é o Brasil, não tem que pensar em outra coisa. Eu, por exemplo, vou enterrar meus ossos aqui no Brasil, e não num outro país. Estou vivo, estou forte, graças a Deus, e eu quero trabalhar muito tempo ainda. Mas eu espero que você seja um brasileiro que dê orgulho para a nossa família." E só para falar isso ele me fez voltar de Araçatuba até Bilac. São certas coisas que a gente não esquece porque o pensamento dele, o sentimento dele teve uma guinada total, mudou completamente. Eu achei isso aí um ensinamento muito marcante.

Atualizado em 10/12/00

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