As Várias Faces da Amazônia: Migrações, Deslocamentos e Mobilidade Social na Região Norte
   
 
Poema

Da pangéia à biologia molecular
Adalberto Luís Val

A biodiversidade e o novo milênio
Vera de Almeida e Val
Contrastes e confrontos
Ulisses Capozoli
As línguas indígenas na Amazônia
Panorama das línguas indígenas
Ayron Rodrigues
Lucy Seki e o indigenismo
As várias faces da Amazônia
Louis Forline
Euclides da Cunha
Isabel Guillen
Yanomami
Saúde dos Índios
Amazônia e o clima mundial
Manejo florestal
Niro Higuchi
Impactos ambientais
Cooperação internacional
Energia e desenvolvimento
Ozorio Fonseca
Interesse internacional
Programas científicos e sociais
Internacionalização à vista?
Indústria de off shore na selva
Marilene Corrêa da Silva
Peixes ornamentais

Produtos da Biodiversidade
Lauro Barata
Missão de pesquisas folclóricas

Radiodifusão para indígenas
Mamirauá
Vídeo nas aldeias
A música dos Urubu-Kaapor
 

A migração na Amazônia brasileira tem atraído a atenção de vários estudiosos. Os eventos, ocorridos nesta região durante os últimos trinta anos, também geraram um grande interesse da sociedade civil e do governo federal, sem mencionar os vários atores internacionais que debatem seu destino. Soberania nacional, meio-ambiente, direitos indígenas e outras questões criaram um palco de discussões polêmicas que não têm previsão de serem resolvidas de imediato ou tão facilmente. Embora evidente, mas não tão comentada, a questão da mobilidade social e a ocupação de espaço nesta vasta região têm tido prioridade. Não se pode ignorar os vários estudos que já abordaram esta problemática, porém, é interessante frisar que as questões sociais na região conquistaram um maior enfoque, espaço esse normalmente reservado às temáticas de biodiversidade e meio ambiente.

Sabe-se que a migração na Amazônia, em si, não se refere a um fenômeno social recente. A presença de populações humanas na região, em tempos pré-históricos, é mais antiga do que se especulava. Os estudos de Anna Roosevelt no sítio arqueológico de Monte Alegre (PA) revelam que o homem habita a região Amazônica a pelos menos 11.500 anos. Indiretamente, suas hipóteses são apoiadas pelas pesquisas conduzidas por Neide Guidon em Pedra Furada (PI) quem, por sua vez, acredita que o homem estivesse presente no Brasil há aproximadamente 30.000 anos. Este último estudo não é unanimamente aceito em todos os círculos acadêmicos, pois existem dúvidas se o material arqueológico encontrado nesse sítio reflete atividades humanas ou fenômenos naturais.

Apesar desta suposta antigüidade da presença humana na Amazônia, não existe uma variabilidade genética muito ampla entre os indígenas que a ocupam. Dois fatores contribuíram para esta situação: primeiramente, a migração da Asia, via estreito de Bering, criou um estrangulamento populacional entre os grupos indígenas e, mais tarde, a vinda do europeu às Américas causou uma grande queda demográfica devido, principalemente, às doenças introduzidas. Esta redução foi significativa, de tal forma que, de cada 20 indivíduos existentes naquela época, encontra-se, hoje, somente um sobrevivente. Deste modo, a maioria dos grupos estudados exibe apenas quatro haplogrupos. Pequenas exceções ocorrem entre outros, a exemplo dos Cinta Larga de Rondônia, que exibem características semelhantes à composição genética de alguns índios norte-americanos, fato este que ainda demanda explanação (Santos, 2000).

Quanto à procedência das populações indígenas, Roosevelt defende a hipótese de que seus primeiros habitantes teriam descido o litoral nordeste da América do Sul, acessando a região via a foz do rio Amazonas. Esta posição se opõe a tese de Betty Meggers que sustenta ser a maioria das populações amazônicas originária dos Andes. Portanto, teriam descido o rio Amazonas para, consequentemente, ocupar a região norte.

Diante desses achados as pesquisas realizadas por Walter Neves colocam em xeque a questão da procedência dos primeiros habitantes humanos no Brasil e, por extensão, na Amazônia. Neves salienta que antes da chegada dos falados indígenas haviam populações negróides, muito similares àquelas que ocuparam a Austrália. Suas pesquisas apoiam-se em estudos de ossadas e não de material genético. Caso consiga extrair informações genéticas deste material ósseo, haveriam melhores condições para identificar estas populações. No entanto, estes resultados baseiam-se em características morfológicas, ou seja, medidas antropométricas que estabelecem parâmetros gerais para identificação de populações humanas.

Antes da chegada dos europeus surge um outro fato curioso. As migrações internas na Amazônia pré-histórica eram frequentes e revelam um outro quadro interessante. A diversidade lingüística mostra que há uma amplitude grande de grupos étnicos que, por sua vez, percorreram uma grande área geográfica, promovendo assim um intercâmbio cultural significante entre várias etnias. Ao contrário do que se pensava, o isolamento em si nunca existiu e as trocas e permutas entre os diversos grupos facilitaram a difusão de muitas características culturais de uma área para outra. Acredita-se, por exemplo, que a matriz biogenética da mandioca esteja situada no nordeste brasileiro, mas sabe-se que a ocorrência deste plantio é encontrado em quase todo o território nacional e países vizinhos, principalmente na Amazônia.

As línguas indígenas também exibem características interessantes no que se diz a respeito às influências migratórias. O famoso "anel Tupi", por assim dizer, corresponde a uma área geográfica extensa e delineia o percurso e ocupação de várias etnias deste tronco lingüístico. Várias teses discutiram a vocação guerreira e migratória dos Tupi, sendo que a mais discutida até hoje é a da falada Terra-Sem-Mal, que motivou muitos grupos a procurarem um espaço mitológico idealizado em busca de uma salvação. Não se sabe certamente se esta procura foi ocasionada por influência do contato com o homem branco ou se os grupos Tupi já praticavam este tipo de migração. Porém, é notável que, até no presente século, vários etnólogos, como Curt Nimuendajú, presenciaram a busca da Terra-Sem-Mal entre algumas comunidades.

Os primeiros europeus que ocuparam a região norte, vieram de Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Na disputa pelo território predominaram os portugueses que, como os demais, procuravam estabelecer colônias em terras distantes. Os indígenas que não sucumbiram à morte foram envolvidos por este processo de colonização. A queda demográfica, evidentemente, criaria uma outra situação onde o espaço amazônico seria ocupado por europeus e seus descendentes e, posteriormente, por escravos advindos do continente africano. A miscigenação subsequente criou um outro cenário e contribuiu para a formação do caboclo amazônico. De modo geral, esta última categoria trata-se de um índio destribalizado, mas abraça, também, características européias e, em menor escala, africanas, tanto do lado biológico como do lado cultural.

Para o indígena que sobreviveu sobrou-lhe duas opções: subordinar-se à colonização e, consequentemente, ser absorvido pelo processo de "caboclização", ou fugir para áreas mais distantes, fora do alcance da sociedade colonial. Até os dias de hoje, existem cerca de 50 a 60 grupos indígenas com pouco contato com a sociedade envolvente. Muitos desses grupos "isolados", de fato, são resquícios de grupos que formavam um conjunto maior com outros grupos indígenas na era pré-colombiana mas são freqüentemente caracterizados, erroneamente, pela FUNAI como representantes de uma vida que se vivia antes da chegada dos europeus. Entretanto, o cerco está fechando e o avanço da fronteira amazônica seguramente atingirá estes grupos.

Alguns anos após o Brasil estabelecer sua independência de Portugal, em 1822, estourou um conflito entre duas facções antagônicas na Amazônia. Ou seja, entre a recém-formada elite que surgiu após a independência, e a classe servil, os cabanos. Os cabanos eram compostos de caboclos, ex-escravos e alguns índios que, unidos, se rebelaram contra a classe dominadora. Este conflito, popularmente denominado Cabanagem, durou aproximadamente cinco anos (1835 a 1840), e foi reprimido pela elite local, ajudada por reforços provenientes do sul do país. As conseqüências deste conflito, porém, não foram poucas. Além das inúmeras mortes ocasionadas, a revolta gerou uma dispersão de diversos grupos amazônicos, não somente indígenas, como, também, outros segmentos da sociedade. Após a Cabanagem, esta sociedade se reorganizou com o advento da era da borracha.

Além de colocar a Amazônia no âmbito internacional, o boom da borracha daria uma outra feição à região norte. Desde 1844, nordestinos, principalmente do Ceará, vieram ocupar áreas da Amazônia, formando a primeira leva dos chamados "soldados" da borracha. Mais tarde, em 1877, uma outra seca no Nordeste impulsionou mais um movimento de pessoas rumo aos seringais. A época da borracha foi tido como um período "dourado" para a Amazônia e criou-se, assim, uma elite que estabeleceu um sistema de aviamento e, a seu modo, marcaria as relações sócio-econômicas na região. Este empreendimento sofreu uma queda brusca a partir de 1910. Em 1876, o inglês Henry Wickham contrabandiara sementes da seringueira Hevea brasiliensis para Kew Gardens na Inglaterra. No ano seguinte, os ingleses levariam mudas desta espécie vegetal para o sudeste asiático, estabelecendo plantações de borracha que superariam a produção brasileira.

Na ressaca dessa queda, a região passou por um período de relativa estagnação econômica semelhante aos outros ciclos boom-bust, frequentemente vividos no Brasil. Surtou, no apogeu desses grandes empreendimentos, como do ouro, café, borracha e outros, a geração de oportunidades econômicas que atraiu atores sociais de várias regiões, aglutinando uma mão de obra barata, senão escrava. Quando a economia amazônica entrou em queda livre, uma boa parte da população ficou ociosa: ora migrava para as cidades, ora criava novas povoacões, ou voltava a viver uma vida de subsistência com poucos vínculos ao mercado formal.

Durante a Segunda Grande Guerra a Amazônia viveu um pequeno ressurgimento, devido a inviabilidade de obtê-la nas plantações asiáticas por conta do controle japonês, então estabelecido naquela região. O látex brasileiro tornou-se, assim, essencial para o empreendimento bélico das forças aliadas e, mais uma vez, a região Norte recebeu um outro fluxo de migrantes provindos do Nordeste na década de 1940. A era dos Grandes Projetos na Amazônia esboçou uma nova face para a região. No período do Milagre Econômico Brasileiro, nos anos 1970, o governo federal implementou seu Projeto de Integração Nacional (PIN), badalando o mesmo como uma oportunidade de oferecer "terras sem homens para homens sem terra". Criou-se, então, uma malha rodoviária e novos projetos agrícolas para assentar povos de lugares distantes. Na ocasião, o governo militar objetivava ocupar a Amazônia, com o intuito de solidificar sua soberania e escoar pessoas de outras regiões potencialmente conflituosas. Vieram pessoas do sul, sudeste, centro-oeste, e mais uma leva de nordestinos.

Do ponto de vista antropológico-sociológico, foi interessante observar o ethos de cada um desses grupos e sua adaptação ao novo ambiente. Por exemplo, da região sul vieram pessoas com ascendência alemã, italiana e eslávica. Curiosamente, ao assentar estes colonos, o governo, através do INCRA, caracterizaria os mesmos como migrantes ilustres e exemplares, pois eram considerados "trabalhadores" e encerrariam uma demonstração para os demais em termos de rendimento, produção e ritmo de trabalho. Por outro lado, os caboclos regionais, tidos como preguiçosos, ensinaram muitos migrantes como manejar os recursos naturais que, em conseqüência disto, incorreram menos dívidas no crédito rural. Por sua vez, os nordestinos procuravam relações clientelistas, enquanto os migrantes do centro-oeste teriam uma propensão em estabelecer redes comerciais.

Outros grandes projetos expuseram a Amazônia a novos fluxos migratórios. O Projeto Carajás, por exemplo, estabeleceu um polo de desenvolvimento, percorrendo o sul do Pará até a cidade de São Luís no Maranhão. Paralelamente, a ação madeireira serviu, e ainda serve, como ponta de lança para outros projetos, como agropecuários, em torno dos quais criou-se uma arena de conflitos rurais. A violência em si não ocorre exclusivamente entre pequenos agricultores sem terra e grandes latifundiários; os membros dessa última categoria também envolvem-se em agressões mútuas. Na consolidação dos Grandes Projetos e dos latifúndios, cria-se um êxodo rural, onde pequenos agricultores e outros migram para diferentes locais, particularmente às cidades amazônicas.

A população atual da Amazônia brasileira é de aproximadamente 20 milhões de habitantes. Novas informações resultadas do recenseamento pelo IBGE, atualmente em andamento, serão divulgadas em 2001. Curiosamente, o novo formulário censitário elaborado por este instituto não contêm questões que adequadamente levantem informações a respeito de procedências migratórias, nem da variabilidade racial/étnica que compõe a população brasileira. Continuam em vigor as cinco categorias antes estabelecidas: branco, negro, pardo, amarelo e índio. Estas categorias não revelam nitidamente o perfil demográfico da sociedade brasileira, e o da Amazônia em particular.

Junta-se a isto o movimento fronteiriço que alarma o governo brasileiro e seus vizinhos amazônicos. O Projeto Calha Norte já buscava patrulhar a fronteira amazônica e em breve será reforçado pelo Projeto Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM). Comenta-se que este sistema de vigilância combateria apenas parte do problema do narcotráfico e o contrabando de ouro e peles de animais silvestres. Estas operações ilícitas tornariam-se mais clandestinas e, junto com elas, a migração.

Na equação final, não podemos reduzir a questão da migração a simples fatores de atração e repulsão. Com o impulso da globalização, estamos diante de uma situação que gera empregos e outros benefícios econômicos; simultaneamente, porém, cria excedentes no mercado de trabalho, afetando locais e povos distantes que, anteriormente, jamais imaginaria-se atingir. O controle de populações e espaços periféricos se consolida através de uma rede de interesses e capital alheio que ofuscam a dinâmica desta interligação. O capital estrangeiro já se valeu de incentivos fiscais, a inexistência de normas ambientais, além de uma série de leis contraditórias e relaxadas para viabilizar seus investimentos no território amazônico. Entretanto, o Brasil reage a tais questões tentando impor novas medidas para proteger seu patrimônio natural e controlar o avanço desse capital. Embora sejam justas, estas medidas, levadas ao extremo, podem fatalmente desestimular pesquisas e parcerias necessárias à compreensão da Amazônia. Nestas circunstâncias, é evidente que ficaríamos sem o devido conhecimento científico, essencial ao fornecimento de subsídios para formular políticas públicas às questões de migração, deslocamentos e mobilidade social.

Louis Forline, PH.D., Antropólogo, Professor Visitante da Universidade Federal do Pará e Pesquisador Associado do Museu Paraense Emílio Goeldi.

   
           
     

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Atualizado em 10/11/2000

   
     

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