O que está acontecendo com nossa saúde mental?

Por Ana Augusta Odorissi Xavier e Adriele Eunice da Silva

O Brasil lidera o ranking mundial dos transtornos mentais considerados as “doenças do século XXI”, de acordo com dados da última estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2017. Ocupamos a primeira posição em prevalência de ansiedade, com mais de 18 milhões de pessoas sofrendo desse transtorno no país. Isso equivale a 9,3% da população brasileira. O país também figura no segundo lugar mundial em casos de depressão: são 11 milhões de brasileiros com a doença. Cientistas relacionam esses números ao modo como funciona a sociedade atual e investem em novas técnicas que auxiliem no diagnóstico dos diferentes transtornos mentais. 

“A sociedade está ficando cada vez mais individualista, há uma pressão muito grande por performance e as pessoas acabam vivendo sozinhas em cidades grandes. As interações estão cada vez menos sociais e mais digitais, há menos apoio da comunidade e muitas pessoas estão longe das suas famílias”, explica Marcelo José Abduch Adas Brañas, médico psiquiatra e supervisor no Ambulatório para o Desenvolvimento dos Relacionamentos e das Emoções do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). As características citadas por Brañas vão ao encontro do conceito de modernidade líquida alcunhado pelo filósofo e sociólogo polonês Zigmunt Bauman, em seu livro homônimo, para definir o período histórico em que vivemos. Na modernidade líquida, a única coisa permanente é a mudança.

Bruno Ferrari Emerich, psicólogo e doutor em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que este modus operandi da sociedade atual está fortemente associado ao elevado número de casos de transtornos mentais no mundo. “As mudanças nas relações interpessoais e na organização dos processos de trabalho fazem com que algumas pessoas fiquem mais vulneráveis ou sofram maior impacto na sua qualidade de vida e na sua saúde mental”. Emerich observa que a velocidade das mudanças traz uma urgência na resolução de problemas, que reflete em uma busca maior por tratamentos e medicalização, e também na culpabilização do indivíduo por questões que são coletivas. “Há uma padronização de modos de estar no mundo e isso acaba gerando muito sofrimento. Como se fosse culpa do sujeito, e não da [um problema da] perspectiva social de lidar com a diferença, de reconhecer o tempo e as escolhas de cada um.”

A “digitalização” das relações por meio das redes sociais é um evento recente, mas já existem estudos evidenciando o impacto negativo da utilização excessiva dessas plataformas na saúde mental dos usuários. Uma pesquisa realizada com mais de 6.500 adolescentes na Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, apontou que aqueles que gastam mais de três horas diárias nas redes sociais apresentam maior risco de transtornos mentais. Da mesma forma, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, no mesmo país, mostraram, em um estudo realizado com estudantes da mesma universidade, que a redução do uso das redes sociais para 30 minutos ao dia promoveu uma diminuição no sentimento de solidão e depressão entre os universitários.

O efeito do uso de novas tecnologias também repercutiu na saúde mental dos trabalhadores. Para Anelise Schaurich dos Santos, psicóloga e doutora em psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e atuante nas áreas de psicologia organizacional e do trabalho, é impossível desvincular o aumento dos casos de transtornos mentais da reestruturação produtiva ocorrida a partir da década de 1970. “Aumentou a probabilidade de adoecimento tanto para quem permaneceu empregado, devido à intensificação no ritmo de trabalho e aumento de exigências de qualificação, quanto para quem foi demitido, pela perda da realização pessoal e status que o trabalho representa e a preocupação permanente com questões financeiras”. Foi nessa mesma década que surgiram as primeiras publicações científicas sobre a síndrome de burnout, fenômeno ocupacional resultante do estresse crônico no espaço laboral. Hoje em dia, a estimativa é de que 30% dos trabalhadores brasileiros sofram dessa síndrome.

Traçando um paralelo com o contexto atual, Emerich afirma que o advento de plataformas e aplicativos como o WhatsApp, apesar de criar novas possibilidades de ofícios, permite que estejamos o tempo todo disponíveis e conectados, trabalhando de forma permanente. Segundo o psicólogo, a precarização do trabalho devido à perda de direitos e garantias, que tende a piorar no Brasil após a reforma trabalhista aprovada no Brasil em 2017, e o vislumbre de um futuro de desemprego ou de informalidade como consequência da crise econômica, contribuem para que a saúde seja deixada de lado para entregar o que se pede, a qualquer custo.

O crescente número de casos não pressupõe, a priori, que estamos vivendo uma epidemia de transtornos mentais. “Não há dados suficientes para afirmar [que há uma epidemia], principalmente porque o aumento dos casos é compatível com o crescimento e envelhecimento da população”, alega Brañas. Segundo o médico, progressos na área da saúde, como o surgimento de métodos mais confiáveis de diagnóstico e a especialização dos profissionais, além do movimento positivo de redução do estigma sobre esses transtornos podem, paradoxalmente, ter aumentado a notificação de casos. “Hoje, mais [questões] do sofrimento humano, emocional, psíquico, são consideradas como doenças. Isto não é necessariamente negativo, desde que as doenças sejam diagnosticadas de forma precisa e que medicação seja utilizada apenas quando necessário”. Partindo de uma perspectiva filosófica, Samon Noyama, filósofo e professor do curso de filosofia da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória, no Paraná, afirma que essa “patologização” da vida, tem origem, em parte, da influência da indústria farmacêutica e do imenso mercado consumidor dos medicamentos.

Diagnósticos e tratamentos
Brañas ressalta que investimentos em pesquisa têm evidenciado o potencial de novas tecnologias de imagem para a conclusão de diagnósticos. Técnicas como a ressonância magnética funcional, que “permite avaliar quais estruturas cerebrais estão mais ou menos ativadas em determinado momento”, são recursos que poderão ser úteis na identificação de casos onde padrões de atividade cerebral já são conhecidos, como por exemplo o transtorno de personalidade borderline.

Apesar desses avanços, o veredito da clínica continua soberano. “O diagnóstico em psiquiatria é um processo complexo e envolve a observação cuidadosa de alterações do estado mental do paciente, bem como a exploração de suas vivências internas. Além disso, é essencial uma entrevista com familiares e pessoas que convivem com ele para conhecer melhor, não só sintomas e características atuais do paciente, mas sua trajetória e biografia. Assim, o diagnóstico não se baseia simplesmente na presença ou ausência de um determinado sintoma, mas de como este sintoma surgiu, em que contexto, com que intensidade e constância”, explica Marcelo Pio de Almeida Fleck, professor e chefe do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Programa de Transtornos de Humor do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Sobre as terapias que vem apresentando melhores resultados, Brañas relata que, felizmente, hoje dispomos de um grande arsenal terapêutico que não havia no passado, como drogas com menos efeitos colaterais e tratamentos baseados em neuroestimulação. Entre os medicamentos, existem opções bastante efetivas contra depressão, ansiedade, e diversos transtornos mentais. “Ainda tem muita coisa para melhorar, porque as medicações não são isentas de efeitos colaterais, mas hoje em dia tem antidepressivos novos que até grávidas podem usar, de tão seguros que são.” Além disso, o uso de ketamina endovenosa, droga que primariamente é usada como anestésico, surge como uma opção eficaz no tratamento de depressões crônicas graves, com alta possibilidade de suicídio.

Abordagens biológicas não-medicamentosas como a eletroconvulsoterapia, bastante estigmatizada no passado sobretudo por seu emprego como instrumento de tortura, aparecem como alternativas para casos mais críticos. “Hoje, no Hospital das Clínicas [da USP], ela [a eletroconvulsoterapia] é feita sob anestesia, com profissionais capacitados, para os casos certos, e funciona bastante. É uma das técnicas mais efetivas na depressão refratária grave”, explica Brañas. Outro tratamento bastante utilizado é a estimulação magnética transcraniana, um método menos invasivo que é feito com o paciente acordado, pelo uso de uma bobina magnética.

“Independentemente do grau de sofrimento, a minha posição é de que as terapêuticas que produzem maior efeito são aquelas que colocam o sujeito como protagonista da sua própria história”, defende o psicólogo Emerich. Segundo ele, a saúde do indivíduo deve ser vista de uma perspectiva ampliada e não somente em relação aos seus sintomas. “Não existe o psicótico, o diabético. Existe o fulano x que tem esse sofrimento, mas esse sofrimento se concatena com uma história de vida que é diferente de todos os outros sujeitos com um corpo que, por mais que tenha um padrão de funcionamento parecido, também tem suas singularidades em relação aos outros.” Assim, a recomendação é que o tratamento com medicação deve ser feito em consonância com psicoterapia e terapêuticas mais subjetivas e simbólicas.

Expressões artísticas e filosóficas também são ferramentas que complementam o tratamento de indivíduos com transtornos mentais. “A atitude filosófica pode ser sempre uma maneira de nos fazer crescer, aprender, ampliar os horizontes e criar meios para ir em direção das nossas utopias”, declara o filósofo Noyama. Segundo ele, a capacidade que as expressões artísticas tem de nos relacionar com os que estão à nossa volta e com nós mesmos é evidenciada no trabalho desenvolvido pela psiquiatra alagoana Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Pedro II (hoje Instituto Municipal Nise da Silveira), no Rio de Janeiro. Na década de 1940, Nise fundou na instituição uma seção de terapêutica ocupacional, onde os pacientes tinham acesso a ateliês de trabalhos manuais e atividades artísticas como música, pintura, modelagem e teatro. “Os transtornos não podem ser segregados à condição exclusivamente patológica com recomendação apenas de tratamento clínico. Temos que admitir sua parte na normalidade da vida humana e na nossa condição enquanto natureza. Os isolamentos, todos eles, são nefastos para a saúde da condição humana.”

Ana Augusta Odorissi Xavier é doutora em ciência dos alimentos (Unicamp) e aluna do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp

Adriele Eunice da Silva é formada em biologia

  • Este texto teve colaboração de Rafael Revadam