Panorama das Línguas Indígenas da Amazônia
   
 
Poema

Da pangéia à biologia molecular
Adalberto Luís Val

A biodiversidade e o novo milênio
Vera de Almeida e Val
Contrastes e confrontos
Ulisses Capozoli
As línguas indígenas na Amazônia
Panorama das línguas indígenas
Ayron Rodrigues
Lucy Seki e o indigenismo
As várias faces da Amazônia
Louis Forline
Euclides da Cunha
Isabel Guillen
Yanomami
Saúde dos Índios
Amazônia e o clima mundial
Manejo florestal
Niro Higuchi
Impactos ambientais
Cooperação internacional
Energia e desenvolvimento
Ozorio Fonseca
Interesse internacional
Programas científicos e sociais
Internacionalização à vista?
Indústria de off shore na selva
Marilene Corrêa da Silva
Peixes ornamentais

Produtos da Biodiversidade
Lauro Barata
Missão de pesquisas folclóricas

Radiodifusão para indígenas
Mamirauá
Vídeo nas aldeias
A música dos Urubu-Kaapor
 

Sobre os Conceitos de Amazônia e de Línguas Amazônicas

O critério básico para definir uma área geográfica como a Amazônia é certamente a bacia hidrográfica do rio Amazonas: Amazônia será toda a área de terras banhadas pelo rio Amazonas e por seus afluente sub-afluentes. Esta definição simples, de pura geografia física, pode satisfazer as principais necessidades de identificar fenômenos como sendo de ocorrência amazônica, mas deixa em aberto vários problemas de delimitação. Por exemplo, os limites entre as terras da Bacia Amazônica as da Bacia do Orinoco, ou entre as terras da primeira e as da bacia do Paraguai-Paraná; ou então, em que medida as terras banhadas pelo rio Tocantins e seus afluentes podem ser consideradas amazônicas? Certamente os conceitos de Amazônia envolvem também outros fatores naturais, como os climáticos e os de distribuição de flora e fauna. A estes critérios físicos e biológicos se sobrepõem freqüentemente critérios geopolíticos internacionais ou nacionais, que tendem a alargar ou a restringir a área definida como amazônica. Exemplos de critério geopolítico internacional é o Pacto Amazônico, de cooperação econômica e cultural; exemplo de critério geopolítico nacional é, no Brasil, para fins de incentivos ao desenvolvimento, a definição da Amazônia Legal. Vou ater-me aqui, quanto possível, ao critério hidrográfico.

Embora a maioria das línguas indígenas faladas hoje nas áreas banhadas pelo sistema fluvial do rio Amazonas possam ser tranqüilamente chamadas de amazônicas, há problemas para o conceito de línguas amazônicas dentro e fora dessas áreas. Há línguas que representam intrusões mais ou menos recentes na Amazônia e há fora línguas desta região que se filiam geneticamente a grupos lingüísticos tipicamente amazônicos. Exemplos do primeiro caso são as línguas da família Jê faladas no rio Xingu, como o Suyá, o Kayapó ou o Paraná (também conhecido como Kren-akrôre). O segundo caso é exemplificado, no sul, pelos dialetos Guaraní (família Tupí-Guaraní) da bacia do Paraguai-Paraná, e, no norte, pelo Caribe Insular e seu descendente atual, o Garífuna, da família Aruák, no Mar Caribe e em Honduras e Belize.

Do ponto de vista do lingüista, a expressão línguas amazônicas poderia referir-se, ainda, a características tipológicas: há um ou mais de um tipo lingüístico amazônico? Ou, há fenômenos lingüísticos típicos da Amazônia? Distinguem-se sistematicamente as línguas amazônicas das línguas andinas ou das chaquenhas ou das do Brasil oriental?

As Famílias Lingüísticas da Amazônia

Vou tomar como referência básica o conceito genético de família lingüística associado à definição hidrográfica de Amazônia. No estudo classificatório das línguas indígenas da América do Sul o termo família (às vezes, em autores de língua inglesa, Stock e, em especialistas alemães, Gruppe) já tem uma tradição de um século (Adam 1890, 1893,1896,1897,1899; Brinton 1891; Steinen 1892; Koch-Grünberg 1903; Chamberlain 1907,1910,1913; Rivet 1911,1912,1916,1924; Créqui-Montfort e Rivet 1913, 1921/23; etc.). Embora os critérios para identificar as famílias e para descobrir suas relações internas tenham progredido pari passu com o aumento do conhecimento efetivo das línguas que as compõem (aliás, um progresso demasiadamente lento nos primeiros três quartos deste século), o quadro geral da classificação genética (ou, em muitos casos, intencionalmente genética) das línguas sul-americanas pouco mudou nos últimos 50 anos. Ainda que tenham surgido algumas propostas radicais de redução do número de famílias lingüísticas pela associação de muitas destas em agrupamentos mais abrangentes, a maioria dessas propostas, por falta de evidências em seu favor, ainda não passam de meras hipóteses especulativas. Isto vale tanto para as associações sugeridas a Mauricio Swadesh, há 40 anos, por suas comparações léxico-estatísticas (Swadesh 1958), como para as igualmente antigas, porém reapresentadas mais recentemente por Joseph Greenberg, a partir do que este chama de "método de comparação multilateral" (Greenberg 1960, 1987). As observações críticas que há 30 anos pude fazer a umas e outras destas propostas (Rodrigues 1966, 1974) continuam válidas e não precisam ser retomadas aqui, sobretudo depois que a representação de Greenberg provocou grande número de críticas dos dois lados do Atlântico.

Com respeito às famílias lingüísticas presentes na Amazônia, o progresso de nosso conhecimento, sobretudo neste último quarto de século, tem consistido principalmente, por uma parte, na multiplicação e no aprofundamento dos estudos descritivos de línguas das mais variadas famílias, inclusive de línguas "isoladas", isto é, línguas que, segundo o estado atual do conhecimento, são membros únicos de suas famílias; e, por outra parte, na consolidação do reconhecimento de algumas famílias, pela aplicação a elas do método histórico-comparativo e pela reconstrução de propriedades das respectivas proto-línguas, na medida em que a documentação, análise e descrição das línguas atuais o tem permitido.

O panorama lingüístico da Amazônia, se caracteriza, hoje, pelo predomínio de três famílias lingüísticas amplamente distribuídas no espaço geográfico: a Aruák, a Karíb e a Tupí-Guaraní, em contraste com o grande número de famílias menores, que em parte se justapõem às maiores e em parte se intercalam no meio delas. A família Aruák, que, com um certo grau de confusão alguns vêm chamando de Maipúre, está fortemente representada tanto ao sul como ao norte do rio Amazonas e em ambos os extremos ultrapassa os limites da Amazônia. O maior número de suas línguas e também dos subgrupos em que estas podem ser ordenadas se encontra em plena Amazônia, predominantemente do centro para o oeste desta região. Duas línguas, entretanto, situaram-se no extremo leste: o já extinto Aruã, na ilha de Marajó, e o Palikúr, no Amapá. As línguas que se acham na bacia do rio Paraguai, o Teréna e o Guaná, fazem parte do subgrupo meridional, presente também na Amazônia boliviana, com o Mojo e o Bauré, no alto Mamoré. Ao norte, um subgrupo, o chamado de "línguas ta", chegou a estender-se pela bacia do rio Orinoco e pela costa e ilhas do Mar Caribe. Um terceiro subgrupo se encontra nos afluentes ocidentais do Orinoco, especialmente no Guaviare e no Vichada (Piapoko) e no Meta (Achagua). Os demais subgrupos se situam inteiramente dentro da Amazônia. A família Aruák é, portanto, essencialmente amazônica; pelo número de línguas que tem é a maior família lingüística desta região.

Essencialmente amazônica em sua distribuição é também a família Karíb, igualmente presente tanto no norte como ao sul do rio Amazonas, porém, em contraste com a Aruák, predominantemente do centro para o leste. Uma língua, entretanto, o Karihona (Carijona), se situa bem a oeste, entre o alto Caquetá e o alto Vaupés. O maior número de suas línguas se encontra ao norte, onde também ultrapassa os limites da Amazônia e alcança a costa do mar Caribe. Ao sul do Amazonas ela se limita ao vale do rio Xingu, onde se podem distinguir dois ou trás sub-grupos. Um membro desta família, o Palmela, que no fim do século passado era falado no rio Guaporé, um dos formadores do Madeira, na fronteira Brasil/Bolívia, representava uma migração muito recente de uma língua norte-amazônica.

Em contraste com Aruák e Karíb, a família Tupí-Guaraní é essencialmente sul-amazônica. Hoje há pelo menos quatro línguas desta família ao norte do rio Amazonas: além da Língua Geral Amazônica, aí introduzida nos afluentes setentrionais do grande rio pelos mestiços de portugueses e índios a partir do século XVII, há o Wayampí no Amapá e na Guiana Francesa e nesta também o Emérillon, e ainda, a oeste destes, o recentemente descoberto Yo'é, possivelmente o mesmo que em documentos dos séculos XVIII e XIX foi referido com o nome de Apama, no rio Paru. Como está demonstrado para o Waiampí (Gallois 1980, Grenand 1982), também os outros dois devem ter atravessado o rio Amazonas nos séculos XVI e XVII, havendo partido do baixo Xingu, e subido os rios Jari e Paru para escapar à perseguição portuguesa.

Ao sul do rio Amazonas a família Tupí-Guaraní tem suas línguas distribuídas por todos os grandes afluentes, a partir do Madeira até o Tocantins. A localização destas línguas é tipicamente nos altos cursos, sobretudo nos formadores dos afluentes meridionais do Amazonas, desde o Mamoré mais a oeste até o Xingu e o Araguaia e Tocantins a leste. Entre o Xingu e o Tocantins, entretanto, há também um espaço Tupí-Guaraní mais setentrional, que pelo Xingu abaixo se aproxima do rio Amazonas e que, do baixo Tocantins se estende para leste até o Gurupí e mesmo o Pindaré, no Maranhão. As línguas Waiampí, Emérillon e Yo' é (Jo' é) procedem historicamente desse complexo de línguas do baixo Xingu. Assim, as línguas da família Tupí-Guaraní se caracterizam, na Amazônia, por uma distribuição que, ao menos hoje, atravessa de oeste a leste o centro do continente, pelos altos cursos dos afluentes meridionais. Só dois subgrupos desta família se encontravam, já no século XVI, fora da Amazônia: o complexo dialetal Guaraní, estabelecido na bacia dos rios Paraguai e Paraná, e o complexo dialetal Tupinambá, que ocupava o litoral atlântico desde o sueste do Brasil até a foz do Tocantins.

Entretanto, ainda na Amazônia, duas outras línguas tupís-guaranís foram encontradas bem no vale do rio Amazonas: o Tupinambarána e o Kokáma/Omágua. Embora não tenhamos nenhum documento da língua dos rios Tupinambarána, parece certo que o próprio Tupinambá da costa atlântica e mais provavelmente da costa de Pernambuco, levado ainda no século XVI para a Ilha de Tupinambarána logo abaixo de Manaus, por uma maciça migração de índios Tupinambá que fugiam do terror que passaram a representar os portugueses (Métraux 1927:22 - 24). Já a situação da língua Kokáma/Omágua é mais problemática. Os Omágua são um dos grandes povos encontrados no curso do Amazonas pelos primeiros navegantes europeus desse rio, nos séculos XVI e XVII, quando se estendiam desde a atual fronteira do Peru com o Brasil até abaixo da foz do Jutaí (Porro 1993:13). A língua por eles falada só foi documentada quando foram missionados nos séculos XVII e XVIII por jesuítas espanhóis, e os documentos que se preservaram revelam que essa língua das missões é essencialmente a mesma que a dos Kokáma, ainda hoje com falantes no Solimões e Marañón. Ela é, entretanto, inequivocamente o produto de um cruzamento entre uma língua como o Tupinambá e outra língua até agora não identificada, talvez da família Aruák, mas seguramente não tupí-guaraní (Rodrigues 1984/85:43-44; Cabral 1995), um cruzamento que só pode ter-se dado como conseqüência da migração de um povo Tupí-Guaraní, subindo o Amazonas da mesma forma como o fizeram os Tupinambarána e aqueles Tupinambá que chegaram a Iquitos e a Chachapoyas no século XVI (Porro 1993:32;cf. "Carta de Diogo Nunes a D. João III de Portugal", apud Porro 1993: 33 - 35; v. tb. Grenand 1982: 148).

A oeste, na bacia do Madeira, estão os Guaráyo (ou Guarayú), o Pauserna (ou Guarasú) e o Sirionó nos formadores do Mamoré e no Guaporé; mais a leste, ainda na bacia do Madeira, estão hoje os falantes da língua Kawahíwa, certamente emigrados no século passado dos formadores do Tapajós.

O único grande complexo genético de famílias lingüísticas amazônicas claramente estabelecido é o tronco Tupí (v. Rodrigues 1995), que compreende a família Tupí-Guaraní e mais nove outras famílias. Em contraste com a amplíssima distribuição da família Tupí-Guaraní, as outras nove ocupam áreas bastante limitadas. Destas, cinco - Arikém, Mondé, Ramarána, Tuparí e Puruborá - se situam no atual Estado de Rondônia, isto é, imediatamente a leste do alto Madeira e do Guaporé. Entre o baixo Madeira e o baixo Tapajós está a família Mawé; estendendo-se do médio Madeira ao Tapajós e ao Iriri, afluente esquerdo do Xingu, fica a família Mundurukú; antigamente no baixo e médio, agora no alto Xingu, a família Jurúna; e, ainda no alto Xingu, a família Awetí. Puruborá, Mawé e Awetí são famílias de uma só língua cada uma.

As demais famílias lingüísticas da Amazônia distribuem-se umas ao norte e outras ao sul do grande rio. Com exceção de duas, a família Yanomámi (antigamente chamada Xiriána), ao norte, no limite montanhoso que separa a bacia amazônica da bacia do Orinoco entre o Brasil e a Venezuela, e a família Nambikwára, ao sul, nos formadores ocidentais do Tapajós e nos orientais do Madeira, ambas ocupando posições relativamente centrais na orientação leste-oeste, e da língua isolada Trumái, no alto Xingu, todas as outras famílias amazônicas têm uma localização de central para ocidental. O Trumái é a única língua na Amazônia oriental que não pertence a nenhuma das três grandes famílias amazônicas, Aruák, Karíb e Tupí-Guaraní, nem à invasora família Jê.

No alto Juruena acham-se o Irántxe (Mynky) e o Rikbaktsá, geograficamente próximos a línguas das famílias Tupí-Guaraní, Aruák e Nambikwára. No médio Madeira assinalamos a família Múra, ao que tudo indica hoje reduzida a uma só língua, o Pirahã. No alto Madeira e seus formadores Mamoré e Guaporé, há um grande número de pequenas famílias e línguas isoladas, como Txapakúra (Chapacura), Jabutí, Kanoê (Kapixaná), Aikaná (Warí, Masaká), Koaiá (Koazá), Itonáma, Kanichána, Móvima, Mosetén, Léko, Kayuváva, Yurakaré, Chiquíto (Chiquitano), Tuyoneri (Harakmbet). Entre o Madeira e o Purus, onde no passado prevalecia a família Múra, não há hoje nenhuma língua indígena mais. Ao longo do curso do Solimões/Marañón, da boca do Purus até acima do Javari, na fronteira da Colômbia com o Peru, estende-se a língua Tukúna (Tikúna), que constitui uma família por si. No amplo espaço que vai do Purus, passando pelo Coari, Tefé e Juruá, até o Jutaí, entremeiam-se as línguas da família Katukína e Arawá, e algumas da família Aruák, a maioria delas hoje restritas aos médios e altos cursos desses rios. Do Jutaí até o Ucayali estende-se a família Pano, a qual, pelo sul das famílias Katukína e Arawá, avança para leste e tem um sub-grupo de línguas no rio Madre de Dios e no alto Madeira. Ao sul destas últimas se situa a família Takana, geneticamente cognata da família Páno.

Ao norte do rio Amazonas, afora a família Yanomámi, que se situa, em parte, em afluentes dos rios Branco e Negro, vamos encontrar outras famílias somente a oeste do rio Negro. A primeira delas é a família Makú (ou Puinave ou Makú-Puinave), entre o Japurá e o Uaupés, mas com uma língua no Inírida, na bacia do Orinoco. A seguir a família Tukáno, que tem seu ramo oriental principalmente nos rios Uaupés e Tiquié e o ramo ocidental sobretudo no Putumayo. Subindo o Putumayo, o Caquetá e o Napo, há um grande número de famílias menores, como Witóto, Bóra, Miránha, Sabela, Taushiro, Yagua, Záparo, Urarina, Munichi, Kandoshi, Shuar (Jívaro).

Esta longa enumeração compreendeu 52 famílias lingüísticas. O número de línguas de cada família varia de uma a cerca de 40. Ao todo a quantidade de línguas amazônicas faladas atualmente é de cerca de 240. Esse número é apenas aproximado devido a alguns fatores variáveis: os limites da Amazônia segundo diferentes critérios, a distinção entre línguas e dialetos, as notícias sobre línguas recém-descobertas e, em casos extremos, as informações sobre se uma língua ainda tem falantes vivos...

   
           
     

Esta reportagem tem
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,
16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27
documentos
Bibliografia | Créditos

   
     
   
     

 

   
     

Atualizado em 10/11/2000

   
     

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2000
SBPC/Labjor
Brasil