Análise 
            
            
            O software é uma nova mercadoria? 
            Rafael Evangelista 
          O que leva uma indústria 
            tão poderosa e influente como a do entretenimento a se expor a uma 
            publicidade negativa e pedir a prisão de um punhado de garotos interessados 
            em assistir filmes em seu computador? Qual é a ameaça que estes garotos 
            podem trazer, sem sairem de casa, aos negócios de uma indústria tão 
            forte e mundialmente bem organizada como a do cinema? O que aconteceu 
            com o capitalismo, que corporações do tamanho de uma Sony, uma Universal, 
            uma Warner sentem-se ameaçadas por um garoto de 16 anos a ponto de 
            gastar o tempo de seus bem pagos advogados para mandar prendê-lo? 
            
          A resposta para esta pergunta 
            talvez esteja nesta máquina que tanto tem transformado as relações 
            de trabalho e pessoais nas últimas décadas do século XX: o computador 
            pessoal. Ao contrário de tantos outros objetos que somos compelidos 
            a comprar por pura necessidade de sobrevivência ou por influência 
            da indústria da propaganda, o computador é uma mercadoria que é capaz 
            de produzir outras mercadorias. As empresas que tem tido maior rentabilidade 
            nos últimos anos - apesar da constante e dramática oscilação do valor 
            de suas ações - não são mais aquelas que produzem carros, eletrodomésticos 
            ou outros bens materiais, são aquelas ligadas ao mundo da informática. 
            E, dentro deste mundo, as maiores empresas não lidam com a produção 
            das máquinas em si, mas com as informações que serão fornecidas aos 
            computadores, é a indústria do software. 
          Para produzir as mercadorias 
            que as empresas de software vendem é necessário um investimento relativamente 
            muito pequeno na compra das máquinas que vão ser capazes de gerar 
            estas mercadorias, o resto é informação. E esta informação pode ser 
            conseguida observando o funcionamento de uma mercadoria similar à 
            que se quer produzir - a engenharia reversa que Johansen utilizou. 
            É como se as máquinas e as matérias-primas para produzir carros estivessem 
            à disposição de todos, bastaria apenas saber manipulá-las. Em tese, 
            um indivíduo que receba um computador pessoal sem software algum, 
            até mesmo sem sistema operacional, é capaz de criar tudo sozinho. 
            
          Claro que isto é apenas 
            um exemplo, o esforço necessário seria sobrehumano. Contudo, ele serve 
            para demonstrar como se alteram as relações de consumo de mercadorias 
            na era da informática. É dado ao indivíduo a possibilidade de criar 
            as mercadorias que lhe interessem ou alterar aquela que ele comprou 
            (ou copiou). Todo o movimento do software livre e do Linux gira em 
            torno disto, é uma rede de pessoas que cooperam entre si no sentido 
            de criar bens que satisfaçam às suas necessidades mas que não necessariamente 
            sejam postos à venda. Isso assusta a indústria do software. Quem vai 
            se dispor a pagar quase mil reais pelo Microsoft Office se existe 
            um similar para o sistema Linux disponível de graça na internet? 
          No caso do norueguês Johansen, 
            o que motivou a indústria do cinema a agir foi a perspectiva de que 
            aconteça com os filmes o mesmo que já acontece com a música. Quando 
            a indústria coloca os filmes no formato digital, em DVD, ela possibilita 
            que alguém invente um formato de compactação de arquivos para filmes 
            similar ao mp3, o que tornaria a transmissão destes arquivos pela 
            internet viável. O software de Johansen é capaz de ler os arquivos 
            de filmes mesmo sem um aparelho de DVD e pode ser adaptado para o 
            sistema Windows ou para o Macintosh. 
          O impacto destas transformações 
            no capitalismo é muito difícil de se prever. As grandes corporações 
            já entenderam as perspectivas destas mudanças e vem empreendendo esforços 
            no sentido de manter em suas mãos o controle da venda e da circulação 
            destas novas mercadorias - ou das velhas em novos formatos. O processo 
            contra Jon Johansen e outros casos semelhantes são um sinal 
            disto.