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Neurobioinformática: quando mentes e genes se encontram


Luciano da F. Costa

Ao observarmos a evolução do universo, uma tendência geral que logo se evidencia é o progressivo aumento da "complexidade" das coisas. De fato, enquanto inicialmente limitado a partículas muito simples, a expansão do universo tem levado a entidades cada vez mais complexas. Primeiramente deu-se a formação dos elementos químicos, seguida do aparecimento de moléculas e materiais compostos e, depois, surgiram os seres unicelulares que logo, na escala cósmica - bem entendido, se transformaram em peixes e então em anfíbios, até chegarmos aos primatas. Isso para não falar nas sociedades, que podem também ser entendidas como grandes organismos. Ao mesmo tempo, a crescente complexidade do universo manifesta-se não apenas na cristalização de objetos e seres cada vez mais complexos, mas também no aumento da sofisticação dos processos dinâmicos a eles relacionados. Por exemplo, a evolução dos seres vivos é acompanhada por reações químicas intermediadas pela genética que tendem a ser cada vez mais complexas, assim como a fotossíntese e o ciclo de Krebs, necessários para a manutenção energética de diferentes tipos de seres vivos. Enquanto isso, reações eletroquímicas constituem a base do processamento neuronal, que acaba causando, via colaboração e competição, comportamentos ainda mais intrigantes. De fato, a cultura e a ciência humanas correspondem ao extremo conhecido dessa tendência. Se nosso universo possui um "propósito", muito provavelmente ele tem a ver com o aumento da complexidade das coisas e da vida, gerando no processo diversidade e riqueza de comportamentos infindavelmente crescentes, até o nível de indivíduos que, não satisfeitos em questionar o propósito do universo e de si mesmos, comunicam suas ansiedades e idéias através da Internet.

Fruto da inexaurível sede de conhecimento dos seres humanos, a ciência tem tido grande sucesso em desvendar e controlar diversos mistérios da natureza. Depois dos incríveis gregos da era clássica, a criação da dinâmica por Sir Isaac Newton representa o primeiro triunfo completo da metodologia científica, triunfo particularmente memorável por ter sido reconhecido durante a vida do cientista. Ao identificar um conjunto de leis matemáticas muito simples que regem tanto a queda das maçãs como a gravitação dos planetas, Newton estava abrindo o mágico portal que nos levaria aos aviões e foguetes, assim como aos grandes avanços da engenharia. Entretanto, até mesmo nessas leis simples e gerais, o germe da complexidade já se encontrava latente. Como se descobriu muito mais recentemente, o movimento de três corpos sob ação das respectivas gravidades pode levar a comportamento caótico, de grande complexidade, que só pode ser resolvido através de simulações computacionais. Curiosamente, tal tipo de fenômeno, onde até mesmo sistemas simples apresentam aspectos incrivelmente sofisticados, tem se revelado como regra e não exceção. Circuitos eletrônicos e neuronais, reações químicas, ciclos metabólicos, a genética e a própria evolução das espécies; todos esses casos apresentam seu lado extremamente desafiador, motivando a criação de uma nova ciência, a ciência dos sistemas complexos.

A esta altura, é importante observarmos que a própria palavra "complexo" não possui uma definição matemática precisa, podendo ser entendida informalmente como o território que se inicia onde o nosso conhecimento termina. Na natureza, fenômenos complexos são frequentemente acompanhados pelo aparecimento de propriedades emergentes, resultados da integração do comportamento interativo dos inúmeros elementos constituintes. Um exemplo típico é a transição da água para o gelo, dois estados tão diferentes de um mesmo vasto conjunto de átomos. Sistemas complexos são também caracterizados por aspectos históricos, como a queda do asteróide que haveria exterminado os dinossauros e promovido a evolução dos mamíferos. Um terceiro elemento comum a tais sistemas é a sua enorme diversidade: onde podemos encontrar duas rosas idênticas? E também temos a variação temporal: como cruzar duas vezes o mesmo rio? Como todas essas características manifestas da complexidade são típicas dos seres vivos, fica logo evidente que a compreensão completa da vida, incluindo aí o sistema nervoso e suas manifestações, representa um fabuloso desafio para a ciência.

O principal problema é que os métodos reducionistas tradicionalmente usados na física, onde um fenômeno é isolado o mais completamente do resto da natureza e dissecado em detalhes, possuem limitado poder para a descrição e previsão do comportamento dos sistemas complexos. Interessantemente, os métodos para avanços decisivos nas áreas de biologia e neurociência podem já se encontrar ao nosso alcance. Tratam-se de conceitos e métodos modernos de computação, incluindo-se bases de dados, redes de computadores e inteligência artificial. Enquanto as bases de dados possibilitam o armazenamento organizado e integrado da crescente e quase infindável quantidade de dados experimentais implicados pela diversidade e aspectos históricos da vida, as redes de computadores permitem que esses dados sejam disponibilizados para equipes de pesquisadores, que por sua vez usam métodos de inteligência artificial para a análise dos dados e aquisição de conhecimento sobre os mesmos. Tal combinação simbiótica dessas três áreas é exatamente o que se procura exprimir pela "informática" inserida nos termos bioinformática e neuroinformática. A importância e implicação dessas duas áreas emergentes podem apenas com grande dificuldade ser exageradas, encontrando-se já consolidadas pela criação de inúmeros grupos de pesquisa, periódicos científicos e projetos relacionados no exterior e também em nosso país. Um exemplo do potencial da bioinformática é na procura de novos genes, onde uma vasta quantidade de dados de seqüenciamento de DNA armazenada em bases de dados é sistematicamente escrutinada por métodos de reconhecimento de padrões (uma sub-área da inteligência artificial) e comparada com outras bases armazenadas remotamente através do uso de redes de comunicação. Em neuroinformática, dados da morfologia de sistemas neurais, armazenados em bases de dados distribuídas, são levados à vida através de métodos de simulação numérica, e o comportamento emergente é comparado com dados de função neuronal e expressão gênica. Com efeito, o desenvolvimento paralelo e integrado dessas duas áreas apresenta inúmeras possibilidades para fertilização cruzada, no sentido de que a compreensão da dinâmica dos genes e desenvolvimento animal, assim como da ecologia e da evolução das espécies, é necessária para o entendimento da função cerebral, ao mesmo tempo em que sistemas de inteligência artificial motivados por avanços nesta área permitem análises cada vez mais completas dos demais dados biológicos.

Representando um extremo da vocação do nosso universo para a complexidade, a integração da bioinformática e da neuroinformática desponta como um processo que levará à redefinição da posição humana. Um processo ao longo do qual, como dizia Carl Sagan, o próprio universo realizará seu auto-conhecimento.

Luciano da F. Costa é professor do Instituto de Física de São Carlos - Universidade de São Paulo - luciano@if.sc.usp.br

Sugestões para leitura:
L. da F. Costa. A maçã e o biscoito da sorte, Revista Brasileira de Ensino de Física, Vol.25, no 02, Jun. 2003.

L. da F. Costa e C. Montagnoli. Máquinas tomam decisão. Ciência Hoje, Vol. 30, no 176, 23-29, Out. 2001.

L. da F. Costa, M. C. F. de Oliveira e R. Minghim. De olho nos neurônios, As formas virtuais do pensamento. Ciência Hoje, Vol 28, no 167, 44-51, Dez. 2000.

 
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Atualizado em 10/08/2003
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