As comemorações dos descobrimentos na mídia
   
 
Outros Quinhentos: Carlos Vogt
Projeto Resgate reencontra a História

500 anos impulsiona memória arquitetônica

Cultura como patrimônio histórico

Ritual dos 500 anos também é objeto de pesquisa

Objetos contam a história do Brasil
Outros 500 quer construir um novo país

Índios ainda lutam por direitos básicos

Pataxós lutam pelo Monte Pascoal
Interesse por mapas históricos cresceu com os 500 anos

Nau Capitânia, o símbolo que não navegou

Piada de brasileiro:
Paulo Miceli

A História e os interesses da nação:
Ulisses Capozoli

Dois projetos audiovisuais, duas formas de refletir:
Andrea Molfetta

As comemorações na mídia:
Eneida Leal Cunha

Na mídia portuguesa, alguma crítica, muito ufanismo:
Igor Machado
O Brasil em português de Portugal:
Jesiel de Oliveira Filho

Histórias & Personagens:
Zélio Alves Pinto

Poema
 

por Eneida Leal Cunha

Entre janeiro de 98 e dezembro de 2000, o Projeto Reconfigurações de Imaginários e Reconstruções de Identidades fez o acompanhamento sistemático das repercussões das comemorações dos descobrimentos na imprensa brasileira e portuguesa, a partir de veículos pré-selecionados [1]. Foram colecionadas as matérias jornalísticas que abordassem não apenas os eventos comemorativos e seus desdobramentos, mas a incidência, nos veículos midiáticos, de um elenco de questões articuladas à problemática contemporânea dos Estados Nação e da "identidade nacional". Especialmente, interessavam ao projeto as relações pretéritas e presentes entre Brasil e Portugal; as tensões político-culturais entre esses Estados Nacionais e a ordem transnacional contemporânea; as tensões internas atuais entre as pedagógicas narrativas da nacionalidade (os discursos da unidade e da homogeneidade nacional) e as emergentes interpelações performáticas de segmentos ou grupos que reivindicam a 'diferença cultural', o direito à voz e à auto-representação; os delineamentos e os impasses de uma comunidade política e cultural "Lusófona".

O mapeamento desses materiais resultou num vasto acervo documental, capaz de informar tanto ao atual projeto de investigação quanto a pesquisadores e projetos futuros sobre o "estado da arte" dos debates sobre a questão da nacionalidade, no Brasil e em Portugal, bem como sobre a emergência crescente de discursos e perspectivas político-culturais que se confrontam com as narrativas instituídas da nacionalidade.

Em relação ao Brasil, o acompanhamento das repercussões das comemorações dos 500 anos e do debate atual sobre a nacionalidade trouxeram à tona uma peculiar versão contemporânea daquele "plebiscito diário" (considerado por Renan, dois séculos atrás, indispensável à constituição de uma Nação). Por um lado, expôs-se o vigor da narrativa nacional pedagogicamente construída pelo Estado Nação moderno e reiterada pelas "comemorações oficiais"- a qual, no Brasil, pode ser sinteticamente resumida em dois eixos: a reafirmação da harmoniosa diversidade cultural do país, ou da sempre bem hierarquizada tríade racial que compõe a nacionalidade, e a reiteração da juventude do país aos 500 anos, que autoriza a permanente promessa de superação no futuro, na maturidade ou no porvir, das deficiências, desigualdades, separações e discriminações que de fato e historicamente separam o que a narrativa da nacionalidade deve reunir, produzindo aquele efeito de unidade necessário: "o povo brasileiro".

Por outro lado, no âmbito da mídia impressa, pôde-se flagrar também a repercussão dos discursos e eventos que, paradoxalmente estimulados pelas comemorações, foram produzidos pelos que permanecem nos espaços limiares da sociedade nacional, os quais interpelam política e culturalmente a Nação enquanto comunidade ou imaginário instituído e na sua efetividade política e social. Os segmentos que isolada ou articuladamente, a exemplo do movimento "Brasil: Outros 500", manifestaram-se no contexto comemorativo propugnando pela diferença étnica e reivindicando direitos de cidadania, especialmente os afro-descendentes brasileiros e grupos indígenas, rasuram a unidade ou a homogeneidade construída, além de pleitearem uma outra versão, menos unívoca, da história brasileira e um outro pacto, menos excludente, de convivência social, favorecendo análises que problematizam sistematicamente a construção moderna da nacionalidade.

A cobertura jornalística colecionada expõe ainda, numa outra vertente de análise, os modos diferenciados como as comemorações repercutiram nas regiões observadas. No Rio de Janeiro e na Bahia parte significativa das matérias publicadas atesta como, nas economias regionais que têm o turismo como horizonte de recuperação ou desenvolvimento, a campanha comemorativa dos 500 anos foi transformada em eficaz estratégia para a captação de recursos federais e para o incremento do turismo interno - como bem explicitam os respectivos slogans: "Rio, o coração do Brasil bate aqui" e "Bahia, o Brasil nasceu aqui". Essa cobertura minuciosa e interessada nas comemorações oficiais contrasta com o que se pode observar nos registros da passagem dos 500 na Folha de S. Paulo. Menos eufórico e freqüentemente crítico ao aspecto festivo das comemorações, o veículo da imprensa paulista desenvolveu com certa sistematicidade duas linhas de materiais jornalísticos: de um lado, a cobertura e amplificação do debate sobre a questão da nacionalidade cultural; de outro, a focalização de impasses sociais, políticos e culturais da nação instituída, a exemplo dos efeitos perversos das discriminações dos negros ou negro-mestiços e dos registros freqüentes da atual situação dos povos indígenas. Entretanto, é fértil observar como nesse espaço jornalístico - e em outros análogos -, expôs-se com freqüência a postura "ilustrada" dominante na intelectualidade brasileira, auto-investida na tarefa de atualizar e, pedagogicamente, distribuir diagnósticos e prognósticos atuais para a nacionalidade.

Com bem menos sistematicidade, o Projeto Reconfigurações registrou e avaliou também a campanha comemorativa dos 500 anos empreendida pela mídia televisiva, notadamente pela Rede Globo de Televisão, que funcionou, entre 1999 e 2000, como uma espécie de "braço secular" da Comissão Nacional para as Comemorações dos V Séculos do Descobrimento do Brasil, criada pelo Governo Federal em 1996. Ao eleger como mote da sua campanha comemorativa (Brasil 500 anos), a Educação, a rede nacional deixou patente as intensas articulações entre sistemas de comunicação, sistema de escolarização formal e Estado moderno, que são imprescindíveis à distribuição social da nacionalidade. Levadas à televisão, ou submetidas à lógica própria desse eficaz veículo de comunicação de massas, por um lado, as imagens oficiais da brasilidade muitas vezes foram compelidas a uma complexa negociação com a diversidade das expectativas e das modulações do pertencimento e das auto-imagens grupais e regionais, resultando em algumas sintomáticas flexibilizações de estereótipos firmados. Mas, por outro lado, inevitavelmente, estiveram subordinadas a injunções mercadológicas intensas, especialmente as da indústria cultural.

Na campanha televisiva ainda pôde-se constatar, como fruto das comemorações, mas em íntima conexão com contingências político-econômicas contemporâneas, a "presentificação" de Portugal, até então restrito, para amplos setores da recepção brasileira, a uma existência pretérita e fantasmática. Artistas, personalidades e cenários portugueses entraram nas telas - e conseqüentemente no cotidiano doméstico brasileiro - com uma freqüência antes impensável, fazendo com que a ascendência portuguesa ou a familiaridade lusa funcionassem com uma espécie de contraponto providencial, no contexto do ambíguo racismo brasileiro, para a proliferação de imagens que expuseram a mestiçagem ou a afro-descendência, impostas principalmente pelos valores musicais eleitos como emblemáticos da nacionalidade. Finalmente, a avaliação das comemorações na mídia televisiva - cuja dimensão decorre, entre outros itens, da extrema importância da comunicação audiovisual num país com as características do Brasil -, faz ressaltar o relevo do binômio "consumidores e cidadãos", ainda que precário, instável e desequilibrado entre nós, na produção contemporânea da nacionalidade.

Inicialmente apresentando-se como um tópico próprio às agendas institucionais e de governo, as comemorações dos "V Séculos do Descobrimento do Brasil" ou dos "500 anos do Brasil" podem ser lidas na cobertura midiática como a arena de uma intensa "batalha simbólica", que, de forma paradoxal, tornou ostensivas as tensões, separações, desequilíbrios, contradições, fissuras e conflitos de interesses que, por sua própria razão de existência - a celebração da nacionalidade -,propunha-se a, de alguma forma, neutralizar.

Notas:

[1] No Brasil, Veja, Isto É, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil (RJ) e, a partir de 1999, A Tarde (BA); em Portugal, o jornal diário Público e o periódico quinzenal Jornal de Letras e Artes.

Eneida Leal Cunha é professora do departamento de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia e é pesquisadora do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI)

   
           
     

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Atualizado em 10/04/2001

   
     

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