Editorial:

As cidades e os muros
Carlos Vogt

Reportagens:
Prós e contras da revitalização urbana
Enfim o Estatuto da Cidade
Programa Habitat procura desenvolver a qualidade de vida nas cidades
Ocupações revelam déficit habitacional
Fórum Social propõe uma outra cidade possível
Novas metrópoles, velhos problemas
Conflitos entre centro e periferia
Qualidade das águas é cada vez pior
Lixo é problema ambiental com agravantes sociais
Transporte em São Paulo: conflitos e soluções
Poluição sonora piora ambiente urbano
Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?
Cidade tenta unir tecnologia com inclusão social
Educação para uma nova cidade
Brasília contrastes de uma cidade planejada
Vilas significaram distância entre patrões e operários
Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
Ermínia Maricato

Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do povo peregrino
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

A cidade como objeto de estudo: diferentes olhares sobre o urbano

Maria Josefina Gabriel Sant'Anna

A cidade ocidental moderna tem sido pensada sob distintas matrizes teóricas, com diferentes graus de abstração e de generalização. Busca-se aqui formular um breve panorama de algumas das diversas concepções que marcam o pensamento sobre a cidade. Trata-se, portanto, de um recorte, o que implica na eleição de alguns paradigmas, na exclusão de outros e ainda na impossibilidade de contemplar todos os autores e tendências.

A cidade segundo os clássicos: Marx, Weber, Durkheim
Para Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), a cidade ocidental moderna constitui o local da produção e reprodução do capital, produto da sociedade capitalista, e, portanto, parte integrante de processos sociais mais amplos. Ela expressa a miséria e a degradação da classe operária, denunciadas com contundência em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Engels, 1845), retomadas posteriormente em O Capital (Marx, 1867). Para os autores, "a história de qualquer sociedade até nossos dias é a história da luta de classes" (Manifesto Comunista/1848); deriva daí a concepção do papel histórico e estratégico que eles imputam à cidade industrial no século XIX, como locus da luta de classes. Berço da burguesia e de sua ascensão revolucionária, a cidade é também o espaço onde se evidencia a exploração dos trabalhadores e onde, dialeticamente, tal exploração será superada, por meio da revolução operária. A cidade capitalista nessa perspectiva tem concretude histórica.

É diferente, nesse sentido, a ótica de Weber, (1864-1920), que concebe a cidade como tipo-ideal, demarcando um outro campo teórico. Interessa ao autor explicitar a origem e o desenvolvimento do capitalismo moderno e da racionalidade que o atravessa em todas as suas esferas, destacando o papel que a cidade desempenha na emergência desses processos. Sua reflexão mais sistemática sobre a cidade está em The City (1922), posteriormente incorporada à obra Economia e Sociedade sob o título de A dominação não-legítima (tipologia de cidades). Nesse texto, Weber reúne um conjunto de estudos sobre a Antigüidade, sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo e sobre a moral econômica das grandes religiões. Esse conjunto de estudos mostra a intenção do autor de pesquisar a política econômica urbana, tal como se desenvolveu na cidade medieval, o que visava compreender o papel da cidade no desenvolvimento do capitalismo moderno. Na sua forma típica ideal, a cidade caracteriza-se por constituir-se como mercado e por possuir autonomia política. A cidade medieval ocidental é a que mais se aproxima de seu tipo ideal de cidade.

Para encerrar os clássicos, é preciso mencionar Durkheim (1971), que se interessa indiretamente pela cidade, graças à atenção que concede à morfologia social. Toma como referência para a análise da sociedade a disposição, em determinado território, de uma massa de população de certo volume e densidade, concentrada nas cidades ou dispersa nos campos, que, servida por diferentes vias de comunicação, estabelece diferentes tipos de contato. É, portanto, no contexto da anatomia da sociedade, em seus aspectos marcadamente estruturais, que a cidade surge como substrato da vida social, acumulando e concentrando parcelas significativas da população.

Os preceitos teóricos e o alto grau de abstração e de generalidade presentes no pensamento dos clássicos da Sociologia opõem-se à abordagem largamente empiricista que marca a Escola de Chicago.

A Escola de Chicago: o nascimento da Ecologia Urbana

A Escola de Chicago inaugura uma reflexão inédita ao tomar a cidade como seu objeto privilegiado de investigação, tratando-a como variável isolada, o que em si não constituiria um mérito, mas o que renderia à Escola os créditos da criação da Sociologia Urbana como disciplina especializada. A validade dessa reverência é discutível. Para Castells, essa sociologia que advoga a idéia da existência de um urbano per se, não é uma ciência, e sim uma ideologia. Essa crítica, mesmo procedente, não invalida a importância dessa abordagem que se orienta pelos conceitos da ecologia humana. A teoria de Robert Park, ilustre representante da Escola, sobre a ecologia humana e as áreas naturais pressupõe uma analogia entre o mundo vegetal e animal, de um lado, e o mundo dos homens, de outro. Utiliza os conceitos de competição, processo de dominação e processo de sucessão, para explicar tal similaridade. A cidade é apreendida por meio de um referencial de análise analógico que tem por base a ecologia animal, daí identificar a Escola de Chicago como Escola Ecológica.

Louis Wirth, outro autor de destaque da Escola, afirma que a cidade produz uma cultura urbana que transcende os limites espaciais da cidade, afirmação totalmente inovadora. A cidade atua e se desdobra para além de seus limites físicos, através da propagação do estilo de vida urbano, e torna-se o locus do surgimento do urbanismo como modo de vida.

O empirismo que marca a abordagem da Escola - que transforma a cidade de Chicago em um "laboratório social"- resulta do interesse de buscar soluções concretas para uma cidade caótica marcada por intenso processo de industrialização e de urbanização, que ocorre na virada do século XIX para o XX. Seu crescimento demográfico espantoso, seu imenso contigente imigratório, seus guetos de diferentes nacionalidades geradores de segregação urbana, sua concentração populacional excessiva e suas condições de vida e de infra-estrutura precaríssimas, favorecem a formulação pela Escola da idéia da cidade como problema, que dificulta a articulação de um pensamento com maior grau de abstração acerca da cidade.

A sociologia francesa: o urbano capitalista

Para os sociólogos franceses (bem como para os norte-americanos fundadores da eloqüentemente intitulada "new urban sociology", C. Wright Mills e Floyd Hunter, para citar apenas os mais influentes), o urbano deveria ser compreendido como espaço socialmente produzido, assumindo diferentes configurações de acordo com os vários modos de organização socioeconômica e de controle político em que está inserido. Ganha importância a interação entre as relações de produção, consumo, troca e poder que se manifesta no ambiente urbano. Esse enfoque expressa o descontentamento dos neomarxistas franceses com a idéia defendida pela Escola de Chicago de que haveria um urbano per se, a partir do qual era possível explicar toda uma série de fenômenos sociais (Valladares e Freire-Medeiros, 2001).

Assim, no final da década de 1960, Castells, Lojkine, Ledrut e Lefebvre propõem novos marcos para a renovação da reflexão sobre a cidade. Com tal enfoque, politiza-se a questão urbana e surgem novas questões: os movimentos sociais urbanos, os meios de consumo coletivo, a estruturação social do território na sociedade capitalista e o papel do Estado na urbanização (Gonçalves, 1989, p. 71).

Lojkine (1981) discute a questão do Estado na sociedade de capitalismo avançado, com base na hipótese de que a urbanização, como uma forma desenvolvida da divisão social do trabalho, é um dos maiores determinantes do Estado do Bem-estar Social. Analisa o papel do Estado na urbanização capitalista, a relação da política urbana e suas dimensões com a luta de classes e a questão dos movimentos sociais urbanos diante do Estado.

Henri Lefebvre, outro expoente dessa vertente francesa, traz um novo enfoque sobre a cidade, concebendo-a como o reino da liberdade e do novo urbanismo. Mesmo reverenciado como um dos maiores teóricos do marxismo contemporâneo, Lefebvre tem suas últimas obras criticadas, no campo da discussão urbana, tanto por Castells (1977) quanto por Ledrut (1976). Argumentam que o autor expulsa o marxismo do campo das lutas de classe para o da "cultura", formulando assim uma concepção ideológica do urbano. Pode-se, em defesa de Lefebvre, dizer que na sua ótica o urbano não representa apenas a transformação, pelo capitalismo, do espaço em uma mercadoria, mas também a arena potencial do cotidiano vivido como jogo, como festa (1970). Considera simplista "a concepção que coloca, de um lado, a empresa e a produção e, de outro, a cidade e o consumo", o que não permite desvendar a verdadeira dimensão do espaço (1990), numa clara alusão às críticas de Castells e Ledrut.

A cidade na visão latino-americana

A década de 1960 inaugura também a reflexão latino-americana sobre urbanização e desenvolvimento em "países periféricos". Aníbal Quijano, José Nun, entre outros, elegem a teoria da marginalidade e da pobreza como seu principal foco de atenção. Esse paradigma, que sempre fornece explicações veladamente funcionalistas à desigualdade socioeconômica, será por isso criticado por estudiosos urbanos brasileiros.

Sociologia urbana no Brasil

Enquanto nos Estados Unidos e na Europa, a década de 1960 inaugura um confronto entre uma sociologia urbana de cunho ecológico e uma "nova sociologia" preocupada com o urbano de forma mais abrangente, no Brasil, essa mesma década marca o próprio surgimento da sociologia urbana como disciplina especializada. Apesar de esforços isolados de pesquisa e reflexão sobre pequenas comunidades urbanas desde fins dos anos 1940 (inspirados, sobretudo, por antropólogos americanos como Donald Pierson e Charles Wagley), a sociologia brasileira só aparece de fato e de direito, como uma "ciência do urbano", com a publicação, em 1968, do livro Desenvolvimento e Mudança Social: formação da sociedade urbano-industrial no Brasil, de J. B. Lopes, a primeira grande tentativa de reflexão sociológica sobre a relação entre desenvolvimento industrial, falência do modelo patrimonial e urbanização (Valladares e Freire Medeiros, 2001). O trabalho de Lopes, bem como os estudos latino-americanos, motivaram os sociólogos brasileiros da década de 1960, que, entretanto, rejeitaram criticamente o paradigma da marginalidade. Pesquisas pioneiras, como as de Francisco Oliveira, de Paul Singer, de Maria Célia Paoli, de Manoel Tostes Berlink, demonstram que a marginalidade resulta não de um problema de integração social, mas de uma questão estrutural: a preservação da pobreza ocorre através de mecanismos institucionais que nada têm de "marginais" ao sistema. Instala-se, então, uma ruptura com as concepções anteriores sobre migração e marginalidade e se traz à tona o papel desempenhado por formas não-capitalistas de produção na acumulação do capital.

Como resultado, as noções de "espoliação urbana" (Kowarick, 1979) e de "periferização" orientam novas pesquisas. Ganha destaque a dimensão política da urbanização e proliferam os estudos sobre a dupla espoliação sofrida pelas classes populares: como força de trabalho subjugada pelo capital e como cidadãos submetidos à lógica da expansão metropolitana que lhes negava o acesso aos bens de consumo coletivos (Valladares e Freire, 2001).

Quanto aos clássicos da Sociologia, foi o pensamento de Marx que mais influenciou a produção sobre a cidade, quer por meio da sociologia urbana francesa, quer na visão crítica da teoria da marginalidade.

No que se refere à Escola de Chicago, sabe-se que ela exerceu grande influência entre os pensadores brasileiros. Sua herança foi marcante, seja fundando, curiosamente, os estudos de comunidade próprios da Sociologia Rural, que têm na obra de Antonio Candido Parceiros do Rio Bonito (1964) seu exemplo emblemático, seja na Antropologia Urbana que até hoje trabalha com os métodos e alguns conceitos da Escola de Chicago, como por exemplo a noção de "zona moral" de Park.

Por sua vez, os preceitos da sociologia urbana francesa marcaram os anos 1980 como pano de fundo teórico e como início dos estudos sobre as contradições urbanas, sobretudo o estudo da grande novidade temática da década: os movimentos sociais urbanos.

Hoje os estudiosos urbanos continuam importando paradigmas, mas permanece o empenho de investigar e de explicar as particularidades da realidade urbana brasileira. A temática da globalização, por exemplo, está presente nos estudos sobre as metrópoles brasileiras. A discussão sobre dual city, uma cidade de estrutura social polarizada, dual, em que o espaço dos ricos contrapõe-se ao dos pobres, resultante da globalização das economias urbanas, não deixa de motivar os pesquisadores urbanos, mas há uma preocupação com os limites da aplicabilidade de tal noção. O que se nota como peculiar à reflexão contemporânea sobre a cidade é que ela se torna cada vez mais ampla e multidisciplinar incrementando o leque temático da Sociologia Urbana.

 

 

Atualizado em 10/03/2002

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