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Para presidente da Adunicamp reforma vai destruir a universidade pública
Maria Aparecida Affonso Moysés

Autonomia com compromisso social
Sergio Cardoso

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Maria Aparecida Affonso Moysés

Para presidente da Adunicamp reforma vai destruir a universidade pública

A médica pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Campinas (Adunicamp), considera que a reforma universitária proposta pelo governo federal atende aos interesses do Banco Mundial e não às reais necessidades da população jovem brasileira. Com desvio de recursos para o setor privado, em forma de isenção de impostos, que poderiam ser repassados diretamente para as universidades públicas, a reforma não contribui para a formação de um estado nacional soberano. Para ela, o que está se chamando de estatização das vagas não é bem isso. Se os recursos fossem aplicados diretamente nas universidades públicas seria possível ampliar vagas e melhorar a infra-estrutura e qualidade das mesmas. O que Moysés defende é "universidade para todos só se for pública".

ComCiência - Por que a Adunicamp está chamando de "contra-reforma da universidade pública" a reforma universitária proposta pelo atual governo?

Maria Aparecida Moysés - Não apenas a Adunicamp tem chamado a reforma universitária de contra-reforma, mas o movimento docente em geral e o movimento estudantil que também a entende como uma contra-reforma. Um dos problemas é que esse governo vem se apropriando e deturpando bandeiras históricas e expressões específicas de alguns movimentos. Isso é um processo político e ideológico bastante conhecido. O sentido histórico da expressão reforma é de avanço, aperfeiçoamento e melhoria que no caso da universidade brasileira se caracterizaria pela democratização do acesso ampliação das vagas democratização das relações intra-universidades e da universidade com a sociedade. O que está sendo proposto pelo governo Lula da Silva tem exatamente o sentido contrário, porque destrói tudo o que já foi conquistado. A forma como a reforma da universidade foi apresentada também tem confundido a população e parcelas da comunidade universitária.

O que queremos é uma outra reforma e não essa que caracteriza a destruição da universidade pública. Claro que somos a favor da democratização do ensino, mas com uma ampliação de vagas com qualidade e não apenas quantidade. A expansão de vagas da universidade é uma bandeira nossa, agora não dá para concordar que primeiro se expanda e depois se dê a qualidade. Essa expansão que está sendo feita é uma enganação da população, especialmente dos jovens da periferia e do Movimento dos Sem Universidade, que estão sendo usados por alguns líderes do governo.

Como disse o Ministro da Educação, Tarso Genro e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, "para pobre qualquer coisa está bom". O projeto de vaga em universidade privada e vagas para negros, pobres e ex-presidiários, na verdade está afirmando: "para cidadão de segunda classe qualquer coisa serve".

O que temos percebido é que a população em geral não quer a Unip ou a Estácio de Sá, ela quer a Unicamp, a USP, a Unesp, a UnB, a UFRJ. Esse é o jogo complicado e perverso do governo. Hoje não se monta uma universidade igual a essas, mas é essa qualidade que o povo quer e não aquela da fábrica de diplomas. A universidade é uma instituição séria que não está somente comprometida com o ensino, mas principalmente com a pesquisa. E quem faz pesquisa no Brasil são as universidades públicas. Aliás, chamar as universidades privadas de universidades é uma apropriação indevida dos conceitos.

Defendemos que "universidade para todos só se for pública". O valor que o governo está disponibilizando com isenção fiscal para as universidades privadas seria suficiente para dobrar o número de vagas nas universidades federais, com qualidade. Mas, se o governo prefere, não dar recursos para a universidade federal e ainda desviar esses recursos para a universidade privada, podemos concluir que o discurso usado sobre razões financeiras que impossibilitam o aumento de vagas nas universidades públicas, é falso. Na verdade é uma opção ideológica de privatização do público e de destruição da universidade pública.

ComCiência - No ciclo de debates "SOS Universidade Pública", realizado em abril de 2004 pela Adunicamp, o professor Roberto Leher (UFRJ), afirmou que "a parceria público-privado é a coluna vertebral da contra-reforma universitária". Como a Adunicamp vê essa parceria?

Moysés - Um grande número de autoridades, políticos e intelectuais falam que a universidade está em crise, mas não dizem que crise é essa. Na verdade esse é um chavão que se criou para justificar esse processo de destruição. Pois qual é o grande problema da universidade brasileira hoje? É a falta de recursos. Realmente ela atende uma parcela pequena dos jovens brasileiros, mas não por que ela é elitista, e sim porque não tem recursos para expandir as vagas.

O sistema de educação no Brasil, em sua totalidade, é altamente restrito, por falta de investimentos do governo. O governo compreende que os recursos que vão para a educação são despesa e não investimento. Outro ponto importante que não é divulgado nem pelo governo, nem pela mídia, é que as universidades públicas atendem um percentual maior de pessoas de baixa renda do que as universidades privadas, e isso é completamente ignorado. São poucos, concordo, mas não é por que a universidade é elitista. Tenta-se demonizar a universidade pública para ganhar apoio para a reforma.

É apenas demagogia quando o governo afirma que 50% das vagas das universidades públicas serão destinadas para alunos vindos de escolas públicas. Pois no mínimo essas cotas tinham que ser estratificadas. Por que? Porque vão vir 50% de qual escola pública? Vai separar o que é escola central e escola periférica? Diurno e noturno? Escola rural e escola urbana? Norte e Sudeste do Brasil? As cotas vão considerar essas diferenças, espaciais, sociais, econômicas e culturais? Qual é o projeto posto? O projeto é a destruição da universidade pública e a privatização dos recursos públicos. A renúncia fiscal prevista pela LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) encaminhada para o governador Geraldo Alckmin na Assembléia Legislativa foi de 9,7 % do ICMS paulista. É maior do que é destinado para as três universidades públicas estaduais de São Paulo. É um absurdo que quase 10% da arrecadação entre em renúncia fiscal.

Isso é a privatização do público. Então, por que não tem recursos? Isso que já vinha acontecendo, a parceria público-privado, se consolida definitivamente. Ou seja, criada a infra-estrutura ela é entregue para empresários, com a garantia que em vinte ou trinta anos eles não terão nenhum ônus e nenhum risco e, ainda, terão o lucro garantido. Esse é o melhor dos mundos, isso não estava previsto no capitalismo, pois no capitalismo há riscos.

Aqui acontece exatamente o inverso do que ocorre nos países desenvolvidos. Ao invés da empresa investir no desenvolvimento de ciência e tecnologia na universidade, o Estado dá dinheiro para a empresa, para que ela compre da universidade os seus serviços. E isso destrói qualquer possibilidade de ciência pura. Além de transformar a universidade pública em mera prestadora de serviços, o fluxo de recursos vai do Estado para as empresas e não das empresas para as universidades. A justificativa é que isso aumentaria a capacidade industrial, portanto geraria empregos, o que não é verdade, pois todos nós sabemos que quanto maior o desenvolvimento tecnológico mais se reduz a necessidade de criar novos postos de trabalho.

ComCiência - O documento produzido pelo Fórum de Políticas Públicas (grupo não institucional que congrega diversas universidades) indica que a origem do processo de corrosão institucional das universidades está no relatório do Banco Mundial, de 1980, sobre as universidades da América Latina. Nesse relatório as universidades são classificadas como "improdutivas, ineficientes e pesadamente burocráticas". Que elementos da reforma proposta na década de 1980 estão presentes na proposta atual?

Moysés - É praticamente uma cópia, porém de um modo aprofundado e até modernizado. Porque de 1980 para cá também se aprofundaram as propostas do Banco Mundial. Com o processo de globalização tudo isso se refinou e o que tem de diferente é aquilo que piorou. Mais um dado importante é que nessa época o PT estava na oposição e um conjunto de militantes históricos não deixaram passar a reforma. Esse documento é responsável pela destruição da universidade transformando-a em mera prestadora de serviços.

A Lei de Inovação Tecnológica, por exemplo, não é uma lei, é uma adaptação tecnológica, relacionada a prestação de serviços. Coisas desse tipo, que estão sendo propostas, não são produção de conhecimento e nem desenvolvimento de tecnologia, mas meras prestações de serviços. É essa a proposta que destruiu a universidade no Chile e em vários países da América Latina e que está sendo proposta pelo Banco Mundial para as universidades brasileiras, só que aprofundada e muito pior, porque o processo de globalização e da força do capital financeiro se tornou muito mais profundo.

ComCiência - A reforma da universidade vem sendo implementada pelo governo federal por meio de medidas provisórias e decretos. Como a Adunicamp vê esse procedimento?

Moysés - Diferente da reforma da previdência para a qual foi apresentado um projeto e que permitiu uma reação, a reforma universitária está sendo fatiada de modo que a reação fique diluída. Isso é assustador. Na verdade, a reforma, ou melhor, a destruição da universidade está posta. A reforma destrói um dos poucos espaços de política de contestação. E veja, não é por acaso, destrói-se a universidade, a estrutura sindical, e qual é o espaço de contestação e de crítica possível? Ficaríamos sem.

Na Assembléia Legislativa temos falsos debates e falsas audiências. As cotas, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), tudo o que está sendo decidido agora compõe o projeto e então, quando chegar o final do ano, todas as partes já estarão implementadas.

Acho que uma questão importante é entender que no dia 02 de agosto o governo apresentou o Documento II do MEC, que substitui o antigo documento de 2003, com um prazo até o dia 20, que foi prorrogado, para envio de propostas e sugestões. A audiência em Belo Horizonte foi sexta-feira, dia 20 de agosto. Mas qual a função dessa audiência? O projeto já está definido há tempos e, pior de tudo, fora do Brasil. Lendo os documentos nacionais o que se vê é praticamente um projeto do Banco Mundial. Em cada acordo com o Banco Mundial ou com o FMI está posta uma cláusula que diz como o governo deverá agir, condicionando assim suas ações. O ano passado era a reforma da previdência e esse ano a reforma da universidade.

ComCiência - É possível fazer uma análise positiva da proposta de reforma universitária feita pelo governo Lula?

Moysés - Sim. Só depende de onde você está e de onde você olha. Por exemplo, para o capital especulativo a reforma inteira é altamente positiva. Para o Banco Mundial ela é altamente positiva. O que quero dizer é que depende para quem você pergunta. Têm vários intelectuais no Brasil que a consideram positiva. Tudo depende de qual é o projeto de nação e de universidade que se tem. Para nós, do movimento docente em defesa da universidade pública gratuita e de qualidade é um desastre completo, não há como olhar a reforma proposta como uma coisa positiva. É como se andássemos para trás, efetivamente. Nossa geração que assistiu uma proposta de 1968/69, notou uma contra-reforma e mobilizou bastante os estudantes. Hoje, a proposta é muito pior do que a da ditadura militar. Porque a ditadura militar com todos os seus defeitos ainda tinha um projeto de soberania para o país.

A diferença entre essa reforma e a reforma da previdência é que esta foi uma alteração da constituição e precisou passar por um projeto de emenda constitucional. Já a reforma universitária não. Eles optaram por não enfrentar uma reação organizada. Então fatiaram a reforma, estabeleceram prioridades táticas e deixaram a gratuidade do ensino para facilitar a adesão, por exemplo, da UNE (União Nacional dos Estudantes) e de vários intelectuais e jornalistas. A população compra a idéia das declarações do Tarso, as quais os jornais sistematicamente reproduzem. Para ele na universidade pública só tem a pequena burguesia ou a elite aproveitadora que impede a população de baixa renda de freqüentar a universidade. Na verdade, eles transformam isso num discurso como se nós estivéssemos lutando contra a população mais pobre e não denunciando mais um engodo e uma traição desse governo.

ComCiência - Na alteração feita pelo Ministério da Educação, via Medida Provisória, do antigo Provão há a inclusão de um novo item chamado de "compromisso social". O que essa alteração significa para as instituições universitárias?

Moysés - Essa alteração relaciona-se com alguns critérios de relevância, ou seja, os critérios que uma universidade precisa cumprir para ser considerada relevante e, conseqüentemente, ter acesso a recursos públicos. São três os critérios. O primeiro é de qualidade acadêmica e científica, o segundo para inserção da comunidade ou para o atendimento das demandas da comunidade, já o terceiro ponto eu considero que tem uma redação muito esquisita. É sobre a relevância do conhecimento produzido ter simultaneamente um enraizamento local e uma ligação internacional. Ou seja, se alguém estuda algo que seja um problema particular do Brasil e que não tenha uma articulação internacional, então não tem valor acadêmico nenhum. Tem que estar com um pé aqui, mas articulado com a globalização. Quais são as pesquisas que fazem isso? Quais são os campos de pesquisa que tem isso? Qual é a relevância, para esse ponto, o estudo lingüístico de uma comunidade africana no Brasil? É submeter o conhecimento acadêmico e o conhecimento a ser produzido àquilo que é publicado em algumas poucas revistas internacionais. Portanto, os estudos específicos de problemas do Brasil só terão sentido se forem considerados relevantes por organismos internacionais.

ComCiência - Uma das exigências do Banco Mundial e do FMI ao governo brasileiro é a "revisão do princípio de gratuidade". Na visão da Adunicamp, o que representa essa exigência?

Moysés - O Banco Mundial e o FMI impuseram algumas condições como atrelar as estruturas jurídica, constitucional, política e financeira aos interesses do capital financeiro internacional. A educação é vista como um investimento, um lugar onde se ganha dinheiro. Não interessa aos organismos internacionais uma universidade pública e forte em um país subdesenvolvido. A universidade é um dos poucos elementos que possibilita a independência de um país. A proposta do governo é isso: "vamos estimular a abertura de universidades particulares". Todos usam e abusam do conceito do público não estatal. Então é isso, a universidade privada pode ser pública, mas não estatal, pois o governo investe dinheiro nela. Chega a ser um cinismo tão grande que, quando o projeto Universidade para Todos foi proposto, o governo chegou a dizer que era a "estatização da universidade privada". Ou seja, eles estavam indo na contramão da privatização. O cinismo está no fato de que não tem nada de estatização. O fato é que o governo passa dinheiro público para a universidade privada. A parceria público-privado destrói o limite entre o que é público e o que é privado.

ComCiência - Como deveria o projeto de reforma da universidade?

Moysés - O projeto de reforma da universidade que foi pensado antes da ditadura militar contava com vários intelectuais que lutavam pela democratização da universidade, do acesso e das relações institucionais. Havia uma discussão da relação da universidade com a sociedade, das concepções de ciência e tecnologia, enfim, vislumbrava-se a universidade como um elemento na construção de uma nação soberana. Entendia-se que extensão da universidade não é apenas prestar serviços, mas é formação profissional e produção de conhecimentos acessíveis à toda população, e não uma apropriação privada.

Um conhecimento para a construção e o fortalecimento de uma nação soberana, para a melhoria da qualidade de vida e que ofereça educação de qualidade para toda a população: esse é o projeto de reforma que queremos. Na nossa avaliação, a proposta do governo é uma contra-reforma porque é a destruição da reforma. Uma reforma digna e verdadeira será aquela que procurar atender as novas questões que estão postas para a sociedade.

Atualizado em 10/09/2004

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