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http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/05.shtml

Autor: Yurij Castelfranchi
Data de publicação: 10/10/2004

A academia vai para Hollywood e o cinema para a sala de aula

Em julho passado, 15 cientistas de várias disciplinas, vindos de todos os Estados Unidos, passaram um final de semana raro em Hollywood. Sim, nos estúdios cinematográficos mais famosos do mundo. Mas não foi um passeio turístico. Os 15, selecionados entre 50 candidatos, foram até lá para aprender a escrever roteiros para TV e cinema. A idéia, por um lado, surgiu do velho desconforto dos cientistas frente às freqüentes imprecisões ou erros científicos presentes na ficção (explosões barulhentas no espaço, fatos e conceitos científicos transformados em pseudociência ou magia). Mas havia também um outro objetivo: tentar contribuir para que a imagem da ciência e da profissão do cientista fosse menos assustadora ou aborrecida e mais cativante para jovens e crianças. O encontro, um workshop de dois dias no American Film Institute, é um exemplo recente, entre tantos, de como a ciência namora, desde sempre, a ficção. E de como esse fascínio mútuo vem ganhando novos espaços.

Cada vez mais os cientistas estão se tornando consultores e autores para a grande mídia. Marvin Minsky, um dos mais celebrados pesquisadores na área de inteligência artificial, foi consultor de Stanley Kubrick, já na década de 60, para o filme 2001: uma odisséia no espaço. Hoje, inúmeros cientistas são contratados pelos estúdios cinematográficos e televisivos (leia artigo). Ao mesmo tempo, a ficção científica está entrando na sala de aula. Alguns cientistas juntaram as duas coisas. Utilizam a ficção como instrumento didático e se tornam novelistas e romancistas, em tempo parcial ou integral.

“Eu estudava evolução biológica e comunicação animal”, explica Julie Czerneda, cientista canadense e romancista. “A ficção científica sempre foi meu parque de diversão, desde que a descobri como jovem leitora. Um dia, comecei a imaginar na sala de aula experimentos mentais, utilizando contos e histórias. Quando me tornei autora de livros didáticos, minha editora sugeriu que enviasse também meus escritos de ficção. Depois que saiu meu primeiro romance, em 1997, me tornei novelista em tempo integral. Tem muito cientista hoje escrevendo ficção, mas acho que na verdade sempre teve”.

Mark Brake, físico e professor de comunicação da ciência na Universidade de Glamorgan, no País de Gales (Reino Unido), concorda. “Não acho que a presença de cientistas como autores de FC seja uma novidade. A ficção foi usada pelos cientistas desde suas origens. H.G. Wells era, em certo sentido, um cientista. E o grande astrônomo e matemático Johannes Kepler escreveu uma história de ficção, O sonho, já em 1634. A ficção científica apareceu como tópico de estudo comum na academia já há trinta anos. Muitos cursos começaram a pipocar na década de 70, e surgiram diversos jornais acadêmicos respeitados, como Foundation, no Reino Unido, e Science Fiction Studies, nos EUA, que tratavam deste assunto”.

Que a ficção científica pode ter um papel importante na difusão do conhecimento científico não é novidade. Que uns cientistas gostam de participar ativamente desse papel de escritores ou divulgadores, também não é de hoje. Os romances de ficção científica de Julio Verne são exemplos típicos do entusiasmo de marco positivista pelos avanços da ciência e tecnologia e da tentativa de divulgar para um público crescente as descobertas e os conceitos de base das disciplinas científicas. Logo após a Segunda Guerra Mundial, o escritor inglês Arthur C. Clarke, autor da novela que deu origem a 2001: uma odisséia no espaço, apresentou a idéia de utilizar os mísseis alemães V-2 para colocar objetos no espaço. Num conto de 1945, bem antes que fossem produzidos os primeiros satélites artificiais, inventou a idéia de satélite geoestacionário, objeto em órbita que permanece fixo em relação a um observador na superfície do planeta. O que aumentou nos últimos anos, foi, talvez, o interesse mostrado tanto pelos cientistas quanto pelos professores, em utilizar a ficção como instrumento didático. “É verdade”, comenta Julie Czerneda que também é autora de um manual sobre o uso da ficção científica como instrumento didático.

“Porque aconteceu isso? Porque crescemos. Literalmente. Os que hoje ensinam e desenvolvem os currículos, cresceram mergulhados na ficção científica. Assistiram Blade Runner e Guerra nas estrelas, talvez tenham devorado Jornada nas estrelas e Outer limits [A quinta dimensão]. Descobriram que a ficção científica refletia a taxa de mutação que enfrentamos hoje na sociedade, mais acuradamente que qualquer outra literatura”. Além disso, continua a escritora, a FC pode ser um auxílio didático valioso porque “a pergunta típica da ficção científica, ‘o que seria se…’, é justamente a pergunta que os educadores querem que os estudantes levem em consideração, tanto a respeito da ciência e das questões sociais quanto na construção de hipóteses verificáveis na sala de aula”.

De acordo com Czerneda, no Canadá o uso de filmes de ficção científica na sala de aula demorou para se tornar prática comum. Inicialmente, uma razão pelo escasso uso de filmes foi a lei de proteção da propriedade intelectual: “muitas escolas descobriram que mostrar filmes para os alunos não compensava o risco de uma ação legal. Hoje tem acordos com as empresas, mas um professor tem que lutar para justificar o uso do tempo escolar para mostrar um filme, enquanto há muito pouco tempo para cumprir o programa curricular”. Além disso, muitos professores enxergavam inicialmente a ficção científica mais como uma distorção da ciência (e da realidade) do que como um possível instrumento de debate e divulgação. “Foi uma luta convencer professores de educação científica que existem excelentes filmes de FC que respeitam a ciência. Alguns preferiram buscar nos filmes exemplos de ciência distorcida e interrogar os estudantes sobre os erros cometidos no filme. Isso conduziu os alunos a se tornar ressentidos com o professor e a não confiar mais na ciência como um todo, não somente no filme, o que não era o resultado esperado. Pessoalmente, defendo o uso de clipes e pequenos trechos de filmes, que podem ser mostrados e discutidos. Essa técnica permite comparar, por exemplo, como o retrato do cientista evoluiu do ‘lunático’ para apresentações mais realísticas. Uma boa dupla de filmes, nesse sentido, é O retorno de Batman junto com Contato”.

Nos Estados Unidos, de acordo com Joan Slonczewski, professora de biologia no Kenyon College (no estado do Ohio) e romancista como a colega canadense, começou-se a utilizar filmes de ficção nas escolas de ensino médio já na década de 60, com o objetivo de levantar discussões sobre idéias científicas. “Hoje”, explica a pesquisadora, que é autora de livros de ficção científica e organiza um curso sobre biologia na ficção científica, “uns filmes usados com grande freqüência são The Andromeda Strain [O mistério de Andrômeda, 1971], Jurassic Park e Gattaca. Na graduação, eu considero Gattaca o mais útil quando quero mostrar os problemas que a tecnologia genética pode trazer para sociedade. Nas minhas aulas, utilizo livros e filmes para ajudar os estudantes na compreensão de princípios científicos e para enxergar como tais princípios interagem com a sociedade. Por exemplo, há um episódio de Jornada nas estrelas que mostra o crescimento exponencial dos organismos e os limites ecológicos ao crescimento. Meu livro, Brain plague, ilustra a evolução microbiana e mostra como os micróbios podem interagir positivamente e negativamente com os humanos (na minha estória, há micróbios inteligentes vivendo dentro do cérebro humano)”.

Mark Brake concorda: “a FC é utilizada muitas vezes para ilustrar como a ficção enfrenta o tema do impacto político, ambiental, social e cultural da ciência e da tecnologia. Podemos usar, por exemplo, Soylent green [No mundo de 2020] para discutir sobre meio ambiente, Gattaca ou AI – Inteligência artificial para refletir sobre nosso futuro genético ou tecnológico”. Brake, que dirige desde 1999 um curso de graduação em ciência e ficção científica (“o primeiro no mundo”, orgulha-se), acrescenta: “a ficção científica é crucial porque representa para muitas pessoas a principal forma de exposição à ciência”. Num artigo com Rosi Thornton, publicado na revista Physics Education, Brake escreveu, sobre o papel da ficção científica na educação: “o gênero da ficção científica foi sempre usado como maneira de examinar a relação entre ciência, tecnologia e sociedade, tanto como fonte de inspiração para guiar a direção do desenvolvimento científico, quanto como instrumento para popularizar e disseminar idéias científicas. Nós acreditamos que a FC possa ser usada para desmitificar a ciência, evidenciar seu contexto social e cultural e atuar como uma ponte para a consciência pública”.

Assim, enquanto uns cientistas encontram emprego em Hollywood ou no mundo editorial, muita ficção científica está entrando na sala de aula. Não mais escondida embaixo da mesa por estudantes aborrecidos, mas na cátedra dos professores, lado ao lado com os livros didáticos. “Acho que, em geral, a FC tem um papel em motivar interesse sobre um determinado assunto”, conclui Julie Czerneda. “Ela pode ser uma ótima maneira, por exemplo, para começar um módulo de ciência na sala de aula. Além disso, a ficção tem o importante papel de desenvolver um pensamento crítico a respeito da ciência, que inclui a especulação além do que conhecemos e um olhar sobre impactos. Ela é um fantástico ‘foro’ para considerar como ciência e sociedade são entrelaçadas. Porque conta histórias, e é por meio de histórias, também, que aprendemos sobre nós mesmos”.

(YC)

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Atualizado em 10/10/2004

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