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O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro
Carl Sagan
Companhia das Letras, São Paulo, 1996.

por Roberto Belisário

Seqüestros por alienígenas, anjos e gnomos, feitiçarias e maus-olhados, curas quânticas e o poder extraordinário das pirâmides. Um dos muitos paradoxos do mundo moderno é a convivência entre o enorme sucesso da ciência e da tecnologia e a disseminação de crenças não-científicas ou pseudo-científicas nas sociedades.

Mitos sempre existiram. A novidade é que, no seio de nossa cultura "científica", vários deles assumem formas "modernas" e procuram na própria ciência respaldo para se sustentar - apesar de atropelarem sistematicamente os métodos científicos -, produzindo as chamadas "pseudociências". Ironicamente, sua difusão é enormemente facilitada pelos mesmos meios de comunicação de massa que a ciência ajudou a criar. A ciência é "filtrada" por uma mídia em grande parte acrítica e sua parte mais importante, o seu método crítico, não chega à população em geral.

Poucos cientistas se arriscam nesse debate. O astrônomo e escritor norte-americano Carl Sagan (1934-1996), autor da série de TV Cosmos e um dos maiores divulgadores científicos de nossa época, é uma exceção. Em O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro, ele ergue o estandarte da ciência para mostrar as origens das teorias pseudocientíficas e usa-o para rebater inúmeros casos específicos, desde histórias famosas sobre raptos por alienígenas até "superstições estatísticas" em loterias e jogos de roleta.

A tese central de Sagan é que o antídoto do cidadão comum para não tomar gato por lebre - ou ciência por pseudociência - é a aliança equilibrada entre a postura cética e a abertura da mente para idéias novas. A importância dessa atitude, diz o autor, é que "as conseqüências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa época do que em qualquer outro período anterior" (pág. 21), devido aos perigos potenciais dos avanços tecnológicos na vida cotidiana, quando mau usados. Desde 1996, ano da publicação do livro, os acontecimentos confirmaram e aprofundaram essa idéia: avanços recentes como os medicamentos genéricos, alimentos transgênicos e a engenharia genética, além de fatores mais antigos, como usinas nucleares, armas nucleares, antibióticos usados indiscriminadamente e produtos que destróem a camada de ozônio exigem modificações na legislação e a participação de toda a sociedade para evitar efeitos nocivos. [1]

Boa parte do livro contém uma coleção preciosa de desmistificações de uma série de fenômenos "inexplicáveis", incluindo previsões astrológicas, visões e raptos por discos voadores e bruxarias. Mas a obra não se resume a um compêndio de desmentidos. Trata-se de um livro vasto, que cobre uma série de aspectos das origens das pseudociências e das relações entre a ciência e a sociedade.

Pode-se distinguir, entre os 25 capítulos, cinco partes principais. Nos dois primeiros, discute-se a importância da ciência e suas características principais. A seguir, passa-se a discutir os principais fatores responsáveis pela permanência das crenças não-científicas na sociedade. As razões são certas características culturais e biológicas herdadas de nossos antepassados longínquos, fundamentais para a sobrevivência de nossa espécie, mas que podem funcionar como armadilhas para o discernimento quando não reconhecidas. Cada capítulo versa sobre um aspecto dessas armadilhas, ilustrado por vários exemplos concretos.

 

Foto da "Face de Marte" , tirada pela sonda
norte-americana Viking Orbiter 1,
após tratamento digital. "A Face"
guarda surpreendente semelhança
com o rosto de Cristo.
Fonte: Nasa

Por exemplo,a capacidade de reconhecer padrões, inata no ser humano e que nos faz abstrair formas em nuvens e em conjuntos de estrelas (constelações), é responsável pelas visões de canais em Marte e da face de Cristo no mesmo planeta. Alucinações, coletivas ou não, são ilustradas por visões de OVNIs e da Virgem Maria. Reconhecimento de padrões também aparecem na falsa identificação de regularidades em fenômenos aleatórios, como em especulações em jogos de loteria e de roleta.

Sendo o autor astrônomo, boa parte desses primeiros capítulos dedica-se a desmentir histórias sobre visões e raptos por seres extraterrestres, incluindo falsificações propositais - como os círculos perfeitos nas plantações da Inglaterra -, teorias conspiracionistas, como os casos Roswell e da Área 51 [2] e disseminações de histórias através de uma mídia quase acrítica.

A maior parte dos outros assuntos é abordada em função das histórias sobre ETs. Por exemplo, são identificados alguns paralelos entre histórias de raptos por OVNIs e histórias de bruxas e de rituais satânicos - a maioria dos elementos centrais das histórias de rapto por alienígenas está, segundo o autor, presente na paranóia que queimou inúmeras mulheres acusadas de bruxaria na Idade Média. Sagan pretende mostrar com isso que os relatos de raptos por alienígenas são apenas mais um tipo de representação mítica dos medos e desejos humanos: os ETs seriam as versões modernas das bruxas, gnomos e duendes (curiosamente, o Brasil está experimentando um novo "surto" de duendes e anjos povoando o mundo, responsável pela repercussão de obras como as da escritora Mônica Buonfiglio). Alguns casos de raptos por alienígenas e de rituais satânicos são explicados a partir da memória recuperada de abusos sexuais na infância.

 

A mesma foto da Face de Marte tirada pela sonda norte-americana Mars Global Surveyor, em 1998. As sombras, mais detalhadas, já não sugerem face alguma.
Fonte: Nasa

A obra não é um texto de filosofia da ciência ou de epistemologia e Sagan não se aprofunda nas relações entre pseudociências, mitos, medos e desejos. Essas relações são visíveis, porém, numa leitura atenciosa do livro. O maior valor dessa parte da obra está em mostrar como as diversas pseudociências não resistem a uma análise mais apurada.

A partir do capítulo 12, a abordagem muda e o autor passa a complementar os doisprimeiros capítulos com a descrição das características da ciência, as razões pelas quais a abordagem científica é a mais apropriada e a comparação com as pseudociências. Novamente Sagan não mergulha em teorias epistemológicas, mas descreve o lado prático do pensamento cético, baseado em sua experiência como cientista. Sagan apresenta o que chama de "kit de detecção de mentiras", uma exposição bem elaborada da essência do pensamento cético e seus instrumentos. Esta parte da obra inclui uma interessantíssima lista de cerca de 20 falácias de argumentação mais comuns (páginas 210-215), ilustradas por numerosos exemplos afinados com o cotidiano das pessoas. Por exemplo, o argumento ad hominem, "quando atacamos o argumentador e não o argumento", ou o post hoc, ergo propter hoc ("aconteceu após um fato, logo foi por ele causado").

Nos oito capítulos finais, Sagan afasta-se do combate direto à pseudociência e passa a descrever as relações entre a ciência e a sociedade. Os problemas na educação e na divulgação científica são abordados nos primeiros três. Os últimos são dedicados às relações entre ciência e política, incluindo a importância da cultura científica na formação da cidadania (o autor tem uma experiência pessoal a contar sobre isso), a relação entre instrução e liberdade, a importância da pesquisa básica e o problema das verbas para pesquisas.

Uma agradável surpresa aparece nas páginas 324-327, quando o autor tenta passar sua enorme experiência em divulgação científica e explica ao leitor como ela deve ser feita. Qual o segredo da vulgarização científica de sucesso? Sagan é direto: "não falar para o público em geral como falaríamos com nossos colegas do ramo" é o único segredo. Entre as "armadilhas potenciais" no trabalho de divulgação, Sagan cita "a simplificação exagerada, a necessidade de ser econômico com as qualificações (e quantificações), o crédito inadequado dado aos muitos cientistas envolvidos e as distinções insuficientes traçadas entre as analogias úteis e a realidade". Entre os bons exemplos de divulgadores, são citados os biólogos Stephen Jay Gould e Richard Dawkins, os físicos Steven Weinberg e Kip Thorne, o químico Roald Hoffmann e os astrônomos Fred Hoyle e Isaac Asimov.

[1] O caso da África do Sul é um exemplo concreto de o quanto o analfabetismo científico pode ser trágico: o presidente Thako Mbeki recusa-se a aceitar as inúmeras pesquisas que apontam o vírus HIV como o causador da AIDS (vide a Decração de Durban) e proibiu a administração de medicamentos à população, inclusive às gestantes, cujos filhos teriam muito mais chances de serem salvos se fossem medicadas (cf. Folha de S. Paulo de 17/12/00, pág. A25). A África do Sul é um dos países mais atingidos pela AIDS, com cerca de 10% da população contaminada pelo HIV. Outro caso famoso é o da cantora Nara Leão, que tentou curar um tumor no cérebro através de medicinas alternativas que não fizeram mais do que fazer desaparecer os sintomas (um efeito perigosíssimo!). Nara morreu por causa do tumor pouco depois, em 1989.

[2] O leitor pode tentar desvendar com seus próprios olhos os "mistérios" da ex-secretíssima base militar norte-americana conhecida como "Área 51" nas fotos de satélite disponíveis desde 1998 no site da Terraserver .

Atualizado em 10/12/00
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