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http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/03.shtml

Autor: Carolina Cantarino
Data de publicação: 10/10/2004

Cyberpunk, a ficção científica contemporânea

Em 2004 completam-se 20 anos da primeira publicação de Neuromancer. A obra literária de William Gibson é considerada o marco inaugural do que se convencionou chamar de  cyberpunk, o primeiro movimento cultural a refletir criticamente sobre as implicações trazidas pelas novas tecnologias da informática. O “herói” de Neuromancer é Case, um hacker originário de uma megalópole norte-americana destruída pela Terceira Guerra Mundial. Ao roubar seus patrões – para os quais invadia bancos de dados de grandes corporações – recebe como punição uma toxina, implantada no seu sistema nervoso, que o impede de freqüentar a “euforia incorpórea do cyberespaço”.

O “ex-cowboy do cyberespaço” começa, então, a praticar pequenos crimes nos subúrbios de Tóquio, onde conhece Molly, uma espécie de samurai das ruas, dotada de implantes oculares e lâminas no lugar das unhas. Molly o apresenta a um ex-oficial das Forças Especiais, que lhe oferece a cura em troca da sua participação numa missão especial que constitui boa parte da trama do livro, recheada de violência, inteligência artificial, drogas, empresas transnacionais, ciborgues, cultura japonesa, misticismo e filosofia.

A narrativa de Neuromancer faz lembrar alguns filmes que são considerados referências importantes dentro da ficção científica cyberpunk: os filmes Blade Runner (baseado no livro Do androids dream of a electric sheep?, de Phillip K. Dick), lançado em 1982 por Ridley Scott e a trilogia Matrix, iniciada em 1999 pelos diretores Larry e Andy Wachowsky. Essas obras mantêm relações interessantes entre si.Blade Runner e Neuromancer trazem referências à obra de Phillip K. Dick, considerado um autor clássico da ficção científica. Além disso, compartilham um contexto histórico comum: os Estados Unidos do começo da década de 1980, da Guerra Fria e do início da popularização da informática, com os microcomputadores. O próprio William Gibson conta que, quando foi assistir à Blade Runner, saiu na metade da projeção do filme, já que estava começando a escrever Neuromancer. A atmosfera sombria da cidade, o bairro oriental e os diálogos dos protagonistas lembravam demais o livro que ele próprio estava escrevendo.

Os irmãos Wachowski, por sua vez, assumem que Neuromancer foi uma das referências (para muitos um plágio) para a saga do hacker Neo, uma espécie de messias destinado a lutar contra as máquinas que mantêm a humanidade presa a uma simulação do que seria a realidade.

Todas essas obras condensam características definidoras do cyberpunk. Na medida em que, ao retratar o futuro, a ficção científica tende a discutir as implicações sociais da ciência e da tecnologia no presente, para muitos, o cyberpunk seria uma reflexão política assim como a expressão estética e cultural daquilo que é chamado como sociedade pós-moderna.

A estética pós-moderna no cyberpunk

William Gibson foi quem inventou o neologismo “cyberespaço”, descrito em Neuromancer como uma “alucinação consensual” da mente, alcançada através da técnica do “jack in” (conectar o cérebro através de um plugue implantado na nuca). Cyberespaço virou sinônimo para internet e para a intrincada relação entre o virtual e o real no mundo contemporâneo.

“Gibson utiliza muitos termos ligados à tecnologia, principalmente da programação de computadores e dos hackers, para criar uma linguagem própria”, afirma Adriana Amaral, jornalista, doutoranda em comunicação social pela PUC/RS. “O interessante é que o próprio Gibson afirma que não compreendia muita coisa sobre computadores na época.Neuromancer foi escrito a partir de um entendimento poético de Gibson sobre a tecnologia que estava surgindo”, afirma Amaral. Mais do que uma antecipação sobre as possibilidades de utilização das novas tecnologias, a importância de Neuromancer reside nas suas inovações estéticas postas no plano da linguagem (embora muito da tecnologia descrita por Gibson tenha se mostrado plausível). Essas inovações estéticas permitem classificar a ficção cyberpunk de Gibson enquanto uma ficção pós-moderna.

Gibson faz bastante uso das citações e da intertextualidade. Através da utilização de variadas referências –  desde um conhecimento aprofundado da cultura japonesa, passando pelo punk rock e a literatura policial – o autor rompe com as fronteiras entre a chamada “alta cultura” e a cultura de massas: “William Gibson e outros autores cyberpunks, influenciados por ele, tais como Bruce Sterling, John Shirley e Pat Cadigan compartilham a visão de que suas influências se originam tanto da literatura beatnik de William Burroughs quanto da ficção de Phillip K. Dick e de bandas como Velvet Underground e Stooges”, lembra Adriana Amaral.

Distopia cyberpunk

A crença no progresso científico e num futuro melhor para a humanidade através das possibilidades oferecidas pela tecnologia seria uma característica da modernidade, presente em autores da virada do século XIX para o XX tais como Júlio Verne e H. G. Wells. Essa visão otimista sobre a ciência moderna começa a ser deslocada nas obras de Aldous Huxley (que publica Admirável mundo novo logo após a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica norte-americana de 1929) e George Orwell (que lança 1984 após a Segunda Guerra Mundial). O otimismo começa a ceder lugar a uma visão distópica, pessimista do futuro, que se torna característica da ficção científica a partir de então.

Os possíveis avanços da ciência e da tecnologia passam a ser utilizados como uma espécie de alegoria da sociedade contemporânea. Críticas às instituições, seja ao poder totalitário do Estado, seja às grandes corporações capitalistas, tornam-se recorrentes nas descrições de um futuro no qual a humanidade é controlada de modo absoluto pelas máquinas ou pelos grandes conglomerados que monopolizam a tecnologia (tais como a Tyrell Corporation, a empresa de engenharia genética que fabrica os replicantes em  Blade Runner).

A possibilidade de subversão do domínio das máquinas e das grandes corporações surge na literatura cyberpunk. Essa seria a especificidade da visão distópica do cyberpunk em relação a outros gêneros da ficção científica: inspirado pela ideologia anarquista e pela desobediência civil pregada pelo movimento punk, o cyberpunk questiona as relações de poder e o monopólio do uso da novas tecnologias na sociedade contemporânea.  Não é a toa que um personagem recorrente nas tramas de cyberbunk seja o hacker capaz de roubar ou manipular dados, piratear softwares e assim, “lutar contra o sistema”.

“O rompimento com uma visão distópica do futuro, concebida enquanto controle total, está presente não só na ficção científica mas também nos próprios cyberpunks reais”, afirma André Lemos, sociólogo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo Lemos, é preciso lembrar que o cyberpunk não se restringe à literatura de ficção científica, mas constitui toda uma cultura jovem que se expressa nos jogos eletrônicos, nas revistas em quadrinhos, fanzines, e nas práticas de pirataria digital. A cultura cyberpunk potencializa a tecnologia como uma ferramenta de sociabilidade. Os cyberpunks querem participar do universo da infomática e rediscutir suas regras e orientações na cultura contemporânea. Neste contexto é que surgem, por exemplo, movimentos políticos tais como o chamado software livre: “A cybercultura seria a expressão de uma confluência entre essa nova sociabilidade e as novas tecnologias da informação”, reitera o sociólogo.

Nem tão pós-moderno assim

Além do hacker, outra figura recorrente na ficção científica cyberpunk é o ciborgue. “A característica central do cyberpunk é a relação homem-máquina simbolizada, no limite, pelo ciborgue, que expressa a perda da estabilidade entre as fronteiras do que seria artificial ou natural na chamada sociedade pó-moderna”, afirma Adriana Amaral. Para a jornalista, esse apagamento de fronteiras simbolizado pelo ciborgue seria a expressão da própria subjetividade pós-moderna. Impossível não lembrar do “caçador de andróides” Deckard que, na sua relação com os replicantes, em Blade Runner, começa a sofrer uma crise de identidade ao suspeitar da sua própria humanidade.

O ciborgue é um personagem que escapa, assim, às distinções comuns entre humano/máquina e orgânico/artificial difundidas em nosso pensamento. Num mundo no qual várias formas de intervenção no corpo humano são cada vez mais disseminadas – desde implantes e próteses às possibilidades trazidas pela biotecnologia -  há quem se utilize, nas ciências sociais, da figura do ciborgue, para refletir sobre a sociedade contemporânea na qual os dualismos baseados na diferença entre natureza e cultura fazem cada vez menos sentido.

Mas nem todas as fronteiras foram, de fato, apagadas. Se o ciborgue enquanto figura-chave da ficção cyberpunk representa a identidade dos sujeitos na sociedade pós-moderna, segundo Adriana Amaral, é necessário lembrar que o cyberpunk ainda reproduz alguns dualismos, característicos do pensamento ocidental tal como a separação entre corpo e mente: “Em geral, a ficção científica cyberpunk ainda está muito presa a essa noção. Um exemplo: quando um personagem morre ou sofre algum acidente dentro do mundo virtual, ao qual geralmente ele está conectado através da mente, o corpo real dele também é afetado de alguma forma”, lembra Adriana Amaral.

“Além da reedição de uma dicotomia entre corpo e mente, existe uma perspectiva religiosa fortemente presente na ficção científica cyberpunk: a idéia de uma transcendência da carne”, afirma André Lemos. Várias interpretações religiosas (cristãs, budistas, hinduístas) foram feitas sobre a trilogia Matrix. A idéia comum a todas elas é a valorização da mente ou do espírito em detrimento da carne e do corpo. A figura do ciborgue também expressaria essa desvalorização do corpo humano. Resultado de um híbrido de próteses e partes orgânicas no qual a parte artificial tende a minimizar alguma deficiência do organismo, aumentando, assim, o poder potencial do corpo, o ciborgue revelaria uma hierarquização entre o natural e o artificial; este último tende a prevalecer e ser mais valorizado, na medida em que oferece a possibilidade de se corrigir e potencializar o corpo humano que se mostra frágil e, no limite, dispensável.

(CC)

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Atualizado em 10/10/2004

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