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A Interpretação dos Sonhos
Sigmund Freud, 1899/1900.

por Augusto Cesar Freire - psicanalista (*)

Cem anos de inconsciente

Raras são as obras cujo centenário é lembrado e celebrado. A Interpretação dos Sonhos de Freud é uma delas. Para isto há várias razões. A data marca não apenas o centenário de uma obra, mas também o centenário do inconsciente e da própria psicanálise.

Para aqueles que não são familiarizados com a obra freudiana uma introdução à importância da obra será feita. Este endereçamento se refere ao fato de que todo e qualquer psicanalista, de toda e qualquer "corrente" desde sua criação até os dias de hoje reconhecem em A Interpretação dos Sonhos uma obra inaugural.

Trata-se de uma obra que traça o limite entre os artigos pré-psicanalíticos de Freud e o início da psicanálise. Na edição brasileira das obras completas de Freud (Editora Imago) encontra-se representada por dois volumes (IV e V), tendo sido também publicada em várias edições avulsas. Obra atual por sua obrigatoriedade na formação de todos os psicanalistas e mesmo psicólogos, pululam resenhas e comentários introdutórios. Quanto aos comentários, para os iniciantes pode-se destacar a Introdução à Metapsicologia Freudiana de Luiz Alfredo Garcia-Roza (Zahar Editores), com um volume inteiramente dedicado a A Interpretação dos Sonhos.

A obra de Freud provoca uma ruptura absolutamente radical na maneira de abordar o homem em 25 séculos de pensamento. Todas as filosofias, toda a psicologia incipiente, toda a ciência até Freud se preocupava com o homem em seu aspecto consciente. Segundo o próprio Freud, o conceito de inconsciente e a formulação de que o homem não é senhor em sua própria morada tem importância equivalente às rupturas causadas pela passagem do teocentrismo para o heliocentrismo e pela comprovação da ascendência animal do humano.

Se há um texto, na obra de Freud, que possamos indicar como primeiro responsável por esta ruptura é A Interpretação dos Sonhos. Nele encontramos a tese que se tornaria a mais popular (e mais mal utilizada): a do complexo de Édipo. Neste texto, também, Freud formula a divisão da mente entre o consciente e o inconsciente. É também ali que a clínica psicanalítica vai encontrar sua justificativa teórica, ainda que não fosse esta a preocupação inicial de Freud.

A gestação e o parto da obra

Na verdade a obra foi publicada em 04 de novembro de 1899. Por uma decisão do editor, no entanto, a data impressa é a de 1900. A correspondência de Freud a Fliess (publicada em português pela Imago) nos fornece os dados a seguir. Durante dois anos Freud se dedicou ao preparo deste que seria um exemplo excelente de estrutura de tese. Sua pesquisa não deixa de fora nenhuma obra conhecida que abordasse o tema dos sonhos, nem mesmo os sempre populares livros de sonhos egípcios. Cada possível argumento, cada possível interpretação é examinada com seriedade e rigor científico. A magnitude do trabalho poderia responder pela lentidão com que o texto foi produzido, mas em suas cartas ao amigo Fliess podemos entender que as razões da demora foram mais pessoais.

O livro é pleno de exemplos. Muitos sonhos são analisados e interpretados. O que mais custou ao autor, portanto, foi o fato de que, devido ao sigilo com que deveria resguardar os sonhos de seus pacientes, Freud utiliza os próprios sonhos para dar seqüência à obra. Como o pesquisador que se contagia com a doença que pretende estudar, Freud se expõe aos efeitos de sua própria tese, tira as conseqüências de seus próprios sonhos trabalhando suas próprias neuroses. E corajosamente, nos expõe todo o processo. Não poucas vezes em sua correspondência confessa que prefere não publicar o livro, se mostra pessimista quanto às conseqüências de suas teses e apreensivo quanto à recepção que o livro teria no meio científico e em seu círculo familiar.

Suas preocupações se mostrariam fundamentadas. O livro vendeu 228 exemplares nos primeiros dois anos após sua publicação, e a tiragem de 600 exemplares demorou oito anos para ser esgotada. Não houve comentários em boletins científicos a seu respeito e as poucas menções ao trabalho raramente eram elogiosas. Somente dez anos depois, com o reconhecimento da importância de Freud e o fim do ostracismo a que foi entregue pela comunidade médica é que a obra passou à categoria de trabalho sério.

Esta acolhida, no entanto, é plenamente justificada. Freud se lançara em um caminho vedado à comunidade científica. Se preocupar com sonhos era uma coisa para poetas e artistas, nunca um cientista consideraria este um tema de trabalho. O romantismo alemão, em pleno vigor, tematizava a alma, as aspirações e os sonhos do homem alemão. A ciência, por sua vez, saía do tratamento moral da doença mental e entrava no organicismo. Neste contexto, as preocupações e métodos de Freud eram, no mínimo, excêntricos.

Freud, no entanto, não era um filósofo. Seu interesse pelos sonhos tem uma justificativa completamente científica. Seu rigor se demonstra em cada linha de seu texto na seriedade com que aceita tirar as conseqüências dos fatos, mesmo que em prejuízo de sua teoria ou de seu status médico. Um pouco da história envolvendo a obra e a própria psicanálise devem esclarecer este ponto.

A origem das idéias contidas na obra

Como o observador que se despe dos preconceitos para apreender um fato inusitadamente novo, Freud criou o que seria um método de pesquisa pela escuta. Pouco antes da escritura do livro passara pela experiência de ouvir de uma paciente que deveria calar-se e escutar mais. Obedeceu. Aos poucos percebia que os sintomas histéricos cediam à palavra. Ao narrar a origem dos sintomas as histéricas se curavam. A primeira teoria formulada para lidar com este fato foi a da catarse. Em poucas linhas a idéia central era a de que o sintoma histérico (no exemplo clássico paralisias, cegueiras, convulsões etc…) consumia uma quantidade de energia originalmente vinculada à idéia que provocou o sintoma. Assim, o acesso desta idéia à memória e à palavra deveria recanalizar esta energia represada no sintoma, eliminando-o.

Como conseqüência desta teoria o mais importante a se objetivar seria a rememoração do evento desencadeante. Para facilitar esta rememoração Freud fez uso da sugestão e da hipnose. Começava aí seu isolamento do meio médico. A hipnose tinha uma pré-história acientífica de charlatanismo e apresentações espetaculares, e Freud se encontrava em Viena, capital cultural que costumava não tolerar tais práticas no meio médico. Não por acaso Freud precisa visitar Paris para estudar a hipnose com Charcot, a quem sempre dedicou um profundo respeito.

A teoria da catarse seria progressivamente abandonada na medida em que Freud começava a perceber a presença de algo que se opunha ativamente à rememoração. Este fator de resistência se relacionava exatamente àquelas lembranças mais importantes, servindo portanto de indicador do valor de uma determinada idéia para a doença histérica correspondente. Em outras palavras, quanto mais relacionada à doença, mais resistência seria encontrada na rememoração de uma determinada idéia. A hipnose escamoteava este fator, derrubando todas as resistências. Uma nova abordagem se faria necessária se o que se pretendia era tirar as conseqüências desta descoberta.

Nas tentativas iniciais do que se tornaria mais tarde o método da associação livre Freud simplesmente se submeteu a ouvir o que vinha à mente de seus pacientes. Nos pontos em que localizava alguma resistência aprendeu a reconhecer a necessidade de fazer valer sua presença, em sua insistência e incitação, fazendo com que o paciente se detivesse neste ponto, se esforçasse um pouco mais, de modo que pudesse seguir por uma trilha inicialmente bloqueada. Ainda em busca da memória perdida, Freud começava a apreender o funcionamento dos sintomas, o tipo de defesas com que se protegiam da investigação e a ferocidade com que resistiam à cura. Só em A Interpretação dos Sonhos será possível encontrar suas teses a este respeito.

A importância dada aos sonhos começava aí a tomar força. Deixados livres para falar o que viesse à cabeça os pacientes logo começaram a narrar sonhos, associando-os a eventos relevantes à sua neurose. Freud não se autoriza a legislar o que teria ou não pertinência na narrativa do paciente. Imbuído de uma crença profunda na lei da causalidade supõe que algum fator desconhecido justificaria que os sonhos surgissem na fala dos pacientes. Este fator desconhecido, digamos desde já, seria cernido pelo conceito de inconsciente. Se os sonhos se impunham desta forma à observação do pesquisador, nada mais legítimo que decifrar sua estrutura.

À guisa de comentário paralelo notemos que não só os sonhos adquiriram seu valor desta forma, mas também a sexualidade infantil. Os pacientes também traziam lembranças de sensações sexuais prazerosas vividas na infância, o que, apesar do choque, Freud se viu obrigado a considerar. Esta seria outra idéia responsável pelo isolamento da comunidade científica de sua época.

Os sonhos e a neurose

Em A Interpretação dos Sonhos, Freud formula as leis e as características do inconsciente. Com este conceito consegue juntar fenômenos distintos como o sonho e os sintomas histéricos. Vejamos rapidamente alguns pontos.

A tese central do texto é a de que "O sonho é a realização de um desejo". Este desejo, entendamos, não é necessariamente um desejo que possamos aceitar em nossa vida vigil. Quando não se trata de um desejo aceitável, nos diz Freud, preferimos esquecê-lo. Este esquecimento será descrito como conseqüência de um mecanismo chamado 'recalque'. O desejo recalcado, no entanto, permanece em algum lugar exercendo seus efeitos. Os sonhos são apenas um exemplo destes efeitos.

Mas os sonhos têm por característica sua falta de senso, sua não obediência às leis que nos regem na vigília. O que Freud formula é que os sonhos seguem uma lei própria, seguem uma lógica que não é a lógica cotidiana. É levado assim a demonstrar que nosso aparato mental é formado pela consciência, cujas regras reconhecemos, e pelo inconsciente, cujos efeitos nos surpreendem por seguir uma lógica diferente e desconhecida (ainda que sempre familiar).

Desta forma, um desejo que não condiz com nossa posição social, nosso sexo, nossa situação civil etc…é 'jogado' naquele campo que não segue as mesmas regras de nossa consciência. No inconsciente, nos diz Freud, este desejo vai procurar sua expressão a qualquer custo. Se não é possível que ele se expresse conscientemente (por que no consciente atua aquela resistência que mencionamos acima, provocando o recalque), ele vai buscar alguma expressão substitutiva que consiga escapar à censura. O sonho pode ser entendido como a expressão de uma série de desejos, que encontram nele a única via para a consciência. É por isto também que o sonho será entendido por Freud como a via régia para o inconsciente, uma vez que é sua manifestação mais direta.

Mas dissemos que o sonho e os sintomas possuem uma estrutura comum. Isto ficará mais claro no próximo ítem, mas digamos desde já que o sintoma neurótico é também uma manifestação de um desejo. A principal diferença é que no sintoma uma solução é encontrada para que o desejo se apresente na consciência. Também neste caso, contudo, este desejo se manifestará com as distorções necessárias para que possa ser aceito pelo consciente.

O funcionamento do sonho

O inconsciente é freudiano. Antes de Freud já se falava de inconsciente, mas o conceito de inconsciente é algo inédito. Falar do inconsciente como franja da consciência, como sub-consciente ou como algo que não sabemos mas que podemos saber com algum esforço de nossa parte não é falar do inconsciente freudiano. O inconsciente tem suas leis e particularidades rigorosamente formuladas e a precisão deste conceito se faz mais necessária com sua popularização, que tende a deturpá-lo.

Aos processos que ocorrem no inconsciente Freud chama processos primários, em oposição aos secundários, do consciente. Têm por característica não levar a realidade em consideração, tolerar contradições, não conhecer a temporalidade e acima de tudo, buscar a realização de seus impulsos. Freud decifrou a gramática destes processos, descobriu os meios pelos quais atinge seus objetivos. Dois mecanismos básicos são localizados: a condensação e o deslocamento. Nos estenderemos nisto, por ser um dos mais importantes pontos de A Interpretação dos Sonhos.

É nos capítulos 6 e 7 do livro que Freud desenvolve o mecanismo de trabalho dos sonhos e o funcionamento do aparato mental. Apresenta o mecanismo de deslocamento na possibilidade que as idéias têm, no inconsciente, de 'emprestar' seu valor para outras idéias, de modo que fatos ou imagens aparentemente sem importância podem ter sido amenizadas, com o quê burlam a censura, compondo o material do sonho. De forma inversa fatos que aparecem no sonho como extremamente nítidos ou valorizados usualmente ganharam seu relevo por uma associação a outra idéia, esta sim, de grande importância.

No sonho há também em funcionamento o mecanismo da condensação. Este mecanismo permite que um pequeno detalhe possa representar uma idéia completa. Nos exemplos de Freud vemos como características isoladas de uma pessoa podem representá-la por inteiro ao se compor com outras características que representam outras pessoas. Assim, um personagem pode estar ocupando a função (que tem na realização do desejo) de toda uma multidão de personagens que não figuram no sonho senão por fragmentos.

As razões deste trabalho de montagem são explicadas pelo aparato psíquico proposto no capítulo seguinte do livro. Neste aparato o ics (inconsciente) figura em um extremo e o cs (consciente) no outro, e entre eles o pcs (pré-consciente). O ics recebe seu material do sistema perceptivo, mas não tem acesso ao sistema motor. O cs controla as ações, mas a realidade que lhe chega já passou pelos processos do ics. Como intermediário entre os dois sistemas figura a censura, ou seja, uma função que determina o que pode e o que não pode aceder à motilidade, levando a realidade em consideração. Todo o material que não pode passar pela censura está condenado a ser recalcado, a ficar relegado ao ics, sem, no entanto, ficar com isto silenciado. O trabalho do sonho é entendido, assim, como o trabalho de distorção necessário para que o material do ics possa se manifestar.

Vale dizer ainda que a distorção a que o material do sonho foi submetida nunca é casual ou caótica, e é por provar isto que o trabalho de Freud adquiriu seu valor. Uma idéia (um desejo, uma intenção ou mesmo uma percepção) está permanentemente relacionada a outras. A natureza desta relação é muito abrangente, podendo ser determinada pela contigüidade espacial ou temporal em que ocorreu, pela similaridade, pela homofonia, enfim, por toda uma gama de possibilidades. O que importa é que a idéia 'principal', uma vez que tenha sido censurada, não poderá ser reconhecida no consciente, mas as idéias com as quais se associa, uma vez que esta associação não seja óbvia, podem ser utilizadas para representá-la (deslocamento). Então, lembrando que no ics as idéias buscam sua expressão, ou nos termos de Freud: os desejos buscam sua realização, o trabalho do sonho é a maneira pela qual um desejo pode se realizar por seus substitutos.

O passo seguinte é o que permite a intervenção clínica da psicanálise. Os sintomas, Freud demonstra, são também realizações de desejo. A diferença em relação aos sonhos é que nos sintomas um compromisso se estabelece entre o desejo e a censura, fazendo com que nem o desejo se realize por completo nem a censura seja totalmente eficaz. Desta forma um desejo mais 'amenizado' é realizado.

Uma conseqüência direta desta explicação do sintoma é muita incômoda para todos nós. Se nossos desejos devem levar em consideração a realidade para que possamos aceitá-los, como saber se o que reconhecemos como nossos desejos não são amenizações de nossos 'verdadeiros' desejos, estes inconscientes? Em outras palavras, uma vez que vivemos em sociedade, tendo que considerar suas regras, somos todos neuróticos.

A psicanálise hoje

A transmissão da psicanálise foi garantida, a partir da década de 50, por Jacques Lacan. Em sua leitura desta obra de Freud propõe que o que é formulado é um inconsciente estruturado como uma linguagem. A condensação e o deslocamento podem ser entendidos como a metáfora e a metonímia e a estrutura associativa das idéias como a cadeia de significantes (que só podem existir entre dois outros, em associação). Partindo da clínica das psicoses (Freud partiu da neurose) Lacan amplia o campo psicanalítico e encontra a precisão necessária ao ensino e à transmissão da psicanálise.

Paralelamente, o pragmatismo americano se empolga em afirmar que a psicanálise está em crise. A descrença americana na psicanálise é equivalente à descrença freudiana nos americanos (afirmou algumas vezes que os americanos jamais compreenderiam a psicanálise - e a história o confirmou). Como a ciência atual se encontra cada vez mais marcada pelo funcionalismo e utilitarismo tão típicos do american way, a psicanálise encontra seu campo (ao contrário do que se previu) cada vez mais valorizado. A razão para isto é muito simples. Cada vez mais o homem é tratado como um objeto sem desejos; se há falta de interesse sexual pela esposa há uma pílula que o resolva, se há falta de empolgação pela vida há uma outra, e etc…Nos tempos do Viagra e do Prozac, o homem se encontra na necessidade de encontrar saídas menos mecânicas para a angústia que a vida em sociedade cobra como preço. Vemos brotarem novas crenças e novas terapias ditas alternativas a cada dia, vemos a procura de oráculos e gurus que prometem soluções prontas, vemos, enfim, os efeitos colaterais da coisificação do homem. A psicanálise, absorvendo bravamente os golpes em seu centenário, cada vez mais se mostra como a única prática fundamentada a se propor trabalhar nesta realidade em que vivemos.

(*) Augusto Cesar Freire é psicanalista associado ao Tempo Freudiano Associação Psicanalítica e doutorando em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 

 

 

           
     
 
   
     
Atualizado em 10/10/00
   
     
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