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http://www.comciencia.br/reportagens/2005/06/14.shtml

Autor: Heitor Franco de Andrade.
Data depublicação: 10/06/2005

Novos fármacos para as doenças tropicais, a indústria farmacêutica, o Estado e nós

Heitor Franco de Andrade

As doenças tropicais são marcadas pelo estigma do exótico e do grave. Quem não tem na mente a figura do paciente com elefantíase, o tremor do paciente com malária, ou as feridas imaginadas dos hansenianos? Nesse espectro folclórico, a origem dessas doenças está associada à pobreza ou à aventura. Se as pessoas viajam ou trafegam em regiões novas, podem contrair as doenças que lá ocorrem e que são diferentes das que estão habituadas em sua região. Com as grandes navegações, os europeus colonizadores foram expostos a doenças desconhecidas das regiões tropicais e associaram a estas regiões a medicina dos viajantes, criando uma medicina de portos ou medicina tropical, ou a medicina das doenças exóticas. Isto é uma meia verdade. Países desenvolvidos como o EUA e a Espanha convivem com doenças desse tipo  e a aids veio dos países tropicais para o "mundo" sem haver relação com o clima. Em geral, as doenças tropicais desaparecem pela melhoria das condições sanitárias e higiênicas de uma população, o que explica em grande parte a sua aparente ausência em países desenvolvidos. A maioria dos pacientes dessas doenças vive nas regiões mais pobres do mundo, com Estados desorganizados, empobrecidos e em freqüente beligerância interna. Esse quadro é piorado pelas associações de doenças com a fome crônica, gerando um quadro caótico, com milhões de mortes anuais, como na África Sub-Saariana. Mesmo no Brasil, as doenças estão restritas a bolsões de pobreza e o número de casos caiu significativamente, mas ainda temos nilhões de pessoas em risco de contrair essas enfermidades.

A preocupação com a prevenção e o tratamento dessas doenças sempre existiu, já que são de importância estratégica. A malária praticamente extinguiu a elite ateniense de Péricles no cerco a Siracusa e causou mais baixas americanas na Guerra do Vietnã que o exército Vietcong. Até hoje, missionários religiosos morrem nos países tropicais, sucumbindo a  infecções e é freqüente a morte de viajantes em seu retorno, pelo desconhecimento dos médicos “desenvolvidos” sobre essas terríveis doenças exóticas. Nos últimos 30 anos, houve um aprimoramento das condições sanitárias mundiais, mas mantiveram-se bolsões de extrema pobreza não somente em países tropicais ou em desenvolvimento, mas também em desenvolvidos, em guetos e áreas empobrecidas. Nestas áreas, estão presentes as causas e crescem também os vetores de doenças infecciosas, como a dengue, encefalites e leishmaniose. Nos países em desenvolvimento, os centros urbanos mais ricos e áreas de agricultura intensiva, como ocorre no Brasil, afastaram a maioria das doenças tropicais das cidades e da sua população, restringindo-as às áreas menos favorecidas e de colonização mais recente. As equipes de saúde passam a ter menos experiência com estas doenças, pela distância dos focos de transmissão e pelo contato com um menor número de pacientes - e a vigilância cai. Se a montanha não vai a Maomé, vamos a montanha. O ecoturismo e as viagens turísticas ou privadas aumentaram muito e passaram a colocar em risco os turistas, atletas e técnicos. Recentemente pudemos acompanhar a febre amarela de um médico da mídia e a leptospirose em equipes de competição. Esse é um novo aspecto das doenças tropicais, uma verdadeira colonização da área desenvolvida sobre as áreas menos favorecidas, até mesmo de um único país, como no subcontinente brasileiro. Como é uma pandemia, a aids não será incluída nestas considerações, restrita às doenças tropicais mais conhecidas.

Apesar de um quadro favorável de diminuição do número de pacientes, com as chamadas doenças tropicais a situação mantém-se perversa, porque estes estão entre os mais pobres e os excluídos sociais. Assim, somente o Estado pode prover os recursos para diagnóstico e tratamento.

O conhecimento sobre o tratamento de uma determinada doença vem do próprio povo afetado e as doenças tropicais não são exceção. O quinino, que representou o marco de tratamento da malária, não foi encontrado na Europa, mas sim na Bolívia. O uso de antimoniais foi descoberto no Brasil para as leishmanioses. Muito do conhecimento foi adquirido pela pesquisa local no desenvolvimento de fármacos, mas isso praticamente parou nos últimos 20 anos, preferindo-se tentar associações de fármacos conhecidos. Excetuando-se a miltefosina, um potencial remédio para a leishmaniose, e os antivirais específicos para o HIV, o arsenal desenvolvido para as doenças tropicais tem mais de 20 anos.

Ninguém se pergunta por que isso ocorreu, embora a OMS reclame e chame as doenças tropicais de negligenciadas. Realmente, não há um apelo econômico para o desenvolvimento de novos fármacos contra as doenças tropicais no modelo econômico prevalente nos últimos 30 anos. Nos conceitos neoliberais recentes, a produção está diretamente relacionada ao lucro e não ao bem-estar. Até os anos 60, havia uma preocupação real com a melhoria das condições sociais nos países. A idéia era ter uma população feliz, com uma boa casa e condições adequadas de vida. Lembra aqueles desenhos da Seleções do Readers’ Digest, a familia feliz lavando o carro na frente da casa, com as crianças brincando e o pai e a mãe abraçados? O modelo econômico mudou e a unidade econômica passou a ser o indivíduo isolado, cada qual cuidando do seu destino, mas também de sua saúde. Nesse contexto, cada indivíduo deve ser capaz de adquirir sua medicação, que passou a ser um importante item de avaliação de renda. Esse conceito gerou um aumento enorme no lucro da industria farmacêutica, criando nova ética para medicamentos.

Hoje é muito freqüente o anúncio de medicamentos na mídia, para uso e depois consulta ao médico. Compre, teste e se não melhorar; a culpa aqui é sua; vá então ao médico. Isto é mercadológico e causou um impacto muito alto no custo final do medicamento. Hoje cerca de 90% do custo do fármaco é marketing e, na indústria privada, os centros de pesquisa e desenvolvimento são subordinados ao marketing. Nesse contexto, é lógico que teremos Viagras, Cialis e Prozacs e não fármacos para as doenças tropicais. Quem estará interessado em produzir para quem não tem como pagar? Ou produzir para um pequeno número de turistas infectados? Ou ainda participar de licitações para vender uma única partida de medicamento por um ano, sem venda a varejo?

Um exemplo triste é o da leishmaniose no Brasil. Temos 20000 casos por ano, que deveriam receber 20 ampolas de 5 ml do remédio, que dá um consumo real anual de 2000 litros ou duas toneladas,um processo industrial muito pequeno e um volume de comércio irrisório. Não há interessados na produção e o Ministério da Saúde tem que fomentar o fabricante. Não se sabe como isso evoluirá, mas explicar aos seus acionistas um prejuízo com fármacos para doenças tropicais é um problema. Os acionistas querem lucrar e jogar a culpa no Estado, ele que cuide dessas mazelas.


Desde o princípio, era ainda mais complicado se o remédio tivesse algum tipo de segredo. Quando os jesuítas controlavam o uso da quina
, o pó dos jesuítas, contra a malária eles usaram a sua difusão seletiva como elemento estratégico de controle de nações e governantes. A história da quebra do segredo é cheia de aventura e mortes e a própria agressão aos jesuítas mostra uma reação dos Estados nacionais contra a primeira multinacional farmacêutica, a Companhia de Jesus. Hoje não é muito diferente. Como não haverá retorno econômico, a indústria espera pelo menos um retorno político.

Embora imensos mercados populacionais estejam se formando na Ásia, com China, Índia e vizinhos, e na América do Sul, com a urbanização dos países, esses mercados na realidade estão mudando de perfis de fármacos, passando daqueles específicos para as doenças tropicais para os convencionais e já desenvolvidos fármacos de doenças crônicas, da terceira idade e do prazer. A melhoria das condições sociais e a urbanização eliminam os ambientes de crescimento de vetores, em especial os Anopheles, da malária, e aumentam o de outros, como os Aedes, da dengue, alterando o perfil das epidemias esperadas. Além disso, o uso maior da água e dos recursos hídricos, com maior recirculação, favorece as doenças de transmissão oral como a cólera e os rotavirus. Nesse contexto, insere-se um novo risco ao desenvolvimento de fármacos, que é o risco individual. No modelo social, toda ênfase era dada à prevenção das doenças e ações de prevenção e higiene, com menor ênfase na terapia. 

No novo modelo, a segurança do uso do fármaco é garantida pela indústria e, se um fármaco tiver efeitos colaterais em poucos pacientes, mas com grande impacto econômico, processos reparatórios, etc., todo o eventual lucro pode desaparecer em instantes e um enorme problema para a indústria pode surgir. Isto foi recentemente realçado pelos processos contra a indústria fabricante de um anti-malárico usado na prevenção de malária em turistas, que causou psicose em um pequeno número, com vultosas reparações. Esse é o modelo da saúde individual, você compra um remédio seguro que deve resolver seu problema sem efeitos colaterais ou a empresa deve pagar por isso. Isso não é só para esses fármacos, mas para todos eles e virou uma nova maneira de compensação do lucro destas indústrias nos Estados nacionais com justiça e regulamentos fortes. Para se aprovar qualquer fármaco, um chá de erva cidreira em pó, são necessários todos os testes de segurança e toxicidade -- entre US$ 5-10 milhões de gastos.

Apesar de existirem resultados adequados em outros países, cada Estado tenta controlar novos gastos com importação de fármacos, testando no país cada novo produto. A multiplicidade de países, as diferentes etnias, os hábitos culturais levam a diferenças entre as nações obrigam a estes testes mas aniquilam qualquer eficiência de custo de desenvolvimento de um fármaco para as nossas doenças. A nova droga precisa de uma venda e uma vida média que justifique o investimento e assegure o retorno, sem esquecer da concorrência.

Nesse ponto, lembramos a importância da universidade pública e dos sistemas de saúde pública locais. No meu entender, só um pequeno número de fármacos para estas doenças foi desenvolvido pela industria farmacêutica privada. Um exemplo é a ivermectina para o tratamento da cegueira causada pela Oncocerca na África, mas a indústria preferiu transferir tudo para a OMS, para economizar no marketing e permitir a disseminação do produto. Na maioria dos casos, os produtos foram desenvolvidos nos próprios países interessados, quer sejam aqueles com grande número de casos, ou aqueles com interesses estratégicos. Apesar disso, os governantes assumem hoje posturas neoliberais, declinando do custeio da pesquisa para novas descobertas ou então com programas pouco eficientes de desenvolvimento de fármacos em cada país, geralmente vinculados a possíveis patentes. Embora existam, no Brasil, empresas governamentais capazes de produzir e distribuir fármacos, como a FURP e a FarManguinhos, a universidade não consegue transferir seus conhecimentos rapidamente para a produção e o impacto social, justamente devido a mecanismos de restrição de proteção individual, que afastam até as estatais da produção de novos fármacos. Essas empresas apenas se dedicam à produção de genéricos, que são fármacos testados por outros e que tem consolidada sua eficácia e segurança. Não é competência da universidade a produção e a toxicologia prospectiva de um fármaco. 

A pesquisa universitária é cientifica e aberta, disponível para a concorrência, sem uma proteção para o lucro, diferente da visão mais tecnológica e comercial necessária  à indústria. Não adianta somente criar massa crítica adequada, como Cingapura tem proposto em joint-ventures com indústrias farmacêuticas ou nos nossos programas brasileiros de pós-graduação, para depois desempregá-los por razões de custo, num sistema industrial onde o vendedor é o chefe do cientista. Isto é tipicamente individualista e não voltado para o aprimoramento do bem estar da sociedade como um todo. Temos que definir o que queremos como sociedade para todos nós. É licito morrer de leishmaniose visceral por falta de fármaco? Será aceitável a morte por aids? Valemos o que somos ou o que temos?

No atual modelo, o último homem herdará toda a Terra e seus bens. Faça bom proveito. 

Heitor Franco de Andrade Júnior é professor do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo

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Atualizado em 10/06/2005

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