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http://www.comciencia.br/reportagens/2004/12/16.shtml

Autor: Katarini Giroldo Miguel
Data depublicação: 10/12/2004

Energia, economia e mercado

André Tosi Furtado

A energia é um insumo indispensável ao desenvolvimento econômico. Desde a primeira revolução industrial, quando o carvão mineral substituiu a lenha como fonte dominante, as energias fósseis se tornaram vetores centrais do industrialismo, tanto como combustível das máquinas a vapor, assim como insumo central para a fabricação de ferro. A energia das máquinas foi gradativamente substituindo o trabalho humano, dos animais e daquele obtido a partir das energias renováveis como a biomassa e a eólica. As matérias-primas obtidas a partir de energias fósseis substituíram progressivamente as naturais, principalmente a madeira. Esse processo de uso das energias fósseis se intensificou consideravelmente com o advento da segunda revolução industrial, iniciada na segunda metade do século XIX, que trouxe, em seu bojo, o uso de novas fontes de energia tais como o petróleo, o gás natural e a hidroeletriciadade; o uso de novas formas de energia tais como a energia elétrica; o uso de novos conversores de energia entre os quais se destacam o motor a explosão interna e o motor elétrico; assim como de novos materiais, principalmente os produtos químicos, o aço e o cimento.

O mundo atual depende, para seu funcionamento, muito fortemente do abastecimento de vetores energéticos modernos que são o petróleo, o gás natural, o carvão, a energia nuclear e a hidroeletricidade. As quatro primeiras são as principais fontes energéticas primárias, porém não são renováveis e dispõem de reservas limitadas, sendo que as maiores reservas são de carvão mineral. A quinta, que é renovável, se encontra em quantidade muito mais limitada e se concentra em alguns países. Essas fontes são responsáveis por 90% do abastecimento energético mundial.

Embora a energia seja crucial para o funcionamento das sociedades modernas, sua importância relativa varia de acordo com o estágio e o modelo de desenvolvimento de cada país. É reconhecido que o papel da energia tende a ser mais importante nas primeiras etapas do desenvolvimento, quando a infraestrutura econômica ainda está em formação, do que nas etapas posteriores. Nos estágios mais avançados do desenvolvimento, o consumo de energia aumenta abaixo do crescimento do produto interno, porque as atividades econômicas que mais crescem são as industriais de alta tecnologia e os serviços, as quais consomem menos intensivamente energia.

No entanto, os países não seguem um padrão uniforme de desenvolvimento. Assim, os EUA e o Canadá consomem uma quantidade de energia per capita que é praticamente o dobro da dos países desenvolvidos europeus e do Japão, embora esses países possuam rendas per capita muito próximas entre si. A razão dessa diferença reside em seus respectivos estilos de desenvolvimento. Os Estados Unidos privilegiaram uma civilização apoiada no automóvel como meio dominante de transporte e na residência individual. Ao passo que na Europa e no Japão, que são mais densamente habitados, incentivou-se o transporte coletivo e a aglomeração da população em residências coletivas.

O progresso técnico tem forte influência tanto sobre o consumo de energia como sobre a sua oferta. Pelo lado da demanda, o progresso técnico reduz progressivamente as necessidades de consumo de energia por unidade produzida, ao melhorar a eficiência das máquinas e dos processos industriais. O progresso técnico também altera a estrutura do produto em benefício das atividades que utilizam menos intensivamente energia como as industriais de alta tecnologia e os serviços. Nesse contexto, deve-se esperar que os países que se industrializam mais tardiamente utilizem menos quantidade de energia do que os pioneiros. Pelo lado da oferta, o avanço tecnológico também contribui para baixar os custos de produção da energia e aumentar o escopo de recursos exploráveis a um determinado custo. Porém, o progresso técnico nem sempre consegue contrabalançar as tendências negativas de depleção das energias não renováveis (fósseis principalmente) e do acúmulo de poluição no meio ambiente.

Os desafios colocados pelas necessidades de abastecimento energético das sociedades modernas são muito mais complexos. Tendo em vista a importância central da energia para o processo de desenvolvimento econômico, o Estado interferiu desde muito cedo na oferta para que ela se expandisse de acordo com as necessidades de consumo. Também o Estado foi decisivo para determinar que o preço cobrado pela energia não fosse desfavorável ao consumidor. Nessa atividade, onde as economias de escala e de escopo tendem a impor grandes monopólios como forma de organização econômica mais eficiente, o Estado interferiu para que o preço cobrado pela energia não fosse prejudicial ao consumidor. Senão os grandes grupos econômicos se aproveitariam do fato que a energia é um bem essencial a qualquer atividade econômica e social para fixar preços muito acima dos custos.

Esse papel preponderante do Estado tendeu a reduzir-se desde o final da década de 70, quando os países desenvolvidos tomaram uma série de iniciativas para abrir seus mercados de energia à concorrência de novos produtores. Tal mudança é relativamente compreensível para esses países dado o estágio de desenvolvimento de suas economias, nas quais o consumo de energia cresce abaixo do produto e porque o progresso técnico, visível sobretudo no setor de geração elétrica, abre a possibilidade para entrada de novos produtores. Ainda assim, mais recentemente as reformas de abertura do mercado e de privatizações do setor elétrico mostraram suas limitações em vários desses países desenvolvidos devido à incapacidade do setor privado em realizar os investimentos necessários para a expansão da oferta. Com efeito, embora o consumo de energia primária cresça relativamente pouco nesses países, aproximadamente 1,4% a.a., o mesmo não acontece com o de energia elétrica, que cresce superior de 2,1% a.a (cifras relativas ao período 1990 a 2003 da BP).

Muito mais duvidosa ainda foi a adoção dessas reformas por países em desenvolvimento. De maneira geral, as privatizações foram guiadas por necessidades alheias ao setor energético, a principal sendo a de atrair investimentos estrangeiros diretos para fechar as contas do Balanço de Pagamentos. O capital estrangeiro que adquiriu a maior parte das empresas estatais buscava, sobretudo, a valorização de ativos financeiros. Os problemas de instabilidade de taxa de câmbio, enfrentados pelas moedas desses países, logo tornou demasiadamente arriscado esse tipo de aplicação. Em decorrência, os ganhos, para os países em desenvolvimento, em termos de ampliação da capacidade de investimento e da oferta foram muito limitados e insuficientes para fazer frente às necessidades de expansão da demanda. Como foi visto, as necessidades de expansão da oferta são muito mais amplas nesses países, em termos relativos, do que nos países desenvolvidos. Ademais, os governos dos países em desenvolvimento perderam, em função das privatizações realizadas na década passada, o controle sobre importantes instrumentos de política energética, industrial e social. A tentativa de substituir a coordenação direta do Estado, realizada através das empresas estatais, pela indireta, da regulação e dos contratos foi mal sucedida.

No Brasil, com as privatizações e a assinatura de novos contratos de concessão o poder de barganha das empresas energéticas privadas aumentou, conduzindo à fixação de tarifas mais elevadas e tolhendo o Estado de um importante instrumento de indução de outras atividades econômicas. As estatais exerciam, também, um importante papel de induzir, através do seu poder de compras, o desenvolvimento da indústria local de equipamentos e de serviços de engenharia. A tentativa de substituir a política industrial direta das estatais, realizada através do seu poder de compra, por mecanismos regulatórios, como a fixação de índices de nacionalização nas licitações da ANP, e políticas de fomento dos investimentos em C&T, com os Fundos Setoriais, se revelou insuficiente.

Os dissabores com a privatização levaram a um refluxo do modelo de mercado, na atual década, em todo mundo. Esse modelo demonstrou importantes limitações sobretudo em países em desenvolvimento. A privatização do setor elétrico brasileiro é um caso exemplar. Nas atividades em que ocorreram, elas foram incapazes de atrair novos investimentos à altura das necessidades do país, tanto no segmento térmico como hidroelétrico. No setor petróleo, onde a privatização não passou de uma intenção do governo passado mas em que houve quebra do monopólio da Petrobras, o capital estrangeiro também demonstrou as limitações para ampliar, isoladamente, a capacidade produtiva do país. Desde a abertura do setor petróleo, iniciada em 1998, até 2004, grande parte dos poços exploratórios perfurados e das descobertas de novas reservas foi feita pela Petrobras. O investimento privado apesar de haver alcançado a barreira de 1 bilhão de dólares não gerou descobertas significativas. O caso do petróleo serve sobretudo para demonstrar a grande capacidade tecnológica das empresas estatais brasileiras que competem e suplantam as grandes companhias internacionais. Essas empresas são a base para a formação de campeões industriais e tecnológicos nacionais.

Os ganhos do novo modelo advêm sobretudo da maior flexibilidade que ele proporciona à gestão das estatais, inclusive para se associar com o setor privado. Essa parceria pode ocorrer desde o nível produtivo, passando pelo financeiro e chegando ao tecnológico. A associação entre empresas em diferentes tipos de arranjos é uma característica distintiva da atual fase do capitalismo porque permite aumentar o potencial de inovação das empresas e a sua capacidade de adaptação a contextos instáveis. No caso do setor público, essa maior flexibilidade permitiu aumentar a capacidade de investimento das empresas estatais quando estas enfrentavam grandes limitações orçamentárias internas impostas pelo governo federal.

O desafio consiste em encontrar para o setor energético um equilíbrio saudável entre a flexibilidade do mercado e a capacidade de coordenação do Estado na consecução dos objetivos de consolidação do processo de desenvolvimento. O setor privado tanto nacional quanto estrangeiro não apresenta uma grande capacidade de mobilização de investimentos produtivos, uma das razões principais sendo a sua inerente expectativa de rápido retorno financeiro. Ora o setor energético, principalmente nas condições brasileira de petróleos difíceis e predomínio hidroelétrico, requer horizontes de investimento mais amplos e taxas de retorno inicialmente mais baixas. Além de que o repasse do custo ao consumidor não se configura em uma estratégia adequada para o país por dificultar o desenvolvimento de outros setores. Essas observações mostram que o novo arranjo entre Estado e mercado deve de qualquer forma, num país com a demanda energética em forte expansão, prever uma presença importante do primeiro.

André Tosi Furtado é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências da Unicamp e professor participante do Programa de Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp.

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Atualizado em 10/12/2004

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