Coincidência ou Freud Explica?
   
 
Poema
Conflito e cultura
Freud na cultura brasileira
Cronologia

Fim do séc. XIX: efervescência científica
O que é a psicanálise
Maurício Knobel

Sonho, o despertar de um sonho
Fabio Herrmann
Freud e Jung: a cisão com o príncipe herdeiro
Ulisses Capozoli
Freud e Lacan
Marcia Szajnbok
Freud e Reich: duas matrizes
André Valente de Barros Barreto
A psicanálise no Brasil
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Cartas freudianas
Mariza Corrêa
Psiquiatria psicanalítica
Sílvio Saidemberg
Do começo ao fim
Daniel Delouya
Psicanálise e arte
Giovanna Bartucci
Coincidência ou Freud explica?
Carlos Vogt

Pré-história do sonho
Yannick Ripa

Homenagem a Hélio Pellegrino
Miriam Chnaiderman

 

Em A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, há uma seção, no capítulo IV, intitulada "O Material Infantil como Fonte dos Sonhos", da qual constam os famosos quatro "sonhos romanos" que, segundo as palavras do autor sonhador, mostram o quanto o desejo de ir a Roma "havia se transformado, em minha vida onírica num disfarce e num símbolo para muitos outros desejos apaixonados".

Não conseguindo, como Aníbal, o Cartaginês, entrar na cidade eterna (para onde iria só ao completar 45 anos de idade), embora viajando todos os anos à Itália, os sonhos, ao contrário, o mostram em Roma, mas, no próprio sonho, ele percebe que o lugar é outro.

Nos comentários e fragmentos de interpretação que se seguem à apresentação do quarto sonho, Freud escreve sua identificação com o herói das Guerras Púnicas:

"Como tantos meninos daquela idade, eu simpatizara [...] não com os romanos, mas com os cartagineses. E quando nas séries mais avançadas comecei a compreender pela primeira vez o que significava pertencer a uma raça estrangeira, e os sentimentos anti-semitas entre os outros rapazes me advertiram de que eu precisava assumir uma posição definida, a figura do general semita elevou-se ainda mais em meu conceito. Para minha mente juvenil, Aníbal e Roma simbolizavam o conflito entre a tenacidade dos judeus e a organização da Igreja Católica. E a importância crescente dos efeitos do movimento anti-semita em nossa vida emocional ajudou a fixar as idéias e sentimentos daqueles primeiros anos".

Nesse momento, o autor adiciona aos seus sentimentos a narrativa de um evento de sua juventude, "cuja força ainda era demonstrada em todas essas emoções e em todos esses sonhos".

Segue o episódio e as conclusões que o autor tira dele:

"Eu devia ter dez ou onze anos quando meu pai começou a me levar consigo em suas caminhadas e a me revelar, em suas conversas, seus pontos de vista sobre as coisas do mundo em que vivemos. Foi assim que, numa dessas ocasiões, ele me contou uma história para me mostrar como as coisas estavam melhores naquela época do que nos seus dias. "Quando eu era jovem", disse ele, "fui dar um passeio num sábado pelas ruas da cidade onde você nasceu; estava bem vestido e usava um novo gorro de pele. Um cristão dirigiu-se a mim e, de um só golpe, atirou meu gorro na lama e gritou. Judeu! saia da calçada! - "E o que fez o senhor?", perguntei-lhe. "Desci da calçada e apanhei meu gorro", foi sua resposta mansa. Isso me pareceu uma conduta pouco heróica por parte do homem grande e forte que segurava o garotinho pela mão. Contrastei essa situação com outra que se ajustava melhor aos meus sentimentos: a cena em que o pai de Aníbal, Amílcar Barca, fez seu filho jurar perante o altar da casa que se vingaria dos romanos. Desde essa época, Aníbal estivera presente em minhas fantasias".

II

Em 1990, Will Eisner, o célebre autor de histórias em quadrinhos, criador, nos anos 40, de The Spirit, um herói mais humanizado e, portanto, mais contraditório que os impávidos e compactos super-heróis que todos conhecemos e que voavam nos gibis de nossas fantasias, publica uma novela gráfica cujo tema é uma autobiografia romanceada.

Nela, o autor-protagonista é convocado, em 1942, pelo exército para lutar na 2ª Grande Guerra. Enquanto viaja de trem para o sul, olha fixamente para a janela e vendo a paisagem que corre para o passado dos trilhos da composição, mergulha, como num sonho, nas imagens, recordações e lembranças de sua vida na América.

Sua mãe judia, nascida nos E.U.A., filha de judeus romenos, tem a sua história contada na segunda parte da novela e seu pai, por sua vez, também judeu, de origem vienense, tem dedicada a ele e aos anos anteriores à sua emigração a terceira parte dos quadrinhos.

Há inúmeros pontos em comum entre essas histórias de vida e a história de tantos outros judeus imigrantes para a América, havendo também, é claro, várias coincidências de situações dramáticas entre a vida de Freud, seus sonhos e interpretações e a saga da família de Will Eisner.

Chamam a atenção, em particular, as cenas que se seguem ao espancamento de Willie, que sai à rua com o irmão mais novo, no bairro para onde recém mudara com sua família, por garotos cristãos que, nos traços ágeis do desenho de Eisner, demonstram toda sua fúria e todo seu ódio preconceituoso, tão presentes, como não podia deixar de ser, na problemática freudiana, seja no homem, seja no cientista e na sua ciência:







Como se vê, o episódio deixa marcas no jovem Willie que recusa, indignado, a discriminação, e a humilhação mas que é levado, ao fim, a adotar como solução de sobrevivência a sabedoria e a esperteza sugeridas pelo pai. Segue-se, então, a série de quadros que vem ilustrar, na prática do relacionamento do pai o que ele acabara de sugerir ao filho como forma de enfrentar a sanha do preconceito e da violência:







Willie aprende rápido a lição e decide, imediatamente mudar o nome do irmão para Pete, livrando-o do estigma que atrairia a fúria e o deboche dos outros garotos, batizando-o e absorvendo-o simbólica e estrategicamente ao cristianismo do novo mundo.

Não se pense que esta seja uma situação de exceção, nem mesmo na Europa. Ao contrário, como observa Alberto Dines na excelente biografia de Stefan Zweig - Morte no Paraíso, "as conversões no judaísmo austríaco eram freqüentes, muito mais freqüentes do que na Alemanha, onde os judeus também podiam destacar-se, mas onde a tradição foi menos aguda. A conciliação imoderada da sociedade vienense permitia a glória de Mahler como compositor, mas sua assunção à direção da Ópera de Viena só seria admitida se aceitasse a conversão ao cristianismo, o que, aliás, aconteceu indolormente".

III

Semelhanças e diferenças entre a infância e a juventude de Freud, em Freiberg, hoje Pribor, na República Tcheca e na Viena em que se formou e viveu quase toda sua vida e as atribulações do personagem autobiográfico de Willie, de Will Eisner.

Curiosidade, para ilustrar também uma diferença radical de atitude entre Freud e muitos judeus seus contemporâneos já que ele, embora não apegado ao ritualismo religioso do judaísmo, fazia questão de afirmar-se judeu e ostentar suas origens familiares e afetivas, com todas as contradições e conflitos psíquicos e sociais implicados em sua história de vida e que também podem ser vistos e lidos na história de vida que Will Eisner conta do jovem Willie.

Nas palavras de Renato Mezan, o tema de Roma nos sonhos da auto-análise de Freud, "conduz [...] ao judaísmo e à humilhação, mas também a seu pai, que se deixara tripudiar pelo membro da igreja "romana". Identificando-se com Aníbal, Freud deseja vingar seu pai, mas, como nota Conrad Stein, deseja igualmente vingar-se de seu pai: "conquistar Roma é vingar o pai, destruindo um inimigo que é também seu pai", isto é, expulsando-o da linhagem e se atribuindo um genitor mais conforme a seus gostos. Roma, alvo de sentimentos contraditórios, substitui, de certo modo, a imagem de seu pai. É por esta razão que a nostalgia de Roma aparece com a morte de Jakob e dura todo o tempo do luto interior; quando finalmente Freud consegue vencer sua inibição e vai a Roma, esta viagem é um sinal de que o luto terminou. E é fácil perceber que o luto termina quando termina o essencial da auto análise: a viagem se situa após a publicação da Interpretação dos Sonhos, obra que, como é dito no prefácio, "constitui minha reação à morte de meu pai - o acontecimento mais decisivo, a perda mais lancinante da vida de um homem!".

Carlos Vogt

   
           
     

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Atualizado em 10/10/2000

   
     

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