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Pentecostais e política no Brasil

Ricardo Mariano

O campo religioso brasileiro sofreu profundas transformações nas últimas décadas. A consolidação da liberdade religiosa, a pluralização do campo religioso, o enfraquecimento do poder religioso da Igreja Católica e a redemocratização do Brasil contribuíram decisivamente para transformar as relações dos grupos religiosos entre si e com a política partidária e o Estado. A acelerada expansão numérica dos evangélicos constitui fator dos mais relevantes para compreender parte das mudanças ocorridas recentemente nos campos religioso e político brasileiro.

Os evangélicos, segundo o IBGE, eram apenas 2,6% da população brasileira em 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e 15,4% em 2000, ano em que somavam 26.184.941 de adeptos. A expansão evangélica, já elevada nas décadas anteriores, acelerou-se muito no último decênio do século XX. Entre 1991 e 2000, pentecostais e protestantes (os grupos denominacionais que compõem a religião evangélica) cresceram anualmente 8,9% e 5,2%, respectivamente. No período, os pentecostais saltaram de 8.768.929 para 17.617.307 adeptos (ou de 5,6% para 10,4% da população), ao passo que os protestantes históricos passaram de 4.388.310 para 6.939.765 (de 3% para 4,1%). Atualmente, o Brasil abriga mais de 30 milhões de evangélicos, dois terços dos quais pentecostais, o que consolidou de vez o pentecostalismo na posição de segundo maior grupo religioso do país.

Pentecostais e protestantes crescem em estratos sociais com perfis socioeconômicos contrastantes: enquanto a renda e a escolaridade dos primeiros são bem inferiores à média da população, os últimos distribuem-se nas faixas de renda e nos níveis escolares mais elevados. Embora sua composição social não mais se restrinja aos estratos mais pobres, os pentecostais prosseguem crescendo majoritariamente na base da pirâmide social. Seu sucesso proselitista junto às massas pobres resulta, em parte, de seu incansável esforço e empenho para atraí-las, persuadi-las e recrutá-las mediante a oferta sistemática de serviços mágico-religiosos com forte apelo popular, da realização de cultos carregados de alto teor emocional, da propaganda pessoal e eletrônica, difundida diuturnamente, de testemunhos bem-sucedidos de conversão e obtenção de bênçãos. Sua ênfase pastoral e teológica na cura de enfermos, na expulsão e libertação ritual de demônios (tidos como responsáveis pelos infortúnios que afligem fiéis e virtuais adeptos) e na promessa de bênçãos materiais e de milagres aos cristãos obedientes a Deus – ênfase decorrente do propósito de resgatar, reproduzir e disseminar crenças e práticas do cristianismo primitivo – demonstrou ser uma receita evangelística exitosa, dada sua boa adaptação às demandas mágico-religiosas e aos interesses materiais e ideais de parte dos estratos pobres brasileiros e latino-americanos.

As igrejas pentecostais e neopentecostais não crescem, portanto, por serem repositórios passivos de indivíduos carentes, desajustados, em estado de “anomia”, ou coisa que o valha, a despeito da difusão dessa imagem por um sem-número de reportagens e até por velhas teorias sociológicas. Crescem aceleradamente porque trabalham muito e sabem explorar, em seu benefício institucional, os contextos socioeconômico, político, cultural e religioso onde estão inseridas. Crescem porque aproveitam, eficientemente, as oportunidades advindas da ampliação da liberdade e do pluralismo religiosos, da rápida e maciça difusão dos meios de comunicação, da urbanização e da destradicionalização cultural, da abertura política e da redemocratização do país. Crescem porque, ao lado disso e do ativismo militante de parte considerável dos fiéis, sobretudo do sexo feminino, esforçam-se em oferecer respostas mágico-religiosas – às vezes em deliberada continuidade com elementos da religiosidade popular – para fiéis e virtuais adeptos interessados em superar, pela via ou com ajuda religiosa, problemas decorrentes do agravamento, nas últimas décadas, das crises sociais e econômicas, do aumento exponencial da violência, da criminalidade e da insegurança etc.

O crescimento institucional do pentecostalismo brasileiro é muito desigual: três igrejas – Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e Universal do Reino de Deus – concentram 74% dos pentecostais, ou 13 milhões de pessoas (no ano 2000). Isso permite inferir que o êxito eleitoral da Assembléia de Deus e da Igreja Universal resulta, em parte, de seu peso demográfico.

A expansão pentecostal avança, igualmente, pelos campos assistencial, editorial, educacional, midiático e – o que discutiremos a seguir – político partidário.

Salvo pequenas incursões eleitorais da igreja O Brasil Para Cristo no início da década de 1960, os pentecostais se auto-excluíram da vida pública até os anos 80. No período mais repressor da ditadura, os governos militares, privados do apoio católico e, por isso, interessados em angariar novas bases sociais para legitimar sua autoridade, lograram estabelecer alianças com diversos líderes evangélicos (protestantes e pentecostais), em razão de que muitos deles eram dotados de um genuíno e encarniçado anticomunismo, inclinados, em muitos casos, ao clientelismo e, na condição de representantes de uma minoria religiosa discriminada, ávidos por recursos, reconhecimento social e político. De todo modo, esses religiosos permaneceram majoritariamente afastados do jogo político-partidário durante a ditadura. Daí, em grande parte, sua pecha de alienados, ressaltada pelo efeito comparativo derivado da valorização acadêmica do ativismo político de grupos católicos considerados progressistas, como as Comunidades Eclesiais de Base.

Em meados dos anos 1980, porém, numa surpreendente inversão de crenças, de estratégia competitiva e de inserção social, várias igrejas pentecostais trocaram, repentinamente, o lema quietista “crente não se mete em política” pelo jargão corporativo “irmão vota em irmão”, baseado, tal como o mote anterior, não obstante a guinada radical, em interpretações bíblicas. Os expoentes desse ideário defenderam, num tom arrivista e triunfalista, que os evangélicos deveriam deixar de ser “cauda” para se tornar “cabeça”.

Tamanha reviravolta no comportamento político dos pentecostais (que é parcial, já que Congregação Cristã no Brasil e Deus é Amor, duas das maiores igrejas pentecostais do país, permanecem apolíticas) ocorreu num momento crucial da redemocratização do país, isto é, nas vésperas das eleições para a Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988), para a qual foi eleita a famosa “bancada evangélica”, com 32 deputados federais, 18 deles pentecostais, sendo 13 da Assembléia de Deus. Com isso, a representação pentecostal que, na legislatura anterior, tinha apenas dois parlamentares, cresceu incríveis 900%.

Mais surpreendentes que esses números são as razões de seu ingresso concertado na arena política. A principal delas – como estopim de sua mobilização eleitoral e como fator de legitimação de sua participação na política partidária – decorreu da orquestração, pelas cúpulas eclesiásticas, sobretudo pela Assembléia de Deus, de um boato persecutório, que percorreu como um rastilho de pólvora os mais diferentes grupos pentecostais de norte a sul do país, acusando a liderança católica de pretender assegurar e ampliar, legalmente, privilégios institucionais para si na nova Carta Magna e, ao mesmo tempo, restringir, de alguma forma, a liberdade religiosa dos evangélicos. Além disso, a mudança refletiu o surgimento de projetos eclesiásticos de líderes evangélicos, cada vez mais ciosos de seu crescente poder religioso, visando à obtenção da hegemonia religiosa e política no Brasil, e da difusão de um forte triunfalismo teológico, oriundo da teologia da prosperidade e de doutrinas de “batalha espiritual”, que, entre outras coisas, apregoam o direito divino dos verdadeiros cristãos a tomar posse dos postos de comando da nação.

Da Constituinte para cá, a bancada evangélica, inicialmente marcada por acentuado conservadorismo moral e pelo fisiologismo descarado de certos parlamentares (alguns dos quais tiveram os mandatos cassados), dobrou de tamanho, alcançando, hoje, cerca de 60 deputados federais e quatro senadores. Nesse período, ampliaram-se a filiação desses religiosos a partidos de centro-esquerda (atualmente há, por exemplo, cinco deputados federais evangélicos petistas) e o número de parlamentares vinculados a novas igrejas, em especial à Universal, que, ao lado da Assembléia de Deus, assumiu o protagonismo político no campo evangélico.

A participação política dos pentecostais, porém, não se restringe à disputa eleitoral ao legislativo. As eleições majoritárias não escapam de seu raio de ação. Cortejados e assediados por partidos de todos os matizes ideológicos, não só procuram eleger candidatos próprios, como Francisco Rossi, Benedita da Silva, Marcelo Crivella, Anthony e Rosinha Garotinho, como tentam influir nos rumos da política nacional. Em 1989, por exemplo, os pentecostais limitaram-se, no primeiro turno, a condenar o voto nas candidaturas de esquerda à presidência da República. Já no segundo turno, quando restavam apenas Collor e Lula, “colloriram” majoritariamente, não porque confiassem na realização das promessas do caçador de marajás ou as vissem como as melhores, mas sobretudo porque temiam perder sua liberdade religiosa num futuro governo petista/comunista aliado à filial brasileira da Santa Sé. Como se vê, novamente as lideranças pentecostais reatualizaram a velha síndrome persecutória. Desta vez acusavam a Igreja Católica de estar em conluio com dirigentes do Partido dos Trabalhadores para, no caso de vitória do petista, discriminá-los e persegui-los, seja transformando seus templos em supermercados, escolas e creches, seja limitando sua liberdade de culto e religião. Quando se referiam a um eventual governo petista, encadeavam, mesmo diante da queda do Muro de Berlim e do esfacelamento do socialismo soviético, a anacrônica terminologia anticomunista da Guerra Fria. Falavam de medo, temor, risco, perigo, perseguição, sofrimento, prisão, tortura, paredón, fogueiras, mortes. Discurso religioso e eleitoral que se provou, eleitoralmente, bastante eficaz.

Em 1994, o candidato petista foi, disparado, o mais rejeitado por esse grupo religioso, que tendeu a apoiar o tucano Fernando Henrique. Em 1998, o temor pentecostal da eleição de um representante de centro-esquerda à presidência da República arrefeceu parcialmente.

Em 2002, com a derrota de Garotinho no primeiro turno, líderes da Universal do Reino de Deus (e de outras igrejas pentecostais) resolveram apoiar a candidatura de Lula no segundo turno das eleições presidenciais. Surpresa geral, porque a Universal figurava, desde 1989, como a maior opositora pentecostal ao PT, que, em 2002, ao articular um candidato a vice-presidente do Partido Liberal, conseguiu fisgar, de quebra, os deputados liberais da Universal, comandados pelo líder do PL carioca, bispo Carlos Rodrigues.

O predomínio das políticas neoliberais nos anos 90, a duradoura crise econômica, a letargia estatal, a ineficiência do Estado e seu secular descaso com a área social, favoreceram, decerto, a participação de grupos religiosos, entre os quais sobressaem católicos e evangélicos, nas questões sociais e, conseqüentemente, no debate e no espaço públicos. Ao lado disso, nas duas últimas décadas, deputados e senadores pentecostais dedicaram-se à defesa intransigente de seus interesses corporativos e de uma moralidade cristã estrita. O que se comprova com sua intervenção nas votações, nas políticas públicas e nos debates legislativos relacionados às propostas de descriminalização do aborto e do consumo de drogas, à união civil de homossexuais, aos direitos humanos e sexuais, às tecnologias reprodutivas, à clonagem humana, ao uso de células embrionárias em pesquisas científicas, ao ensino religioso nas escolas públicas, à reforma política. Em 2003, criaram a Frente Parlamentar Evangélica para arregimentar e articular melhor sua ação coletiva no Congresso Nacional, onde, no mesmo ano e como indicador de sua força política, conseguiram, mediante intensa mobilização religiosa e pressão política, alterar o novo Código Civil.

Como se pôde observar, os pentecostais tornaram-se, após a redemocratização, um player político importante e, com isso, atores co-responsáveis, portanto, pelos desdobramentos futuros de nossa democracia.

Ricardo Mariano é doutor em sociologia pela USP, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS.

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Atualizado em 10/05/2005

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