[an error occurred while processing the directive] Reportagens

http://www.comciencia.br/reportagens/2005/04/02.shtml

Autor: André Gardini
Data depublicação: 10/04/2005

Repartição dos benefícios ainda é polêmica no uso do conhecimento indígena

A utilização do conhecimento dos povos indígenas, seja em pesquisas científicas, seja em projetos com finalidades comerciais, vem suscitando questões importantes no debate sobre propriedade intelectual, dentre elas: como deve ser a repartição dos possíveis recursos provenientes desse uso? Discute-se desde o estabelecimento de porcentagem sobre a venda do produto gerado com a utilização do conhecimento tradicional, até investimentos em infra-estrutura para as comunidades detentoras do conhecimento tais como escolas, energia elétrica, transporte ou mesmo outras formas de retorno como cursos de capacitação de professores indígenas, aulas sobre legislação ambiental e direitos humanos. A transferência de tecnologia também é apontada como uma opção.

O Brasil, através da Medida Provisória nº 2186-16/2001 regula o uso dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. A modalidade de regulação atual acontece através de autorizações de acesso a esses conhecimentos. Uma instituição brasileira, pública ou privada, que pretenda usar esses conhecimentos para alguma finalidade, precisa de uma autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). Os pré-requisitos para se conseguir essa autorização são uma descrição do projeto de pesquisa e a comprovação de uma anuência prévia concedida pela comunidade em questão. A anuência prévia é uma das exigências-chave instituídas na legislação: ela deve estar assinada pela comunidade tradicional que detém o conhecimento, como se fosse uma autorização.

No caso de aproveitamento econômico desse conhecimento há exigência de um requisito adicional que é o contrato de utilização e a repartição de benefícios. Nesse contrato há uma cláusula específica sobre a repartição mas “as partes são livres para negociar” afirma Eduardo Vélez, diretor do Departamento de Patrimônio Genético (DPG) do Ministério do Meio Ambiente (MMA). “As partes têm que pactuar como serão repartidos os benefícios, no caso de algum produto ser desenvolvido a partir do uso desses conhecimentos”, explica Vélez.

Para que as comunidades tradicionais não sejam prejudicadas nesse processo, o Ministério do Meio Ambiente está desenvolvendo um projeto de capacitação dos detentores do conhecimento tradicional. A finalidade é torná-los completamente cientes de seus direitos, previstos na legislação. Para isso, estão sendo feitas algumas atividades com representantes de povos indígenas, quilombolas e comunidades locais no estado do Acre. “É um projeto piloto de capacitação das comunidades indígenas, que pretendemos expandir para outras regiões do Brasil, onde elas irão aprender exatamente o que diz a legislação, como deve ser o processo de anuência prévia, como elas podem negociar os contratos. Apesar do processo estar em andamento, é preciso tempo de maturação para que possamos ter a garantia de funcionamento desses direitos”, explica Vélez, para quem a legislação ainda é recente (2001) e está passando por um processo de implementação no qual alguns pontos precisam ser aperfeiçoados.

Outro problema é a falta de um escritório de patentes que impeça o patenteamento sem a comprovação da legalidade do acesso a esses conhecimentos. No entanto, Vélez lembra que há uma nova discussão no CGEN, órgão com a responsabilidade de implementar a política pública para a gestão do patrimônio genético. De acordo com ele, a Medida Provisória 2.186-16 não trata de forma completa alguns mecanismos. “Uma das coisas que se discute é o sistema de registros de cultivares. A concessão desse direito deveria somente ser dada no caso do uso dos conhecimentos tradicionais de variedades crioulas, caso o acesso a essas variedades tenha sido legal. Isso impediria que se concedesse um direito sobre uma cultivar sem o consentimento prévio dessas comunidades. Outra maneira seria uma notificação ou mesmo o embargo de atividades que não tenham respeitado esses conhecimentos prévios”, explica.

Conhecimento difuso, benefício difuso

Recentemente foi divulgado na imprensa que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) não reconhece o direito de propriedade intelectual dos povos tradicionais. Na reunião da Câmara Temática de Conhecimentos Tradicionais do CGEN, no dia 9 de março, o MAPA teria defendido que “o conhecimento dos povos tradicionais deve ser considerado difuso e de domínio público”.

O representante do MAPA no CGEN, Leontino Taveira, esclarece a posição do Ministério. Para ele, uma simples confusão de conceitos causou uma divulgação errada de informações na imprensa. Assim, ele acredita que o conhecimento difuso deve ser de domínio público, mas o conhecimento detido na comunidade deve estar protegido. “É preciso ter muito claro que quando se fala de uma espécie, estamos trabalhando com um conceito muito mais amplo que envolve variedades que já estão difusas e outras não, aquelas mantidas pela comunidade. As variedades que as comunidades detêm, exigem o retorno dos benefícios sobre seus usos”, explica Taveira. Segundo ele, o direito soberano da comunidade sobre o material que ela detém, refere-se a uma variedade e não à espécie como um todo.

“É preciso repartir, sim. Agora como?”, questiona Leontino Taveira. “O que temos são sugestões e contribuições ao debate sobre como implementar a repartição de benefícios, tendo em vista alguns preceitos básicos como a interdependência entre Estados em relação aos recursos genéticos para alimentação, por exemplo. Se nós amarrarmos demais o Brasil, iremos ficar sem acesso a materiais que poderiam vir de outros países”, argumenta.

Para o presidente suplente do CGEN, Paulo Yoshio Kageyama, essa seria uma das dificuldades de se trabalhar com o conhecimento tradicional: quando o conhecimento está difuso por diferentes países e mesmo etnias, não é possível chegar à origem do conhecimento, pois vários povos detêm essa sabedoria. “O Daime é um exemplo, pois toda a população indígena da Amazônia usa o Daime, se fosse um produto valioso ou venha a se tornar um, a quem deveremos atribuir os benefícios gerados com sua comercialização?”, questiona Kageyama. Nesse caso, uma forma de beneficiar as comunidades pelo uso do conhecimento seria o que ele chama de “benefício difuso” como, por exemplo, uma rede de comunicação envolvendo as comunidades da região. O segundo problema levantado quando o assunto é repartição dos benefícios diz respeito à maneira correta de se trabalhar as especificidades de cada comunidade. “Algumas comunidades são bem organizadas e isso torna as coisas mais fáceis, pois elas procuram seus direitos, entendem o que está sendo feito e o valor dos recursos da biodiversidade que elas detêm. Por outro lado, existem comunidades pouco organizadas e que podem ser manipuladas”, explica.

É preciso lembrar que, além da repartição de benefícios, o uso do conhecimento tradicional em pesquisas científicas também vem gerando polêmicas entre biológos, antropólogos e outros cientistas. Segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE) e pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Ulysses Paulino de Albuquerque, a proteção do conhecimento indígena tem sido pauta de discussões muito antigas, em especial entre os próprios etnobiólogos e etnoecólogos. Embora considere que a legislação tende a dificultar o trabalho de pesquisa, Albuquerque lembra determinados procedimentos adotados por pesquisadores, principalmente no que diz respeito à divulgação dos resultados: “No caso de plantas medicinais, há pesquisadores que não divulgam plantas interessantes encontradas em suas pesquisas até que se construa um instrumento que garanta à comunidade, detentora original do conhecimento, os devidos direitos caso a planta venha originar um medicamento”, exemplifica.

A experiência baniwa na repartição de benefícios

A primeira autorização do CGEN concedida a partir da nova legislação que institui a obrigatoriedade do consentimento prévio das comunidades locais para as pesquisas científicas, com ou sem finalidades comerciais, foi dada ao projeto de pesquisa sobre a sustentabilidade da produção comercial da cestaria feita pelos Baniwa, povo da região do Alto Rio Negro. O projeto é resultado de uma parceria entre o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e a Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI), dos Baniwa. André Baniwa, presidente da OIBI, que participou entre os dias 29 a 31 de março do I Encontro da Rede Norte de Propriedade Intelectual, acredita que as parcerias entre povos indígenas e instituições governamentais, não-governamentais ou empresas privadas podem estimular o desenvolvimento e criar uma imagem positiva das comunidades para a sociedade brasileira.

Ao participar de um debate sobre a repartição de benefícios, desenvolvimento científico e tecnológico e responsabilidade sócio-ambiental, André Baniwa descreveu a forma como a sua comunidade vem se relacionando com os pesquisadores e quais os benefícios que ela vem recebendo: “Nós passamos a contribuir com eles fornecendo várias informações que tínhamos e eles atenderam nossas demandas, como realizar um encontro de educação e trazer informações sobre nossos direitos. A gente foi se aperfeiçoando em oficinas lingüísticas, na unificação da grafia baniwa, na elaboração de um projeto-escola baniwa voltado para as formações de professores que não tínhamos. Atualmente temos mais de 200 professores e uma escola de quinta a oitava série”. A metodologia utilizada para educar as crianças nas escolas da aldeia, segundo André Baniwa, é mais eficiente que a tradicional, pois mantém as crianças interessadas na aula e o professor passa a ser um orientador e não apenas uma pessoa que fica expondo teorias na frente dos alunos. “O retorno político-pedagógico é muito gratificante para nós, os alunos passam a compreender a comunidade e as pesquisas, podendo, no futuro, virem a ser pesquisadores”, acredita. “Para nós não veio benefício em dinheiro, mas talvez, esse que veio, tenha sido bem melhor do que se viesse dinheiro”, completa.

Vitória na Índia

A diversidade biológica presente nos países em desenvolvimento vem aumentando a ambição das grandes empresas transnacionais. A fraca legislação, a dependência tecnológica e, sobretudo, os problemas estruturais têm contribuído freqüentemente para que casos de biopirataria sejam resolvidos nos tribunais de justiça. Em 2000, o escritório de patentes da União Européia revogou uma patente concedida à empresa W.R. Grace e ao Ministério da Agricultura americano. (leia: Dois golpes contra a biopirataria). Nesse caso, foi anulada a patente desenvolvida a partir da árvore Neem (Azadirachta indica), utilizada há centenas de anos na Índia. O escritório de patentes europeu considerou que não havia novidade alguma em relação à patente, abrindo, com isso, um caminho para o combate ao uso indevido dos conhecimentos dos povos tradicionais.

A vacina do sapo

Outro caso que viola o direito de propriedade intelectual de comunidades tradicionais é o caso da vacina do sapo. Popularmente conhecido como sapo verde, o anfíbio da espécie phyllomedusa bicolor, é encontrado especificamente em países amazônicos como Venezuela, Colômbia, Bolívia, Guianas e, principalmente, no Brasil e no Peru. Povos indígenas dessas regiões descobriram que, retirando uma secreção cutânea do anfíbio, é possível produzir uma substância, capaz de curar desde o amarelão até dores em geral. O problema está no fato de que patentes com o nome phyllomedusa bicolor estão sendo concedidas em países da União Européia, Estados Unidos e Japão.

 

André Baniwa lembra que a própria comunidade convidou pesquisadores para ministrar palestras sobre sustentabilidade sócio-ambiental, na área de botânica, etnobotânica e ecologia das plantas. “Hoje nós temos auto-estima, somos mais respeitados, participamos de algumas decisões no CGEN. Além da questão financeira, isso traz o fortalecimento da nossa organização indígena. Tanto para o índio quanto para os pesquisadores existem benefícios nessa história de contribuir”, finaliza. Outra forma de geração de benefícios para os Baniwa, foi uma parceria feita com a loja Tok&Stok: eles vendem seu artesanato para essa empresa que o revende no mercado nacional.

Segundo a Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI), existem cerca de 17 mil indígenas nas aldeias Baniwa espalhadas pela Colômbia, Venezuela e Brasil. No Amazonas, os Baniwa residem na região do Alto Rio Negro, nos municípios de Castelo, Santa Isabel e São Gabriel. A região contabiliza, ao todo, 22 povos diferentes e cerca de 30 mil indígenas.

(AG)

 

 

Versão para internet

Anterior Proxima

Atualizado em 10/04/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2004
SBPC/Labjor
Brasil