[an error occurred while processing the directive] Reportagens

Os caminhos da bioprospecção para o aproveitamento comercial da biodiversidade na Amazônia

Gonzalo Enríquez

I

No estudo da biodiversidade existem dois momentos importantes que delimitam sua atuação: antes e depois da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) – Rio 92. Antes da CDB a proteção da biodiversidade era fundamentada em valores científicos, estéticos e de lazer. A preocupação fundamental era a de preservar espécies carismáticas, tais como certos animais de estimação, mamíferos e aves e, também, dar proteção especial a áreas de beleza exuberante.

As populações locais que, ao longo de gerações, domesticaram e aprimoraram componentes da biodiversidade, foram retiradas das áreas destinadas à proteção. Essas comunidades pagaram os custos da conservação, sem benefícios em troca, tiveram acesso reduzido a componentes da biodiversidade melhorados por métodos tradicionais por várias gerações e, além do mais, seus conhecimentos tradicionais foram apropriados por sistemas de conhecimentos passíveis de proteção intelectual.

Com as mudanças de paradigmas dos anos 1980, os avanços das novas tecnologias permitiram perceber a importância econômica da biodiversidade. Houve a constatação de que populações tradicionais de países pobres e megadiversos estavam sendo usurpadas mais velozmente. Surgiu a necessidade de um regime internacional que conservasse a biodiversidade e promovesse justiça e eqüidade.

Após a Convenção da Biodiversidade ampliou-se e diversificou-se a presença de atores que não eram parte da agenda dos problemas da biodiversidade. Esses novos atores passaram a desempenhar um papel fundamental nos estudos e debates das políticas públicas sobre as diversas manifestações da biodiversidade. Cientistas das áreas naturais e sociais; tecnólogos, bem como o mercado, representado por empresas "bioprodutoras", "bioindústrias", e uma crescente demanda de "bioconsumidores", cada vez mais interessados nos produtos provenientes da biodiversidade, apontam para uma nova fase dos produtos naturais. Fármacos, óleos essenciais, e insumos destinados a uma crescente indústria de cosméticos e de remédios baseada nos produtos naturais, são parte desse novo cenário da Região Amazônica. Também, no âmbito global, os estados nacionais e entidades internacionais participam do debate sobre o tema mais ativamente do que no passado.

De outro lado encontram-se as entidades não governamentais (ONGs) e sócio-ambientais e as populações locais, que lutam pela conservação e o uso sustentável dos componentes da biodiversidade e pela repartição justa e eqüitativa dos benefícios decorrentes da biodiversidade. Este último item tem promovido um consenso entre a maioria dos atores interessados na conservação e aproveitamento sustentável da biodiversidade.

A partir dessas novas discussões e debates sobre a o papel econômico da biodiversidade apareceram novos argumentos que justificam sua importância biológica e econômica, ressaltando seu papel no funcionamento dos ecossistemas, permitindo que o planeta se mantenha habitável (por exemplo, troca de carbono, manutenção das fontes de água superficial e subterrânea, proteção e fertilização dos solos, regulação da temperatura e do clima, dentre outras funções); oferecendo valores estéticos, científicos e culturais, dentre outros valores universalmente reconhecidos, mesmo sendo intangíveis e não monetários. A biodiversidade constitui uma fonte de muitos produtos utilizados pela sociedade contemporânea: alimentos, fibras, produtos farmacêuticos, químicos, óleos naturais, essenciais etc., além de ser a principal fonte de informação para o desenvolvimento da biotecnologia.

O Instituto de Recursos Mundiais, a União pela Natureza e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (1992), consideram que, dos componentes silvestres e domesticados da biodiversidade são obtidos todos os alimentos e muitos medicamentos e produtos industriais. Os benefícios econômicos das espécies silvestres em si, representam 4,5% do PIB dos Estados Unidos, com um valor anual de 7 bilhões de dólares. Cálculos mais recentes, obtidos a partir do final da década de 70, mostram que o valor econômico das espécies domesticadas é ainda maior.

A pergunta que surge dessa constatação é por que o grande potencial de biodiversidade da Amazônia ainda não conseguiu ser mais expressivo na pauta de produção e constituir-se em um fator importante de desenvolvimento regional?

Essa é uma das maiores inquietações dos especialistas que conhecem um pouco das inúmeras possibilidades da região, enquanto fonte de produtos naturais. Sabe-se, no entanto, que apenas a dotação de recursos naturais não é garantia de crescimento econômico, tampouco de desenvolvimento sustentável para quem a detém. Conduzir processos econômicos com base em produtos extrativos tem deixado uma perversa herança para a região. Os ciclos da borracha, madeira e minérios, dentre outros, resultaram num rastro de devastação sem a contrapartida desejada do desenvolvimento regional.

Sabe-se que um dos principais problemas que existem na Amazônia é que o valor da floresta em pé é inferior aos outros usos comercializáveis e um outro problema é a constatação de que a floresta amazônica está sendo substituída por cultivos e pastos. As principais dificuldades em agregar valor à floresta são: 1) um alto desconhecimento sobre a distribuição e densidade da maioria dos potenciais produtos da floresta, 2) faltam mecanismos para agregar valor de mercado aos produtos através das inovações e processos tecnológicos e, 3) as comunidades locais, detentoras do maior banco de informações sobre a biodiversidade, continuam sendo largamente excluídas das cadeias produtivas e, finalmente, constatam-se, também, formas perversas, anormais e desiguais de inclusão social.

II

Nesse contexto, a bioprospecção torna-se um mecanismo que permite o conhecimento e novas possibilidades de uso comercial da biodiversidade, bem como pode contribuir com as comunidades locais para melhorar suas condições de vida e maximizar suas oportunidades, a partir de políticas de inclusão social.

O objetivo básico de todo programa de bioprospecção consiste no descobrimento de organismos que possibilitem o desenvolvimento de novos produtos. Todo programa de bioprospecção reúne três etapas básicas: inventário e coleta de amostras, preparação de extratos e determinação das propriedades.

A bioprospecção pode ser definida como o método ou forma de localizar, avaliar e explorar sistemática e legalmente a diversidade de vida existente em determinado local, e tem como objetivo principal a busca de recursos genéticos e bioquímicos para fins comerciais.

Segundo estatísticas e estudos publicados na imprensa, cerca de 25% dos medicamentos existentes foram elaborados com ingredientes ativos extraídos de plantas. Inúmeras substâncias químicas são usadas regularmente na medicina em todo o mundo, o que mostra a importância do uso da variedade da flora. Na agricultura, a biotecnologia tem se destacado cada vez mais, conseguindo excelentes sucessos na reprodução tanto de plantas quanto na melhoria de produção animal, com importantíssima colaboração de genes de plantas e animais etc.

Dessa forma, a matéria prima, no caso a diversidade de vida, passou a ter maior valor de mercado e, conseqüentemente, mais atenção dos países detentores que, conscientes dessa valoração, passaram a buscar regras para a sua exploração. Assim, surgiu, em âmbito planetário, uma nova forma de exploração de produtos, a exploração dos recursos naturais biológicos, ou seja a exploração da biodiversidade, surgindo então a bioprospecção.

Para a realização e efetivação da bioprospecção é necessário que o poder público, as organizações particulares não governamentais (ONGs), as universidades públicas e particulares, as empresas químicas e farmacêuticas entre outras, as comunidades e a coletividade em geral participem concretamente através de convênios, contratos de concessão, permissão e parcerias em geral.

A maioria dos especialistas sobre o tema ressaltam que devem ser elaborados e executados programas com regras bem definidas, nos quais as partes assumam responsabilidades claras, não esquecendo a legislação vigente do país, lei de patentes, royalties etc., devendo ser regulamentada também internacionalmente, observando diversos princípios de prevenção, preservação, eqüidade distributiva, princípio da participação pública (no qual deverá ser garantida a participação mais ampla possível da população envolvida em todos os seus segmentos) e princípio da publicidade, ou seja, de total transparência.

As principais políticas com relação à bioprospecção colocam ênfase na realização do inventário da biodiversidade, formando uma base de dados concreta para que se conheça o que se tem e, assim, fornecer subsídios para definir seu potencial. Fomentam, também, a conscientização para a sobrevivência dos ecossistemas e das próprias espécies. Destacam-se, ainda, a garantia e repartição dos benefícios às comunidades envolvidas, respeitando o direito de propriedade da medicina natural dos indígenas, tanto coletiva quanto individual (curandeiro) e incentivando o desenvolvimento das relações formais e informais entre a comunidade científica, os grupos indígenas e os diferentes segmentos da sociedade, todos, em sua maioria, interessados na proteção e preservação do meio ambiente, e entre os quais existe consenso de que somente desenvolvendo essas políticas como condição mínima, poderão ser assegurados os direitos dos envolvidos no processo de aproveitamento da biodiversidade.

III

Os acordos de bioprospecção têm sido um dos mecanismos mais utilizados recentemente, estão em plena expansão, para conseguir o aproveitamento comercial da abundante biodiversidade existente nos países da América Latina e Caribe, principalmente no chamado cinturão tropical e subtropical do planeta, onde se concentra mais da metade da biodiversidade mundial estimada, região que, segundo o Fórum Ambiental, de 1998, representa apenas 7% da superfície da terra.

Diversas organizações da sociedade civil (Fórum Ambiental 1998) criticam as ações de bioprospecção. O argumento é de que, no processo de perda da biodiversidade, os principais agentes da conservação, as comunidades locais, incluídos agricultores, indígenas, pescadores e habitantes das florestas, estão sendo eliminados como tais, expulsos de seus territórios e do acesso aos recursos que eles têm conservado e, que por anos, têm sido a base da sua cultura e sustento. Seus conhecimentos ancestrais estão sendo despojados, fragmentados e transformados em mercadorias para o lucro, em decorrência da bioprospecção e dos processos de patenteamento.

Entretanto, outros setores consideram que a bioprospecção é uma atividade lucrativa que, pode perfeitamente favorecer o desenvolvimento e a conservação dos recursos dos países em desenvolvimento e, particularmente, das comunidades locais, através de convênios transparentes que mostrem claramente qual será o benefício dessas comunidades a partir dessas parcerias e tomando todas as cautelas necessárias para que os danos sejam os menores possíveis.

Apesar do processo de bioprospecção ser relativamente novo, podemos, desde já, destacar algumas de suas vantagens já alcançadas: propicia conhecimento da biodiversidade e seu potencial; fornece substâncias importantes ao homem; favorece o crescimento econômico e desenvolvimento das cadeias produtivas da biodiversidade; é um fator gerador de empregos; proporciona recursos, através de fundos para a conservação; gera impostos; melhora o nível científico do país e poderá melhorar o nível de vida das populações locais com a utilização correta dos recursos naturais.

O Brasil conta com algumas experiências desse processo de interação com empresas internacionais interessadas na exploração dos produtos naturais conjuntamente com as comunidades locais. Destaca-se que os primeiros resultados dessas parcerias não têm sido plenamente favoráveis às comunidades envolvidas nesses acordos de bioprospecção, entretanto, depois de alguns anos as comunidades estão despertando para uma nova forma de valorizar seus recursos e cuidar das riquezas que sabemos não são inesgotáveis. Os principais acordos de bioprospecção que envolvem comunidades locais no Brasil são os seguintes:

Aveda/Guarani Kaiowá. A comunidade Guarani Kaiowá, de Dourados-MT, através do Centro de Organização Cultural e Tradicional da Reserva Indígena de Dourados (1994) realizou um acordo de confidencialidade com a Aveda Corporation, empresa de cosméticos de Minnesota, EUA, em relação ao acesso às informações sobre o processamento de uma tintura indígena (azul) extraída do araxixu, planta comum na região.

Aveda/Yawanawá y Katukina. A empresa comprou os direitos de usar a imagem dos indígenas e direitos de compra e venda do urucum, matéria prima para o lápis labial Uruku Lipcolor.

Body Shop/Kayapó. Desde 1991, os Kayapós da comunidade de Aukre, no Pará, vendem óleo de castanha para a empresa de cosméticos da Grã Bretanha que produz e comercializa o Brazil Nut Oil Hair Conditioner. A empresa compra toda a produção da aldeia e paga pelo óleo quase 5 vezes a mais que o preço de mercado. Para a empresa o mais importante é o marketing do “politicamente correto”.

Hoescht/Merck/Uru-Eu-Wau-Wau. Os indígenas de Rondônia extraem do tronco da tikeúba, um líquido viscoso e vermelho que processado e distribuído nas extremidades das flechas induz os feridos a intensa hemorragia, facilitanto, desse modo, a morte de grandes animais. O produto tem mostrado ser um princípio ativo de “efeitos verdadeiramente extraordinários como droga anticoagulante e retardadora dos batimentos cardíacos” (PUTTKAMER, 1986).

Merck/Guajajara. Várias empresas compram e exportam folhas de jaborandi no Maranhão, a maior delas a Merck Co. de Darmstadt, Alemanha que desde os anos 70 extraem da planta, comum no Pará e Maranhão, um alcalóide usado para produção de um colírio contra o glaucoma, a pilocarpina. O Brasil possui o monopólio da exportação de jaborandi. Apesar de legais, as operações da empresa com o patrimônio indígena levaram quase à extinção do jaborandi na região. Comparativamente, ao contrário da empresa, os índios não ganharam nada com isso.

Gonzalo Enríquez é economista, mestre em política científica e tecnológica, pela Unicamp, professor da UFPA e doutorando em gestão do desenvolvimento sustentável/CDS/UNB.


Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/04/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2004
SBPC/Labjor
Brasil